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segunda-feira, dezembro 02, 2024

Efemérides do Futebol (53)... Marítimo, o primeiro emblema forasteiro a atracar nas Ilhas Canárias


Troca de galhardetes para eternizar um momento histórico

Estão prestes a cumprir-se 110 anos desde que uma equipa estrangeira atracou nas Ilhas Canárias (Espanha) para ali disputar uma partida de futebol. E coube aos portugueses do Marítimo a honra de realizar em julho de 1915 uma minidigressão pelo arquipélago espanhol e tornar-se não só o primeiro conjunto oriundo de outro país a jogar ali, mas de igual modo a primeira equipa fora das Canárias a atuar naquele território. Marítimo, que já era então o “maior” das ilhas portugueses, como então apelidavam o clube do Funchal, nascido sensivelmente 5 anos antes desta curta visita às Canárias. O emblema madeirense mantinha-se, desde sua fundação, invicto no seu território, isto é, ninguém na ilha da Madeira havia ainda batido os verde-rubros. As derrotas que até então o jovem Marítimo havia averbado ocorreram nas visitas realizadas à capital de Portugal (Lisboa) ante alguns conjuntos locais nos anos de 1913 e de 1914. A fama dos maritimistas fez então com que em 1915 um grupo de madeirenses radicados nas Canárias angariasse fundos para trazer o “maior das ilhas” até ao arquipélago espanhol para disputar um conjunto de desafios com algumas equipas locais. 


A seleção regional de Gran Canaria e o Marítimo posam juntos para a posterioridade

A curta viagem marítima entre a Madeira e a ilha de Gran Canaria deu-se então no referido mês de julho, tendo os portugueses entrado em ação contra uma seleção regional composta por jogadores do Victoria e do Porteño, dois emblemas canários. Um nulo no marcador foi o resultado verificado num encontro que não chegou ao fim devido a uma grave lesão do avançado maritimista Silva. As duas equipas voltariam a medir forças alguns dias depois, e mais uma vez o teimoso nulo não saiu do marcador final. Posto isto, o Marítimo zarpou para outra ilha canária, Tenerife, mais concretamente, onde defrontou o Tenerife Sporting Club, e cujo resultado se desconhece. Esta não seria, contudo, a única viagem que não só o Marítimo, como outros emblemas madeirenses, como o Nacional e o União, efetuariam às vizinhas Canárias nos anos seguintes. Mas para a história fica mesmo o facto de os maritimistas terem sido a primeira equipa forasteira a pisar território canário, já que o primeiro emblema do continente espanhol a deslocar-se às Ilhas Canárias foi o Bétis de Sevilha, em 1919.  

terça-feira, novembro 15, 2022

Efemérides do Futebol (45)...

Damião Cannas o jovem e promissor half-back do Império que a morte ceifou na flor da idade

No futebol português, Pepe terá sido o exemplo mais sonante de quem a prematura morte chegou cedo demais. Não é que este prodígio do Belenenses dos anos 20 já não tivesse um percurso cintilante na meia dúzia de anos que defendeu quer a camisola do emblema da Cruz de Cristo, quer a da seleção nacional, mas por certo que a sua história no nosso futebol teria ainda um longo caminho pela frente caso não nos tivesse deixado com apenas 23 anos de idade. José Manuel Soares, o Pepe, faleceu em 1931, mas é preciso recuar 20 anos para conhecer a morte acidental - como a de Pepe - de outro jovem e então promissor futebolista luso. Facto ocorrido em 1911, numa altura em que o centro do futebol português era em Lisboa, onde já fervilhava o Campeonato Regional, competição que a cada ano que passava granjeava maior popularidade e rivalidade entre os clubes da capital. Um desses clubes era o SC Império (fundado em 1906), e que na temporada de 1910/11 fez a sua estreia no Campeonato de Lisboa. Deste grupo faziam parte figuras conhecidas do então futebol da capital, como o inglês Charles Etur - havia passado pelo Sporting -, ou Albano dos Santos - que havia igualmente defendido os mantos sagrados de Sporting e Benfica -, mas havia um jovem que dava nas vistas não só pelas suas qualidades futebolísticas, como de igual modo por ser um atleta multifacetado, isto é, alguém que para além do futebol brilhava noutras modalidades. O seu nome era Damião Cannas. Nascido em 1889 foi então não só um promissor futebolista, como também um já consagrado halterofilista e exímio praticante de luta greco-romana. No desporto rei foi descrito pela revista Os Sports Ilustrados como um «adversário lealíssimo, e um sócio do Império como poucos no clube - nunca faltava a um desafio. Servindo-se da sua força sacudia asperamente os contrários, mas fazia-o com a mais absoluta lealdade, quase com ingenuidade». Era pois um poço de força leal este half back (defesa), sendo que na luta greco-romana era descrito como um dos mais fortes, musculados e enérgicos lutadores do seu tempo. Auspiciava-se um belo futuro desportivo a este jovem, até que um trágico acidente ocorrido a 9 de maio de 1911 tirou-lhe a vida. Uma explosão de gás na madrugada do referido dia levou Damião Cannas ainda com vida, mas com graves queimaduras, para o Hospital de S. João, onde viria a falecer. O seus companheiros de clube ficaram em choque, e o capitão da equipa de futebol do Império, Joaquim Travassos Lopes, deixou em Os Sports Ilustrados uma emotiva mensagem de despedida ao jovem atleta «que todos admiravam e aplaudiam no nosso meio sportivo, vendo nele um grande futuro, devido às suas excecionais qualidades físicas e de caráter».

terça-feira, janeiro 08, 2019

Flashes Biográficos (13)... Algoth Niska

Algoth Niska

Algoth NISKA (Finlândia): A par das Ilhas Faroé, a Finlândia carrega o estatuto de parente pobre do futebol escandinavo.
Do país dos mil lagos – o território finlandês tem aproximadamente 188 000 lagos – pouco reza a história do belo jogo, não reservando mais, talvez, do que pouco mais do que um par de capítulos onde (na maior parte deles) a personagem principal dá pelo nome de Jari Litmanen, considerado o melhor futebolista da História da Finlândia, o qual durante duas décadas (1990-2010) brilhou não só com a camisola da frágil seleção escandinava como também assumiu papéis preponderantes em equipas de renome mundial como o Ajax, Liverpool ou Barcelona.
Porém, o talento de Kuningas (Rei) – como ficou eternizado Litmanen no desporto do seu país – não foi suficiente para conduzir a nação finlandesa a uma fase final de um Mundial ou de um Europeu, estando neste ponto ao mesmo nível das Ilhas Faroé, como os dois únicos países nórdicos que nunca disputaram qualquer uma das referidas competições internacionais.

Houve, no entanto, um período da sua história (desportiva) que a Finlândia teve a honra – e o privilégio – de partilhar o palco principal do futebol a nível planetário com as melhores seleções mundiais. Facto ocorrido numa época em que tanto o Mundial como o Europeu ainda não haviam visto a luz do dia, e que a nata do futebol mundial se reunia de quatro em quatro anos nos torneios olímpicos, para muitos, o embrião do atual Campeonato do Mundo FIFA. Estávamos em 1912, ano em que Estocolmo é palco da 5.ª edição dos Jogos Olímpicos da Era Moderna, tendo a competição futebolística, cujo vencedor era endeusado como o campeão do Mundo, sido integrada por 11 combinados nacionais, entre eles a estreante Finlândia, ou melhor o Grão Ducado da Finlândia, na altura um Estado que integrava o Império Russo, mas que nestes Jogos competiu como nação autónoma!
Teoricamente olhada como um outsider neste torneio olímpico de 1912, em comparação com os então pesos-pesados do Planeta da Bola, Itália, Áustria, Dinamarca, Hungria ou a Grã-Bretanha (campeã olímpica em título), a Finlândia partia para esta missão com o intuito de aprender com os melhores no palco mais imponente do desporto rei planetário.
Só que... o aluno superou o mestre, e no fim os gélidos rapazes do norte da Europa alcançaram um impensável quarto lugar, ficando muito perto de uma histórica medalha. O memorável trajeto dos nórdicos começou com o derrube da potência Itália, liderada (tecnicamente) pelo então emergente génio da tática Vittorio Pozzo (que duas décadas mais tarde levaria a Squadra Azzurra ao topo do Mundo com a conquista de dois Campeonatos do Mundo consecutivos), seleção esta que caiu no prolongamento aos pés dos nórdicos por 2-3. A surpresa estava instalada. Mas iria ganhar contornos maiores quando nos quartos-de-final o sorteio ditou que o Grão Ducado da Finlândia enfrentasse a... Rússia! No Tranebergs Idrottsplats Stadium (um dos três recintos que acolheu o torneio olímpico desse ano) os súbitos do Império Russo levaram ao tapete os czars graças a um triunfo por 2-1. Que atrevimento (!) terão pensado algumas figuras do Poder localizado em Moscovo.
Sem querer entrar em pormenores daquele que é considerado o maior feito do futebol finlandês em mais de um século de história, até porque sobre o torneio olímpico de 1912 já aqui falámos (https://bit.ly/2Cbo4cg), resta dizer que o sonho de chegar ao título mundial acabou nas mãos dos favoritos britânicos, que nas meias-finais da competição vergaram os finlandeses a quatro golos sem resposta. A mais bela página do futebol da nação nórdica terminou às mãos da Holanda, que sob a batuta de um endiabrado Jan Bos (autor de cinco golos nesse encontro) arrecadou a medalha de bronze na sequência de uma estrondosa vitória por 9-0.

Esta breve resenha leva-nos à história de vida de uma das principais figuras dessa mítica caminhada olímpica por parte da Finlândia. Talvez, para muitos conhecedores da história do belo jogo finlandês, ele foi a primeira superstar daquele país. E com uma boa dose de loucura e rebeldia à mistura, como já iremos perceber.

Algoth Niska, a sua graça. Este nativo de Viipuri, nascido em 1888, desenvolveu ao longo da sua vida duas paixões, o futebol e o mar.
A morte de seu pai fez com que ainda adolescente, com 15 anos, se mudasse com a restante família para Helsínquia, tendo ali seguido os passos do seu desaparecido progenitor, no que às aventuras marítimas dizia respeito. O pai de Algoth fora capitão da marinha.
Ainda jovem, a nossa figura lançou-se em aventuras pelo imenso oceano, tornando-se com o passar dos anos um marinheiro experiente: conheceu países e adquiriu o conhecimento de vários idiomas.
Quando não estava em alto mar, Niska dava azo à sua outra paixão: o futebol. Neste ponto não existem muitos documentos sobre a sua carreira futebolística, apenas que era esquerdino, atuando como extremo no ataque das equipas por onde passou.

A primeira coroa de glória nos gélidos retângulos nórdicos do navegador/futebolista foi alcançada em 1908, ano em que é disputado o primeiro campeonato nacional da Finlândia, tendo o Unitas Sports Club sagrado-se o primeiro campeão da história daquela nação. Uma das estrelas desse conjunto era Algoth Niska, que se havia juntado ao Unitas dois anos após se ter mudado para Helsínquia. Ali esteve até 1909, altura em que troca de camisola. Muda-se então para o Helsingfors, por aquela altura já um dos mais populares emblemas da capital finlandesa.

É já na década seguinte que Niska alcança a fama que ainda hoje detém na História do seu país. E esse estatuto pode ser dividido em três atos: as Olimpíadas de 1912, a desobediência à lei que proibia a venda de bebidas alcoólicas na Finlândia - que entrou em vigor em 1919 – e o salvamento de judeus das mãos dos nazis no arranque da II Guerra Mundial.

Niska, ao meio,
em Estocolmo 1912
O primeiro ato já foi esmiuçado na introdução desta viagem ao passado, tendo Niska sido um dos 15 jogadores que em Estocolmo escreveram a página mais brilhante da seleção nacional finlandesa.
O extremo-esquerdo nascido em Viipuri jogou nas quatro partidas que o combinado nórdico efetuou naquele que era então o evento mais importante do calendário futebolístico planetário.
No plano futebolístico a estrela de Niska praticamente se eclipsou após a olimpíada, sendo apenas de realçar a conquista do seu segundo título de campeão nacional, em 1916, ao serviço do Kiffen, o último emblema que se lhe conhece.

Algoth continuava paralelamente cada vez mais ligado ao mar e quando a I Guerra Mundial terminou ele obtém uma formação académica na Escola de Navegação de Helsínquia. E eis que chegamos a 1919, ano em que entra em vigor na Finlândia a Lei da Proibição, uma legislação que proíbe a venda de bebidas alcoólicas naquele país, sendo que na Suécia, embora essa venda não fosse proibida, havia regras rígidas quanto à comercialização de bebidas alcoólicas.
Com a entrada da lei os lojistas/vendedores de bebidas alcoólicas de Helsínquia logo trataram de despachar a mercadoria por 3 reis de mel coado, já que as bebidas teriam de ser eliminadas de circulação com a entrada da lei.
Um desses comerciantes vendeu todo o seu vastíssimo stock de álcool a Niska, que a partir daqui abraçava uma nova profissão: a de contrabandista. Fazendo jus à sua condição de marinheiro experiente, ele aventurou-se nos mares escandinavos vestindo a pele de pirata do contrabando (de bebidas alcoólicas).

Viajando entre a Finlândia e a Suécia - e em algumas ocasiões também para a Alemanha - Niska enfrentou nos anos que se seguiram o perigo dos mares, e este perigo em duplo sentido, isto é, à turbulência dos mares nórdicos ele também tinha de driblar a atenta vigilância da polícia marítima.
Da sua clientela constava a aristocracia sueca e finlandesa, e a certa altura do negócio quando o stock começava a faltar, Niska já conhecia de cor e salteado os armazéns clandestinos onde podia abastecer a sua embarcação.

Algoth Niska era na década de 20 do século passado um afamado pirata do contrabando de álcool e talvez por isso a marcação serrada da polícia marítima fosse cada vez mais intensa. Até à Lei da Proibição ser revogada, em 1932, Niska não saiu sempre vencedor dos confrontos com as autoridades, tendo sido detido e preso algumas vezes, quer na Finlândia, quer na Suécia.

Niska, os barcos e o mar,
uma ligação aventureira
Com a revogação da lei o contrabando de bebidas alcoólicas deixou de ser produtivo e o pirata dos mares nórdicos com queda para a bola teve de se dedicar a outro negócio: salvar judeus das garras dos nazis na Alemanha.
Tornou-se numa espécie de Aristides de Sousa Mendes da Finlândia, mas no seu caso fê-lo para ganhar a vida. Com o início da II Guerra Mundial, Niska começou a forjar e contrabandear passaportes finlandeses para que os judeus pudessem abandonar o território alemão rumo à Finlândia, no sentido de fugirem do Holocausto. Esta sua atividade clandestina terminou quando um dos judeus contrabandeados foi descoberto na fronteira finlandesa e Niska passou a estar debaixo de olho das autoridades policiais. Conta-se que terá salvo cerca de meia centenas de judeus da morte com esta sua atividade comercial, por assim dizer.
Depois disto, pouco ou nada se ouviu falar deste homem, a não ser a 28 de maio de 1954, dia em que foi noticiada a sua morte após uma batalha perdida contra um tumor cerebral que lhe havia sido diagnosticado um ano antes.    

quinta-feira, março 08, 2018

Emblemas históricos (14)... Bethlehem Steel Football Club



A histórica equipa do Bethlehem Steel que logrou vencer o seu primeiro título nacional em 1915

Não é possível caminhar no presente rumo ao futuro sem olhar para o passado, sem recordar o que nos trouxe até aqui e que irá nos transportar até mais além. A História - seja ela feita de boas ou de más memórias - é por demais importante para dizermos hoje quem somos e onde queremos estar amanhã. Ninguém é o que é no presente sem ter feito um percurso para ali chegar, e é aqui, neste ponto, que o passado ganha vida ao ser evocado. Bom, esta visão (pessoal) confere vida à nossa história de hoje, à história do Bethlehem Steel Football Club, ou recorrendo a linguagem metafórica, a raíz da popularidade do soccer norte-americano. Contrariamente ao que muitos historiadores, jornalistas ou simples entusiastas do belo jogo pensam, o futebol em Terras do Tio Sam não nasceu com a contratação de Pelé por parte do New York Cosmos na década de 70, nem com a atual projeção internacional da Major League Soccer, nem mesmo com a escandalosa vitória da modesta (e amadora) seleção yankee no Mundial de 50 às custas da então super-potência planetária Inglaterra, ou com o histórico terceiro lugar obtido pelo combinado norte-americano no primeiro Campeonato do Mundo da FIFA, realizado em 1930 no Uruguai.



A fábrica Bethlehem Steel
que construiu a América!
O soccer notabilizou-se muito antes de tudo isto, e muito por influência do Bethlehem Steel Football Club, considerado como a primeira potência clubística do futebol estado-unidense. Falar deste emblema implica abordar temas como a industrialização e a imigração, e é aqui que entra o nome da Bethlehem Steel, outrora, e também ela, uma super-potência da indústria norte-americana, e um símbolo do poderio industrial da nação yankee a nível internacional. Situada em Bethlehem esta empresa transformou por completo a pequena cidade do Estado da Pensilvânia, que sensivelmente a meio do século XIX deixou de lado a sua pacatez para passar a ser uma movimentada urbe, quadriplicando nas décadas seguintes a sua população. Com o seu vincado crescimento e consequente importância na economia norte-americana, a Bethlehem Steel passou a ser vista por cidadãos de vários pontos do globo como o passaporte para o sonho americano, como o veículo rumo à conquista de uma vida melhor numa nação que abria as suas portas ao Mundo. Fundada em 1857 esta empresa tornou-se simultaneamente num curto espaço de tempo no maior construtor naval e no segundo maior produtor de aço do país. Não é à toa que inúmeros historiadores se referem aos milhares de operários que passaram pela Bethlehem Steel como "o povo que ajudou a construir a América". Esta frase é sintomática da importância da fábrica que durante décadas foi a responsável pela produção dos rails para a construção das linhas de caminho de ferro de todo o país; pela construção de navios e aviões usados, respetivamente, pela Marinha e Força Aérea norte-americanas nas duas Grandes Guerras, ou pelo fabrico do ferro usado na construção de tantos e tantos arranhas céus hoje tão comuns em qualquer grande cidade norte-americana. O tal "povo que ajudou a construir a América" era composto por cidadãos forasteiros, imigrantes à procura de um futuro risonho, provenientes na sua maioria da Europa, e das ilhas britânicas muito em particular. Durante a semana o trabalho era duro, muito duro, mas ao fim de semana tempo havia para a diversão, para o convívio, e aí... entrava em ação o soccer! Entre a classe operária sobressaiam, nos tempos livres, os cidadãos de origem britânica, que entre si matavam saudades das suas terras natais dando vida àquele objeto mágico que com eles havia feito a longa travessia no Atlântico: a bola de futebol. Os animados duelos futebolísticos sucediam-se fim-de-semana após fim-de-semana na capital do ferro, não sendo de causar estranheza que em 1907 os operários da fábrica tivessem fundado o Bethlehem Football Club. 



O símbolo dos progenitores
do futebol nos EUA
Estes homens defenderam o recém criado emblema de forma totalmente amadora nos primeiros anos de atividade oficial, por assim dizer, disputando acesos duelos contra outras equipas amadoras locais. Será imperativo dizer que naqueles dias o profissionalismo ainda não havia visto a luz do dia no universo do soccer norte-americano. O grande ponto de viragem na história do clube acontece em 1914, quando a Bethlehem Steel Corporation decide tomar as rédeas da sua equipa, sobretudo ao nível financeiro, injetando nesta capital suficiente para a tornar no primeiro grande nome do futebol da América do Norte. O clube passa então a chamar-se Bethlehem Steel Football Club. Muitos dos imigrantes que tentaram naqueles dias a sua sorte no norte do continente americano eram igualmente grandes artistas da bola, sobretudo os que viajavam de Inglaterra, a pátria do futebol moderno, tendo a Bethlehem Steel Corporation iniciado a partir de então um recrutamento minucioso no sentido de captar os melhores futebolistas para a sua equipa. Aos atletas eram-lhes oferecidos bons empregos na fábrica, na qual trabalhavam de segunda a sexta-feira, deixando o fim-de-semana para fazer aquilo para o qual haviam sido contratados: jogar o melhor futebol que sabiam. 



O primeiro estádio construído na América
única e exclusivamente para o soccer
A paixão em torno do soccer crescia a olhos vistos na nação yankee nos anos 10, de tal forma que a modalidade ascende à elite do desporto norte-americano a par do baseball ou do american football. Esse aumento de popularidade do belo jogo entre o povo, fez com que Bethlehem Steel Corporation construísse o primeiro estádio destinado única e exclusivamente à prática do futebol: o Bethlehem Steel Athletic Field, com capacidade para cerca de 2400 pessoas - hoje em dia propriedade do Moravian College, que o destina para os jogos da sua equipa de futebol americano. A glória desportiva não tardou a chegar à cidade de Bethlehem, que na temporada de 1914/15 vê a sua equipa vencer a American League of Philadelphia, uma espécie de liga regional. Mas o ponto alto dessa temporada aconteceu na então competição rainha do soccer estado unidense, a U.S. National Challenge Cup - atual US Open Cup, ou Taça dos Estados Unidos da América. Foi a primeira grande competição futebolística da nação norte-americana, e vencê-la era o equivalente a conquistar a América! Na final, o Bethlehem Steel derrotou os Brooklyn Celtic por 3-1, numa partida realizada no Taylor Stadium, na Pensilvânia. Nesse encontro brilharam algumas das primeiras grandes estrelas da história do Bethlehem Steel FC, cidadãos de origem britânica que haviam chegado aos Estados Unidos com a missão de colocar o clube no topo da América, no que a futebol diz respeito. Tommy Fleming, autor de um golo nessa final e um dos jogadores mais preponderantes na conquista desse primeiro êxito, foi uma dessas primeiras estrelas. Nascido na Escócia, Fleming havia tido uma primeira incursão no futebol dos States na primeira década do século XX, ao serviço do Fore River, de Massachusetts, antes de regressar ao seu país para representar o Morton. Ele foi uma das primeiras contratações da Bethlehem Steel Corporation para defender as cores da sua equipa, tendo-o feito até 1924. É considerado pelos historiadores do futebol estado unidense como um dos primeiros grandes extremos daquele país. Ao lado de Fleming no campo de batalha estavam ainda nomes como John "Jock" Ferguson, Robert Millar e Robert Morrison, também eles escoceses de berço e contratados especificamente para ajudar o clube a encontrar o caminho da glória. Ferguson, por exemplo, era um experiente lateral esquerdo que havia atuado no Leeds City - a semente do atual Leeds United -, ao passo que Millar – um avançado - chegou à América proveniente do St. Mirren em 1911, tendo em 1915 apontado uns impressionantes 54 golos em 33 jogos ao serviço do clube de Bethlehem. Quinze anos mais tarde, e já na qualidade de treinador, Robert Millar liderou a seleção dos Estados Unidos da América no primeiro Mundial FIFA, realizado no Uruguai, onde aí conquistou um brilhante terceiro lugar, a melhor classificação obtida até hoje pela nação yankee em Mundiais. No centro do terreno atuava Robert Morrison, outro craque proveniente das Highlands, e que antes de chegar ao continente americano havia defendido por uma ocasião as cores da Escócia numa partida internacional contra a vizinha e inimiga Inglaterra.
O cortejo pelas ruas da cidade após a conquista da American Cup
Estes foram alguns dos craques que iniciaram o percurso vitorioso do Bethlehem Steel FC ao longo da década de 10, e que culminou com mais três triunfos na U.S. National Challenge Cup – nos anos de 1916 (vitória por 1-0 sobre o Fall River Rover), de 1918 (triunfo novamente alcançado diante do Fall River Rover, por 3-1) e de 1919 (vitória sobre o Paterson, por 2-0). Paralelamente a estas conquistas o conjunto de Bethlehem somou ainda os títulos da American Cup – em 1916, 1917, 1918 e 1919 –, outra competição de nível elevado no plano nacional do emergente soccer norte-americano. Encontramos aqui muitas “dobradinhas”, ou seja, o clube dominou em diversos anos as duas maiores competições do país. Por estes dias o Bethlehem Steel FC era indiscutivelmente a maior potência do futebol da América, fruto do grande investimento financeiro que a empresa que lhe dava o nome fazia ano após ano, recrutando no Reino Unido matéria prima de qualidade que acabaria por ter um papel preponderante não só no incremento da popularidade do futebol em Terras do Tio Sam como também, e sobretudo, na abertura dos caminhos do profissionalismo. Prova da grandiosidade do clube é o facto de 15 jogadores que integraram a equipa ao longo da década de 10 foram nomeados para o Hall of Fame do futebol dos EUA, a maior distinção que um atleta pode ter na sua carreira.


Reconhecimento internacional



A equipa que esteve em digressão pela Suécia e Dinamarca em 1919
Dentro de portas o prestígio do Bethlehem Steel FC brilhava com uma intensidade crescente. Brilho esse que no final da década começava a transpor as fronteiras do continente americano rumo à Europa. Em 1919 o clube escreve mais uma página histórica, não só da sua existência como do próprio soccer dos EUA, ao tornar-se na primeira equipa profissional daquele país a atuar no Velho Continente. Quando a federação sueca enviou o convite à United Soccer Football Association para esta enviar a terras nórdicas uma equipa, a escolha do organismo norte-americano foi unânime: o Bethlehem Steel FC. Em Gotemburgo, Helsinburgo, Estocolmo e Copenhaga (na Dinamarca) a equipa efetuou vários jogas contra combinados locais, tendo vencido sete, empatado dois e perdido cinco. Os grandes campeões dos EUA, como foram anunciados aos quatro ventos pela Suécia e Dinamarca, jogaram para estádios repletos de curiosos entusiastas em ver em ação o popular clube de Bethlehem. Mais um facto que atesta a grandeza deste clube.

Archie Stark: o bombardeiro do soccer estado-unidense

Archie Stark
Já aqui foi dito que o crescimento do Bethlehem Steel FC foi concretizado graças ao dinheiro da Bethlehem Steel Corporation, que contratou em Inglaterra e Escócia – sobretudo neste último país – jogadores de elevada qualidade que conduziram este emblema à glória e fama internacional. Glória e fama que continuaram, de certa forma, a pairar sobre os céus de Bethlehem na década de 20, embora com menos intensidade do que nos anos 10. A explicação alude ao facto de a Bethlehem Steel Corporation ter começado a enfrentar alguns problemas financeiros no que ao investimento da sua equipa de futebol dizia respeito. Embora também, e há que frisá-lo, este abrandamento do clube no trilho das grandes conquistas nacionais tenha acontecido porque outros emblemas um pouco por toda a América começavam também eles a abraçar o profissionalismo e a contratar jogadores de referência que os conduzisse ao patamar da glória e fama que era habitado pelo Bethlehem Steel FC. Um desses emblemas, e principal rival do clube de Bethlehem na luta pela glória e fama a nível nacional era o Fall River Marksmen, do Estado de Massachusetts, e onde pontificavam alguns dos mais notáveis futebolistas estado-unidenses dessa segunda década do Século XX, entre outros, Jimmy Douglas – guarda-redes titular da seleção norte-americana no Mundial de 1930 –, o criativo médio escocês Jimmy Gallagher, Bert Patenaude – autor do primeiro hattrick num Campeonato do Mundo, precisamente em 1930 –, ou o luso descendente Billy Gonsalves, considerado por muitos como o maior jogador de todos os tempos do soccer da América. Se o domínio a nível estatal, ou regional, continuava a ser avassalador, no plano nacional o Bethlehem Steel FC apenas voltou a chegar à glória em 1924, na American Cup – após derrotar na final o grande rival de Fall River por 1-0 –, e em 1926 na U.S. National Challange Cup, na sequência de uma esmagadora vitória em Brooklyn (Nova Iorque) ante o Bem Millers por 7-2. Nesse triunfo o destaque maior vai para aquele que é considerado como o avançado mais mortífero da história do soccer nos EUA: Archie Stark. Nasceu em Glasgow (Escócia) nos finais do século XIX – mais concretamente em 1897. Archibald, o seu nome próprio, nunca defendeu qualquer emblema do seu país natal, já que muito cedo, com 14 anos, emigrou com os seus pais para New Jersey, tendo ali mesmo iniciado a sua aventura no soccer. Antes de ser contratado pelo Bethlehem Steel em 1924, Stark atuou em diversos clubes, alguns de menor dimensão, como o Kearny Scots (New Jersey), ou o Babcock & Wilcox, e noutros de maior nomeada, casos do New York Field Club e do Paterson. O escocês chega a Bethlehem numa altura em que a fábrica que gere o clube tem que vender algumas das suas principais pérolas futebolísticas para fazer face às dívidas acumuladas em torno do soccer. Abra-se um parênteses para dizer que Archie Stark era um velho sonho dos responsáveis do Bethlehem Steel FC, que em 1919, na digressão efetuada à Suécia e à Dinamarca, integraram o avançado escocês como jogador convidado nessa famosa digressão. A passagem de Stark por Bethlehem resume-se aos golos, às centenas de remates certeiros que fizeram dele o maior “bombardeiro” da história do futebol dos Estados Unidos da América (EUA). Senão vejamos. Na temporada de estreia (1924/25) ele faz o gosto ao pé por 70 ocasiões em 46 disputados (!), sendo que em termos percentuais isto equivale dizer que sozinho ele fez 52,75% dos golos da sua equipa. Este é um recorde que até hoje ninguém sequer ousou bater. Na época seguinte, a máquina de golos de Bethlehem voltou a fazer-se notar: 59 golos em 47 jogos. A veia goleadora de Stark foi decisiva para a conquista da quinta U.S. National Challenge Cup por parte Bethlehem Steel FC, que na grande final derrotaria o Bem Millers por 7-2 e com um poker do goleador escocês. Na temporada seguinte a inspiração goleadora da então grande referência de Bethlehem foi menos notada, mas ainda assim digna de registo: 25 golos em 33 jogos. Em 1927/28 ele fez 34 golos em 52 encontros, e na derradeira temporada ao serviço do clube a fasquia subiu para 49 golos em 42 encontros disputados.


Archie Stark, com as cores
do Bethlehem Steel durante
a digressão escandinava
No total, Archie Stark fez 275 golos em 252 jogos disputados pelo Bethlehem Steel FC. Foi internacional pelos EUA em duas ocasiões, contra os vizinhos do Canadá, e a sua lenda só não é equiparável à de Billy Gonsalves por causa de uma simples digressão à Europa. Passamos a explicar esta curiosidade. Durante décadas a dúvida sobre quem teria sido o primeiro grande jogador do soccer norte-amerciano da História persistiu entre historiadores e simples apaixonados pelo belo jogo. Billy Gonsalves ou Archie Stark. Ambos rivalizaram entre si por esse estatuto, mas o luso descendente leva para muitos a melhor, não só divido à sua apurada técnica – Stark era mais um finalizador do que um mago dos dribles, como era Gonsalves – mas igualmente por o facto de ter declinado o convite para defender as cores dos EUA no primeiro Mundial de futebol. Stark preferiu aceitar o convite do Fall River Marksmen para realizar alguns jogos de exibição na Checoslováquia, Hungria e Áustria. Stark terá alegado que preferia viajar pela Europa do que ir a Montevideu jogar contra seleções de segunda linha do futebol planetário de então. No entanto, quem brilhou a grande altura foi a seleção yankee nesse primeiro Mundial, alcançando o já referido terceiro lugar, muito por influências das exibições de Billy Gonsalves que a partir de então passou a ostentar o estatuto de lenda maior do soccer. Historiadores desportivos norte-americanos ainda hoje opinam que se Stark tivesse integrado a comitiva dos EUA rumo ao Uruguai talvez a sua seleção tivesse regressado a casa com a… a taça na mão (!), caso o ataque da equipa nacional estivesse entregue à dupla Stark/Gonsalves. Suposições, apenas! No entanto, Archie ainda hoje detém um recorde na seleção nacional que apenas outros três jogadores (no caso, Aldo Donelli, Landon Donovan e Joe Max Moore) igualaram, isto é, o facto de ter apontado quatro golos num jogo, algo que aconteceu num dos duelos com o Canadá em novembro de 1925. 1930 foi precisamente o ano em que Stark deixou Bethlehem, tendo terminado a sua carreira no ponto de partida, isto é, em Kearny.



Voltando ao início desta nossa longa viagem para chegar ao fim de linha do grandioso Bethlehem Steel FC. Nos finais dos anos 20 o soccer dos EUA vivia dias conturbados, fruto das guerras entre a American Soccer League e a United States Football Association pelo controlo da modalidade em termos nacionais. Os clubes entraram na guerra, juntando-se a uma ou à outra entidade. Competições como a American Cup, foram extintas, o que levou a que alguns emblemas deixassem de competir. Outros como o Bethlehem Steel FC ignoraram boicotes, como o de 1928, ordenado pela American Soccer League, que face a isto decide expulsar o clube da U.S. National Challange Cup. A juntar aos problemas financeiros este seria o passo final do Bethlehem Steel FC rumo ao abismo, à extinção, algo que viria a acontecer em 1930. Em 2015 uma espécie de nostalgia veio ao de cima em Bethlehem quando foi anunciada a fundação de um nome soccer club na cidade, batizado de: Bethlehem Steel Football Club. Filial dos Philadelphia Union (clube da Major Soccer League), este novo emblema atua hoje nos terceiro escalão do futebol estado-unidense, na United Soccer League, e é não mais do que uma homenagem ao seu progenitor e pioneiro da história do futebol profissional dos EUA. Como sustentam inúmeros historiados norte-americanos, a história do Bethlehem Steel FC (original) é a história do futebol na América.

quinta-feira, setembro 08, 2016

Histórias do Planeta da Bola (17)... Pro Vercelli: O berço do rei dos "capocannonieri" idealizado por um campeão olímpico de esgrima


Turim e Milão são mundialmente reconhecidos como os grandes centros do futebol italiano. As duas cidades repartem entre si a (esmagadora) maioria dos títulos nacionais e internacionais angariados pelas squadras transalpinas ao longo de mais de 100 anos de história. Porém, nem sempre as luzes da ribalta estiveram focadas nestas duas urbes do norte de Itália no que a futebol concerne. Houve um tempo - estendido ao longo de quase duas décadas - em que os olhares dos tifosi estavam cravados numa pequena localidade situada precisamente a meio caminho entre Milão e Turim. Uma localidade que mais do que revelar ao Mundo um dos primeiros gigantes do futebol italiano criou uma identidade própria que haveria de inspirar o então jovem calcio a partir rumo às conquistas que iriam ser alcançadas pelas gerações vindouras. Façamos então uma viagem até às primeiras décadas do século XX, mais concretamente até Vercelli, onde nos espera a mítica e inolvidável história della Pro. À semelhança do que aconteceu um pouco por todo o planeta o futebol (moderno) ancorou em Itália no porto de Génova, na reta final do século XIX, pela mão dos marinheiros e comerciantes ingleses que ali se deslocavam em trabalho. Naquela cidade portuária foram dados os primeiros passos do modern football nascido em Inglaterra, e foi ali que, de forma natural, acabaria por nascer em 1893 o primeiro senhor do futebol transalpino, o Genoa Cricket & Football Club. Na génese deste emblema estiveram pois cidadãos britânicos, que usavam o futebol para preencher os seus tempos livres. O Genoa 1893 - como ainda hoje é conhecido - fez uso da sua força e conhecimentos do jogo para arrecadar os primeiros títulos mais pomposos do calcio - o nome com que os italianos cedo batizaram o football, muito pelas parecenças que o jogo criado pelos ingleses tinha com o calcio fiorentino, que há muitos séculos se praticava no país da bota. Entre 1897 e 1907 o Genoa confirma o seu poderio ao conquistar seis dos seus nove títulos de campeão nacional, uma supremacia que foi ameaçada a espaços pelos também ingleses do Milan Cricket Fooball Club, a semente do Milan dos dias de hoje. Estas conquistas, quer de genoveses quer de milanistas, assentavam numa cultura muito britânica, ou seja, a filosofia de jogo interpretada por estes dois emblemas era uma fiel cópia daquela que era usada na Velha Albion, baseada no kick and rush. Itália não tinha pois uma identidade de jogo própria, algo que viria a mudar a partir de 1903 pela mão do hoje quase anónimo Pro-Vercelli.

Da ginástica ao futebol pela mão de um campeão olímpico de esgrima

Marcello Bertinetti
A Società Ginnastica Pro-Vercelli nasceu em 1892, longe de imaginar que alguma vez o recém chegado a Itália futebol pudesse catapultar a cidade para os píncaros da fama. Na génese daquele que é um dos clubes mais antigos do país da bota esteve a ginástica, como aliás, a própria designação da coletividade indicava. Domenico Luppi, um professor de ginástica, é o progenitor do clube nascido na pequena cidade - com cerca de 45.000 habitantes na atualidade - da região de Piemonte. Luppi deu vida a um clube que no seu ADN incorporava ainda a esgrima, secção que iria revelar ao Mundo alguns nomes sonantes da história da esgrima italiana, como foi o caso de Marcello Bertinetti, um cidadão nascido em Vercelli, em 1885, que atingiu a imortalidade após ter vencido duas medalhas de ouro olímpicas por equipas em 1924 (Jogos de Paris) e 1928 (Jogos de Amesterdão), isto para além de uma medalha de prata e outra de bronze - ambas na vertente coletiva - respetivamente nas Olimpíadas de Londres (1908) e Paris (1924). Bertinetti foi acima de tudo um desportista multifacetado, e para além da modalidade que o tornou célebre foi igualmente um... calciatore, traduzindo para a língua de Camões, um jogador de futebol. Desconhece-se, porém, se foi, ou não, um exímio intérprete do belo jogo, mas o que se sabe é que foi por sua influência que o futebol nasceu no seio da Pro Vercelli. Diz a história que após ter visionado in loco, em Turim, um encontro disputado pela Juventus, Marcello Bertinetti regressa à sua terra natal com a ideia de ali criar uma equipa de futebol. Nesse sentido procura os responsáveis da Società Ginnastica Pro-Vercelli para lhes apresentar a ideia, que de pronto seria aceite e oficialmente implantada em 1903, ano em que acontece a filiação do clube na Federação Italiana de Futebol. O primeiro encontro acontece a 3 de agosto desse ano no âmbito de um torneio triangular em honra de San Eusebio, o padroeiro da cidade, que juntou ainda as equipas do Forza e Costanza (de Novara) e do Audace (oriundo de Turim). A Pro saiu vencedora, dando assim o pontapé de saída rumo a duas décadas de glória.

Conquistar a Itália com a prata da casa sob uma identidade muito própria

Milano, Leone e Ara,
o trio mágico do meio campo
da Pro Vercelli
Com a entrada da Pro Vercelli no então ainda muito jovem Mundo do futebol italiano, assistiu-se à primeira grande revolução a diversos níveis no país futebolístico, digamos assim. O primeiro deles fazia alusão à então invulgar política de formação do clube. Contrariamente aos outros emblemas italianos da época, a Pro Vercelli constrói a sua equipa com base única e exclusivamente em futebolistas nascidos na cidade, em atletas da casa, identificados com a cidade e acima de tudo com o clube. A Pro Vercelli implantava assim a filosofia, passo a expressão, da formação no futebol italiano. O clube presidido pelo conceituado advogado local Luigi Bozino edifica um então inédito plano de formação que passava pela criação de equipas de base, juniores, juvenis, iniciados, etc., como hoje em dia são conhecidos, e às quais eram atraídos os rapazes da terra. Mais do que moldar futebolistas locais com vista ao sucesso futuro do clube a política de formação cria de igual modo a mística que ajudou a Pro a alcançar e a permanecer durante quase duas décadas no topo do futebol italiano. Uma mística que englobava uma combinação de amor e orgulho na defesa da camisola do clube da terra e que era incutida nos bambini (rapazes) desde o momento em que estes entravam para os escalões mais jovens. Aliado a este aspeto veio o conceito tático. Também aqui a Pro Vercelli foi pioneira na história do futebol em Itália. Como já foi referido, as grandes equipas italianas da época, nomeadamente o Genoa 1893, a Juventus e o Milan - os três clubes que até 1908 haviam vencido o título de campeão nacional - apresentavam nas suas equipas diversos jogadores ingleses, a maior parte deles chegados a Itália por motivos profissionais que nada tinham a ver com o jogo. Como bons ingleses usavam e abusavam do kick and rush, típico estilo nado e criado em Inglaterra e que assentava - ou assenta - num estilo de jogo direto e físico. Em Vercelli seria criado um estilo diferente, de certa forma mais elegante e técnico, assente na posse de bola, e que no futuro viria a contagiar não só outras equipas transalpinas como a própria squadra azzurra (seleção nacional).

Da estreia oficial à glória nacional em apenas dois anos


A equipa que venceu o primeiro dos sete scudettos da história da Pro Vercelli
Em 1906 a Pro Vercelli inicia o seu percurso oficial nos caminhos do futebol italiano. Isto é, passa a competir no segundo escalão nacional. Ali, permanece apenas um ano, alcançando a promoção ao principal escalão em 1906/07 depois de conquistar o ceptro secundário com um grupo formado exclusivamente por jogadores nascidos em Vercelli. Entre este grupo destacavam-se três futebolistas, três figuras que para os historiadores do belo jogo foram o esteio - dentro de campo - dos primeiros sucessos do clube de Piemonte. Giuseppe Milano, Pietro Leone e Guido Ara, formavam o então denominado de meio campo maravilha dos Leões de Vercelli como nos anos seguintes a mítica equipa seria conhecida em toda a Itália. Guido Ara era o capitão de equipa, e na voz de muitos historiadores é visto como o primeiro grande futebolista italiano, um tecnicista requintado que primava ainda por ser um exímio passador. Em 1907/08 a Pro faz a sua estreia no principal escalão de Itália. Uma estreia auspiciosa já que após superar a Juventus no campeonato regional de Piemonte o combinado de Vercelli é apurado para o campeonato nacional, levando a melhor sobre os campeões das regiões de Ligura (o Andrea Doria, de Génova) e da Lombardia (o Milanese). A Pro Vercelli vencia o seu primeiro scudetto (máximo título nacional). Pela primeira vez uma equipa 100 por cento de origem italiana vencia o máximo galardão do futebol italiano, e mais do que isso todos os jogadores eram filhos de Vercelli. Os seus nomes são pois eternos: Innocenti, Salvaneschi, Celoria, Ara, Milan, Leone, Romussi, Frésia, Visconti, Rampini e Bertinetti, este último o introdutor do futebol no seio da Pro Vercelli e futuro campeão olímpico de esgrima, como já referimos. A façanha seria repetida na temporada seguinte, quando depois de levar a melhor no Regional de Piemonte sobre os dois gigantes de Turim, a Juve e o Torino, a Pro derrotou na final nacional, por um total de 4-2 (numa final disputada a duas mãos), os campeões da região da Lombardia, o Milanese. Por esta altura já toda a Itália se curvava diante dos Leões de Vercelli, ou os camisas brancas, como também era conhecido o clube. Neste aspeto há um capítulo curioso que merece ser evocado. Nos primeiros anos de atividade futebolística a Pro Vercelli utilizava um equipamento em tudo idêntico à Juventus, isto é, camisola com riscas verticais pretas e brancas, calção preto e meias pretas. Porém, a lavagem constante dos equipamentos fez com as riscas pretas da camisola fossem ficando esbatidas, quase impercetíveis, pelo que os responsáveis do emblema decidem posteriormente adotar o branco como única cor da camisola. Esta história dá aso a uma outra, que refere que a seleção italiana adotou (desde 1910) o branco como cor do seu equipamento alternativo em homenagem aquela que ainda hoje é vista como a primeira grande equipa de Itália, a Pro Vercelli.

Primeiro grande escândalo do calcio impediu a Pro de chegar ao tri

Luigi Bozino,
o presidente dos grandes sucessos
Na temporada de 1909/10 a Itália assiste aquele que é considerado o primeiro escândalo do seu futebol. O primeiro de muitos, ou não fosse a Itália um país rico no que a escândalos futebolísticos diz respeito. Nessa longínqua época o campeonato italiano sofre algumas alterações de figurino, desde logo o facto de deixar de existir uma final nacional que opunha os vencedores dos regionais para passar a haver uma prova semelhante ao que acontece na atualidade, ou seja, em que as equipas jogam entre si em sistema de poule, cujo vencedor é o conjunto que soma mais pontos. Este é considerado por como o ponto de partida da atual Serie A italiana. Foram nove as equipas que integraram a competição de 09/10, tendo no final o Inter de Milão e a Pro Vercelli dividido o primeiro lugar com 25 pontos somados. Face a este empate a Federação Italiana de Futebol (Federazione Italiana Giuco Calcio) decidiu agendar um play-off entre os dois combinados, uma finalíssima que iria determinar o campeão nacional. Com diversos jogadores seus envolvidos num torneio militar em Roma, a Pro solicitou à alta instância do futebol do seu país o adiamento do play-off, ao passo que o seu adversário, o Inter, fazia pressão para que esse adiamento não acontecesse. Medo ou desrespeito por parte dos milaneses? Ou ambos? O que é certo é que a FIGC ficou do lado do Inter - há quem ainda hoje defenda que razões extra futebol estiveram na origem desta decisão federativa - e o encontro acabou por se disputar a 24 de abril de 1910, como estava inicialmente agendado. Em forma de protesto o presidente da Pro Vercelli, Luigi Bozino, decide enviar para o duelo decisivo uma equipa composta por... crianças! Nessa tarde, em Vercelli, local da partida, e diante de pouquíssimos espectadores - numa prova de que a cidade estava ao lado do seu clube neste protesto - a Pro alinha com jogadores do seu escalão mais baixo, sendo que o jogador mais velho tinha somente 15 anos! Conclusão, o Inter esmagou os Leões, ou leãozinhos, neste caso, por 10-3, e conquistou o seu primeiro título nacional. Esta atitude da Pro Vercelli valeu-lhe inicialmente um castigo severo por parte da FIGC, que decide multar e suspender o emblema de Piemonte das competições futebolísticas. A intenção é posteriormente revogada, muito por ação de Guido Ara, que recolhe uma série de assinaturas junto dos grandes clubes italianos no sentido de reverter a decisão da federação, e já com Giuseppe Milano nas funções de treinador/jogador a Pro recupera o ceptro na época seguinte ao vencer a Serie A com 27 pontos, mais cinco que o vice-campeão Milan, onde pontificava o bombardeiro belga Louis van Hege. O quarto scudetto viajou para Vercelli em 1911/12, em mais um capítulo de evidente superioridade dos Leões.

Principal fornecedor de jogadores para a Squadra Azzurra

Um jogo entre a Pro e o Genoa em 1913
1912 é ainda o ano que marca a estreia oficial da seleção italiana numa grande competição internacional, no caso o Torneio Olímpico, que na época era tão só a prova futebolística mais importante do planeta. Para as Olimpíadas que nesse ano se realizaram em Estocolmo o selecionador italiano, o então jovem (com apenas 26 anos) Vittorio Pozzo, convoca 18 jogadores, sendo que sete deles (Felice Berardo, Angelo Binaschi, Pietro Leone, Giuseppe Milano, Modesto Valle, Felice Milano e Carlo Rampini) pertencem aos quadros da Pro Vercelli, que é desta forma o emblema mais representado na Squadra Azzurra que competiu na Suécia. Em 1913 a Itália defronta (num amigável) a Bélgica com um onze em que nove jogadores são da Pro Vercelli, numa demonstração, mais uma, inequívoca do poderio do clube de Piemonte no cenário principal do calcio. A primeira parte da época dourada da Pro Vercelli é encerrada em 1912/13 com a conquista do tricampeonato, do quinto scudetto da sua jovem existência. Pouco depois estourava a I Guerra Mundial, que um pouco por toda a Europa encostaria para canto a bola de futebol. O campeonato italiano é interrompido em 1915 - após o surpreendente Casale e o Genoa 1893 terem conquistado a coroa de reis de Itália - e volta somente na temporada de 1919/20 quando a Europa lambia ainda as feridas provocadas pela Guerra. Porém, as armas não mataram a mística de Vercelli e da sua Pro, que ressurge no grande palco do calcio com uma nova geração vencedora orientada - desde o banco - pela antiga lenda Guido Ara. Jovens talentosos nascidos nas escolas da Pro que levam a melhor sobre a concorrência na temporada de 1920/21, arrecadando desta forma o sexto título nacional do clube de Piemonte. Entre estes jovens talentos encontra-se o defesa Virginio Rosetta, que em 1923 troca Vercelli por Turim, e a Pro pela Juve a troco de 50 mil liras, naquela que ainda hoje é considerada a primeira transferência (envolvendo dinheiro) do futebol italiano. Eram os primeiros sinais do profissionalismo que estava prestes a vigorar (também) em Itália. Rosetta volta a ser um dos esteios na conquista do sétimo e último scudetto pela Pro em 1921/22.

Rei dos capocannonieri nasceu em Vercelli e revelou-se ao Mundo na Pro

Silvio Piola com as cores da Pro
A 29 de setembro de 1913 já a Pro Vercelli ostentava nas suas vitrinas cinco títulos de campeão italiano. É neste dia que nasce, na pequena Vercelli, um dos cidadãos mais nobres desta cidade: Silvio Piola. Tal como tantos outros bambini Silvio desperta para o futebol no mítico clube da sua terra. O seu talento faz com que aos 16 anos seja incorporado na equipa principal da Pro! Sobre o terreno de jogo atua como avançado, e o seu faro pelo golo aliado à sua perícia técnica despertam cedo a cobiça de outros emblemas de Itália. Piola atua pela Pro Vercelli entre 1929 e 1935, envergando a camisola branca em 127 jogos, tendo apontado 51 golos. Piola detém ainda hoje uma série de recordes em Itália. Um deles reside no facto de ser o jogador mais jovem a apontar um poker (quatro golos) numa só partida, algo que aconteceu diante do Alexandria, numa altura em que este astro tinha apenas 18 anos. Já foi referido que no início dos anos 20 o profissionalismo começava a bater à porta de Itália, tendo a Pro, que apesar de desportivamente ser uma potência do país, não era de todo um clube rico, muito longe disso na verdade, sofrido na pele as consequências desse mesmo profissionalismo. A Pro era um clube que vivia da sua (rica) formação. Apenas. Assim, os clubes economicamente mais abastados, oriundos de Turim, Milão e Roma, lançavam o isco às principais pérolas dos clubes mais modestos, sob o ponto de vista económico, voltamos a repetir, como era o caso da Pro Vercelli. Rosetta foi, como já vimos, o primeiro jogador a ser transferido por uma verba monetária em Itália, sendo que Piola não demorou muito a seguir-lhe o caminho. Reza a história que a Lázio namorou o jogador vezes sem conta, e não desistiu enquanto não o levou para Roma. Perante isto, e quiçá pressentindo que sem a sua principal estrela e com o profissionalismo a tomar conta do futebol em Itália, o presidente da Pro, Luigi Bozino, disse em certa ocasião que «não vendemos Piola por nenhum dinheiro deste Mundo. Se o vendermos a Pro Vercelli vai entrar em declive». Mais do que uma promessa (aos adeptos) esta declaração seria uma espécie de premonição do que iria acontecer em 1934, ano em que a Lazio leva Piola de Vircelli para a capital do Império. Uma transferência envolta em alguma polémica, pois segundo alguns historiadores a ida de Silvio Piola para Roma resultou de uma imposição do ditador Benito Mussolini, adepto confesso dos laziale. Piola e a Pro Vercelli seguiram caminhos diferentes nos anos seguintes. O jogador iria tornar-se numa lenda do calcio, já que para além de ter sido a principal referência da Squadra Azzurra na conquista do Campeonato do Mundo de 1938 é ainda hoje o jogador com mais golos na história da Serie A: 274 golos em 537 jogos disputados no principal escalão do futebol transalpino. Quanto à Pro, foi despromovida da Serie A curiosamente na época de 1934/35, a primeira sem Piola, e nunca mais, até hoje, lá regressou. Os oitenta anos seguintes foram passados a deambular pelos escalões secundários e regionais (!) do calcio. Hoje, a Pro Vercelli milita na Serie B, onde sobrevive - quase de forma anónima - na sombra de um passado de glória hoje ignorado pela esmagadora maioria dos tifosi. Não deixa de ser no entanto curioso que ao olhar para a lista de campeões da história do calcio o nome da Pro figure atrás de Milan, Juventus, Inter e Genoa 1893, com sete títulos de campeão no seu currículo, bem à frente de algumas das atuais potências italianas, casos da Roma (3 títulos), Lazio (2), Napoli (2) ou Fiorentina (2).