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sábado, agosto 14, 2021

Cidades do Futebol (4)... Glasgow: Uma cidade de coração dividido que em 1872 entrou na história do futebol mundial

Glasgow
Existem cidades que carregam consigo o agradável peso de terem sido pioneiras em diversos capítulos que marcam a história do futebol. É caso de Glasgow, a maior e mais agitada cidade da Escócia. É uma das cidades do Reino Unido mais visitadas, sendo que os seus visitantes ali são atraídos pela pluralidade de sua arquitetura, e pela sua fama de “cidade cultural”, onde cada monumento conta um pouco da vida desta urbe. Antiga locomotiva industrial do país, a cidade viveu um período de decadência, com o declínio da economia nos anos de 1960 e 1970, mas acabou por se reinventar, redescobriu a veia artística, passou por inúmeras obras e, hoje, está cheia de estilo, com muito o que ver e sentir. Mas há muito mais que monumentos recheados de história para ver e conhecer em Glasgow, e esse "mais" é naturalmente o futebol. Glasgow está intrinsecamente ligado à história do futebol planetário, já que foi aqui que em 1872 se jogou a primeira partida internacional. Mas já lá vamos. Falar de Glasgow é falar também daquele que foi o primeiro grande clube escocês, e quiçá um dos mais importantes do Mundo no século XIX, o Queen's Park Football Club. É o mais antigo emblema do futebol escocês, tendo sido preponderante na dinamização do Belo Jogo quer naquele país, quer em vários pontos do globo. Foi fundado em 1867, na zona sul e Glasgow, quatro anos depois da criação da Football Association, em Londres, sendo que a primeira notícia que dá conta da sua fundação reza o seguinte: "Glasgow, 9 de julho de 1867. Esta noite, às oito e meia, vários cavalheiros encontraram-se no n.º 3 de Eglinton Terrace com o propósito de formar um clube de futebol".

O clube foi responsável pela organização do primeiro jogo internacional oficial de futebol entre a Escócia e a Inglaterra em 1872. Os jogadores que representaram a Escócia neste encontro histórico eram todos membros do famoso clube de Glasgow, dado histórico que iremos recordar ao detalhe mais à frente. A influência do Queen’s Park no futebol escocês foi de tal maneira importante como prova o facto de terem levado o jogo para lá das fronteiras de Glasgow, até paragens como Lanarkshire, Dunbartonshire, Edimburgo e Dundee. Eles estiveram na origem da fundação (em 1873) da federação escocesa de futebol, e daquela que é a competição mais antiga do futebol daquele país e a segunda mais antiga do mundo, a Taça da Escócia, apenas superada em longevidade pela Taça de Inglaterra.

Pela mão do Queen's Park FC nasceu igualmente aquele que é hoje em dia o tempo sagrado do futebol escocês, o Hampden Park, que teve o privilégio de ter sido o maior estádio de futebol do mundo entre 1908 e 1950, sendo que ainda no presente detém a maior parte dos recordes de público do futebol europeu (incluindo o recorde geral de 149.415 espectadores para o jogo entre a Escócia e a Inglaterra em 1937).

Uma equipa vitoriosa do Queen's Park FC
O Queen's Park entrou ainda para a história por ser o clube onde em 1881 atuava Andrew Watson, nada mais nada menos do que o primeiro jogador negro a chegar a internacional, como também no primeiro a capitanear uma seleção nacional, neste caso a Escócia. Mas há mais factos relacionados com a vida deste clube que fazem história, como por exemplo no ano de 1871, altura em que é dado o pontapé de saída na FA Cup (Taça de Inglaterra), idealizada por Charles Alcock, sendo que um dos clubes que participou nessa histórica primeira edição foi precisamente o Queen's Park, chegando inclusive à final desta competição em duas ocasiões, 1884 e 1885, ambas perdidas para o Blackburn Rovers. O Queen's Park não só foi pioneiro na promoção do futebol no seu país, como também o ajudou a incrementar noutras paragens, como o País de Gales, ou a Irlanda, através de partidas de demonstração realizadas nestes países. Mas não se ficou por aqui o papel de "professores" do Belo Jogo. Já no século XX, em 1964 mais concretamente, o Queen’s Park fez uma digressão por África, representando a Escócia num torneio internacional no Quénia, integrado nas comemorações da independência daquele país. Um ano depois, o clube visitou a Nigéria e em 1967 a Serra Leoa, ajudando a desenvolver o jogo naqueles países. O clube guarda nas suas vitrinas inúmeros troféus, desde logo 10 Scottish FA Cup's (Taças da Escócia), competição que dominou entre 1874 e 1893.

Ao longo dos seus 150 anos de vida a camisola de listas horizontais pretas e brancas deste emblema foi envergada por centenas de jogadores, alguns deles nomes sonantes do futebol escocês, caso de Sir Alex Ferguson, que enquanto futebolista passou pelo clube entre 1957 e 1960. Hoje em dia, o Queen's Park é um clube menor no panorama do futebol escocês deambulando pelas divisões secundárias daquele país sem o brilho e a importância de outrora. Mas da História ninguém o apaga. 

Primeiro jogo internacional da história foi em Glasgow

Gravura do Escócia - Inglaterra
de 1872
O dia 30 de novembro de 1872 é considerado um marco importante na história do futebol, já que neste dia se disputou o primeiro jogo internacional entre duas equipas, neste caso, seleções nacionais, a Escócia e a Inglaterra. E onde se escreveu história pela primeira vez? Em Glasgow, pois claro. O campo Amuddy em Hamilton Crescent, em Partick, Glasgow, foi então palco da primeira partida internacional de futebol. De um lado a Inglaterra, equipada toda de branco com a insígnia dos três leões, e do outro a Escócia, envergando camisola azul escura com a insígnia de uma cabeça de leão, diante de uma multidão de 4.000 pessoas que tiveram de pagar 1 xelin para assistir ao encontro, sendo que para as damas a entrada era gratuita.

A partida terminou com o marcador em 0-0. Seleção da Escócia que era nada mais nada menos do que o Queen's Park, o grande clube das highlands (terras altas) daquele tempo. A ideia de organizar o primeiro jogo internacional pertenceu a Charles Alcock, membro do comité da Federação Inglesa de Futebol, que colocou um anúncio nos jornais de Glasgow e Edimburgo, desafiando os jogadores daquelas cidades a jogarem uma partida de futebol contra 11 jogadores ingleses. O desafio lançado acendeu uma faísca do lado escocês, tendo o Queen’s Park Football Club aceitado a oferta de Alcock. Robert Gardner e David Wotherspoon, ambos jogadores do Queen’s Park, enquanto jogavam em Londres pela sua equipa uma eliminatória da FA Cup permaneceram na capital inglesa após o jogo para uma reunião com membros da FA (Football Association) para acertar os detalhes do jogo. A partida e o local foram acordados entre os representantes da FA e da Rainha, tendo Glasgow sido o local escolhido para o desafio, a ter lugar no dia de Dia de Santo André.

Reza a história que a imprensa local fez uma forte propaganda em torno do jogo, para o qual foram disponibilizados autocarros especiais para sair da Miller Street, no centro de Glasgow, com destino ao recinto do encontro. Catorze horas foi o horário oficial de início do jogo, o qual teria um atraso de quinze minutos, pelo facto de ambas as equipas terem feito um aquecimento prévio. Imagens desenhadas por William Ralston - já que na época não existiam câmaras fotográficas - revelam o pormenor curioso dos jogadores ingleses a fumarem cachimbo enquanto exercitavam os músculos! O capitão escocês Robert Gardner, que jogaria mais quatro vezes contra a Inglaterra e perderia apenas uma, foi o responsável pela seleção da equipa escocesa. Ele, que seria no futuro presidente da Federação Escocesa de Futebol.

Robert Gardner
Gardner foi para muitos a primeira lenda do futebol escocês. Nascido precisamente em Glasgow, em 1847, ele foi um dos membros fundadores do Queen's Park, tendo sobre ele sido escrito na altura que "era tão versátil que já o vimos atuar em todas as posições do campo - guarda-redes, defesa, médio e até atacante - mas foi como guarda-redes que mais se destacou. Quando nos lembramos dos homens brilhantes que desde então se colocaram entre os postes nas partidas internacionais e nas últimas partidas da taça, devemos confessar que ninguém jamais usou as mãos e o peso para obter mais vantagens do que Gardner".

E nesse célebre primeiro jogo internacional ele foi um dos destaques em campo, havendo quem diga que ele foi o principal responsável por manter a zeros a baliza escocesa. A histórica crónica da partida publicada pelo jornal Glasgow Herald refere que: "Ambos os lados trabalharam muito e mostraram um jogo excelente. Os ingleses tinham toda a vantagem de peso, sendo em média duas vezes mais pesados que os escoceses e tinham a vantagem de velocidade. O ponto forte da equipa da casa é que eles jogaram muito bem juntos". Ambas as equipas eram descritas com estilos contrastantes. Os jogadores da Inglaterra optavam pelo estilo de posse de bola e a tentar sair em drible, enquanto a seleção escocesa optava mais por um futebol de passes, ou de combinação entre os seus jogadores, uma espécie de tiki-taka.

Mais uma gravura do 
mítico jogo
A Inglaterra foi a seleção mais forte no segundo tempo, embora ambos os conjuntos não se pouparam a esforços para marcar. Após os 90 minutos a partida terminaria com um empate sem golos. Um resultado aparentemente justo para ambos os lados devido ao jogo ter sido muito equilibrado. Uma coisa é certa, a Escócia e a Inglaterra são os pioneiros do futebol internacional, foram estes dois países que deram o pontapé de saída nos confrontos entre países e que posteriormente deram aso à criação de inúmeras competições internacionais, como hoje as conhecemos. Para a história aqui ficam os “onzes” que nessa tarde de 30 de novembro de 1872 evoluíram em Glasgow:

Escócia: Bob Gardner, William Ker, Joseph Taylor, James Thompson, James Smith, Robert Smith, Robert Leckie, Alexander Rhind, William Muir MacKinnon, Jamie Weir, David Wotherspoon (todos do Queen’s Park FC).

Inglaterra: Robert Barker (Hertfordshire Rangers), Ernest Greenhalgh (Notts County), Reginald Welch (Wanderers), Frederick Chappell (Oxford University), William John Maynard (First Surrey Rifles), John Brockbank (Cambridge University), Charles Clegg (Sheffield Wednesday ), Arnold Kirke Smith (Oxford University), Cuthbert Ottaway (Old Etonians/Oxford University), Charles John Chenery (Cristal Palace), Charles John Morice (Barnes).

Dérbi de religiões

Já aqui foi dito que o Queen’s Park é o clube mais antigo de toda a Escócia, passando a sua quase total existência na condição de puro amador do Belo Jogo. Porém, no mapa do futebol Glasgow é mundialmente conhecida por ser o berço de dois gigantes: O Celtic e o Rangers. Foram estes dois clubes que resgataram a partir do início do século XX o domínio do futebol escocês das mãos do Queen’s Park. O Celtic foi fundado em 1887 por um grupo de imigrantes irlandeses que professavam a religião católica. Ao longo da história os católicos de Glasgow, como também são conhecidos, contam com mais de 50 campeonatos nacionais ganhos, 39 FA Scottish Cups, entre outros troféus domésticas, mas o grande orgulho dos seus adeptos resido no facto de terem sido a primeira equipa britânica a conquistar a Taça dos Clubes Campeões Europeus, um feito conquistado em 1967, em Lisboa, no Estádio Nacional, com um plantel formado na totalidade por futebolistas nascidos na zona de Glasgow, orientados por Jock Stein, lendário treinador que em 13 anos de comando no Celtic arrecadou para o clube 25 (!) títulos nacionais (entre campeonatos, taças e taças da liga). Na final da competição europeia em 67, os escoceses derrotaram o poderoso Inter de Milão por 2-1.

Os famosos Lisbon Lions de 67
Mais novo que o Celtic é o Rangers Football Club, ou simplesmente Glasgow Rangers, fundado em 1873, por um grupo de jovens praticantes de remo seduzidos pelo futebol. Desde a sua fundação que este clube está ligado ao protestantismo e ao unionismo político. Tal como o vizinho Celtic, os azuis de Glasgow colecionam largas dezenas de títulos, na verdade o Rangers entra para a história como o clube mais titulado do Mundo, títulos oficiais, diga-se, são mais de uma centena, com destaque para os 55 campeonatos nacionais ganhos até hoje, 33 taças da Escócia, 27 taças da Liga, entre muitos outros. No Velho Continente tem apenas um sucesso, mais concretamente a Taça das Taças, troféu conquistado em 1972 à custa do Dínamo de Moscovo.

Mas à parte dos muitos títulos e do domínio que estes dois gigantes têm exercido em mais de um século e meio no futebol escocês, há um pormenor que faz com que a bola seja encarada mais do que uma questão desportiva nas margens do rio Clyde. Glasgow vive desde sempre de uma forma especial os encontros entre Celtic e Rangers, é mais do que um simples jogo de futebol, mas antes um ato de fé que tem atravessado gerações de escoceses.

Jogador do Rangers
celebra vitória na Taça das Taças
O derby Old Firm, como lhe chamam há mais de 100 anos, marca o confronto entre estes dois gigantes, marca um confronto de religiões, de um lado os católicos e do outro os protestantes. O primeiro dérbi foi disputado em 1888 – o Celtic venceu por 5-2 - e desde então tem crescido a inimizade entre estas duas comunidades, sendo que cada vez que os dois clubes se enfrentam Glasgow vive um verdadeiro fenómeno social que mobiliza toda a cidade.

Reza a história que esta velha e intensa rivalidade subiu de tom com a subversão da República da Irlanda contra o império inglês, sendo que durante largas décadas o Rangers orgulhava-se de não contratar jogadores da religião católica, acabando esta tendência quando em 1896 o clube contratou Maurice Johnston que algumas épocas antes defendera as cores do Celtic.

Ambos os clubes monopolizam entre si os títulos do futebol da Escócia, cujo campeonato não é mais do que um confronto entre Rangers e Celtic, ou vice-versa, restando aos outros clubes do país senão a honra de assistir de camarote ao coroar de um destes dois emblemas.

O rei do futebol escocês nasceu em Glasgow

King Kenny Dalglish
Ao longo de mais de 150 anos Glasgow viu nascer futebolistas de grande talento, que figuram na história do futebol escocês. Mas nenhum atingiu o Olimpo como Kenneth Dalglish. Nascido a 4 de abril de 1951 foi por 102 ocasiões internacional pela Escócia, tendo sido descoberto pelo mítico Jock Stein um ano após a conquista da Taça dos Campeões Europeus de 67. Um ano depois Dalglish despontava no Celtic, com apenas 16 anos, e dava início a uma majestosa carreira. Com as cores dos católicos de Glasgow viveu 10 temporadas inesquecíveis, vencendo por 4 ocasiões o campeonato da Escócia, outras tantas taças e uma Taça da Liga. Consciente de estar perante um puro diamante, o Liverpool contratou o jogador em 1977, escolhendo-o para substituir outra lenda do clube de Anfield, no caso Kevin Keegan, que havia partido para o Hamburgo. Vestido de vermelho Dalglish não desapontou e foi preponderante na conquista de 7 campeonatos ingleses para os reds, bem como as três taças dos campeões europeus ganhas em 1978, 1981 e 1984. Ele foi um dos jogadores nascidos nas ilhas britânicas mais evoluídos de sempre, possuindo uma técnica impressionante e um apurado instinto de goleador. Os títulos colecionados quer em Glasgow ao serviço do Celtic quer na cidade dos Beatles ao serviço do Liverpool fazem que hoje seja o desportista britânico mais galardoado de todos os tempos, com 26 títulos colecionados. Com a seleção escocesa participo em três Campeonatos do Mundo (1974, 1978 e 1982).

Imagem aérea do Hampden Park
Sempre com o número 7 nas costas, Dalglish foi dos jogadores que na história espalhou mais magia pelo mítico Hampden Park, a casa do futebol escocês, como já vimos, e que para além de inúmeras partidas célebres quer da seleção escocesa quer dos emblemas daquele país já se engalanou para receber grandes jogos internacionais, como por exemplo as finais das Taças dos Clubes Campeões Europeus de 1960, de 1974 e de 2002, bem como dois jogos do recente Campeonato da Europa de 2020, ou da final da Taça UEFA de 2007. Mas há mais catedrais da bola em Glasgow além do mítico Hampden Park, como são os casos dos recintos do Celtic e do Rangers, respetivamente o Celtic Park e o Ibrox Stadium. O primeiro é o estádio mais antigo da cidade, visto que a sua inauguração remonta a 1892, ao passo que o segundo, inaugurado em 1899, ostenta o recorde de afluência de público num jogo de futebol, algo que aconteceu em 1939, quando na casa do Rangers se juntaram 118.000 espectadores num  derby Old Firm! Só podia.

quinta-feira, março 29, 2018

Histórias do Planeta da Bola (20)... A vitória do negro sobre o racismo através do Desporto... e do futebol em particular

A história tem-nos mostrado que o Desporto tem tido um papel preponderante na construção de um mundo sem fronteiras, assumindo-se ao longo de anos, décadas e séculos não só como um veículo importante na promoção da paz e união entre povos de diferentes raças e culturas mas também como uma arma poderosa no combate ao preconceito e ao racismo entre os habitantes da aldeia global.
Ao conquistar, com o passar desses mesmos anos, décadas e séculos, o estatuto de fenómeno social de massas, o Desporto ergueu em seu redor uma espécie de civilização, geradora de deuses e mitos, mas também afigurando-se como um trono apetecido por todos os que procuravam o poder para impor os seus ideais políticos e sociais.
E é precisamente olhando para este poder que o Desporto agrega em si que por um lado iremos relembrar a oportunidade que os grandes eventos desportivos mundiais – sobretudo os Jogos Olímpicos – constituíram para que muitos regimes políticos e sociedades marcadas pela xenofobia e preconceito quisessem através deles mostrar ao mundo a superioridade da sua raça em relação às demais, atentando assim contra alguns dos principais ideais Olímpicos, que passavam pela paz, fraternidade, respeito e democracia entre os povos. Por outro lado, este trabalho visa mostrar que em vários episódios da história o mérito alcançado por atletas de raça negra contribuiu não só para a queda das pretensões desses regimes ou sociedades, mas igualmente para a quebra das barreiras do racismo, numa demonstração de que o desporto pode construir um elo de ligação harmoniosa entre os povos.
Os ideais olímpicos
Mas para compreender melhor esta filosofia de paz e harmonia aliada à exaltação em torno do mérito do atleta há que fazer uma viagem até à Grécia Antiga, o berço dos Jogos Olímpicos. Durante a ocorrência dos Jogos da Antiguidade as guerras entre as cidades gregas paravam, as hostilidades e os conflitos entre os homens cessavam durante o período em que Olímpia recebia gentes de toda a Grécia para contemplar as proezas dos atletas. Os vencedores eram elevados à categoria de heróis pelo povo grego, conquistando desta forma um lugar no patamar da imortalidade tal e qual os Deuses do Olimpo. Os Jogos Olímpicos assumiam-se assim como uma festa do mundo grego, sendo-lhes conferido um papel unificador e promotor da paz entre as cidades gregas, despertando nos homens um sentimento de pertença a uma só nação que em Olímpia se reunia para exultar o culto do corpo e do espírito, e onde os vencedores conquistavam um lugar ao lado dos Deuses do Olimpo.
Pierre de Coubertin, o sonhador dos Jogos Olímpicos
da Era Moderna
Invocando questões de ordem religiosa Teodósio interrompe no ano de 394 d.C. as Olimpíadas da Antiguidade. 1500 anos depois os Jogos reaparecem na Era Moderna pela mão de Pierre de Coubertin, um idealista francês cuja perspectiva do desporto enquanto veículo educativo poderia aperfeiçoar a conduta de uma cidadania democrata no ser humano. Partilhando a filosofia da Grécia Antiga Coubertin via os Jogos Olímpicos como os portadores mais fiéis e eficazes da ideia de paz e fraternidade entre os povos. Numa época em que conquistas técnicas como o caminho de ferro e o telégrafo propiciavam a comunicação entre as gentes de diversos pontos do Mundo Coubertin restituía os Jogos Olímpicos como uma inovação: a internacionalização. Os Jogos da Era Moderna iam assim muito além das fronteiras da Grécia Antiga. No final do 1º Congresso Olímpico Internacional, realizado em 1894, seria aprovado por unanimidade que “deveriam efetuar-se competições desportivas de quatro em quatro anos, continuando as diretivas dos Jogos Olímpicos Gregos, e que seriam convidadas todas as nações para que participassem, sem distinções de pessoas, cor, religião ou ideias políticos”. O renascimento dos Jogos deu-se precisamente no local onde há mais de 2500 anos atrás haviam nascido, a Grécia, tendo na cerimónia de abertura Coubertin sublinhado a ambição de fazer desta uma das maiores manifestações pacíficas da Humanidade, onde todos homens pudessem confraternizar admirando e enaltecendo a alta performance atlética. Reclamando para cada cultura um igual respeito os Jogos Olímpicos pretendiam assim atingir a sociedade e consciencializar os homens a melhorar as relações entre si.
Mas nem sempre os ideais olímpicos foram respeitados ao longo das edições dos Jogos que se seguiram a Atenas em 1896. Em 1904, na cidade de Saint Louis, assistiu-se a um dos ataques mais ferozes à ideia de que no seio do Jogos Olímpicos todas as culturas merecem igual respeito. No programa dos primeiros Jogos realizados em solo americano seria criada uma competição à parte para negros, índios e diminuídos físicos, a qual seria batizada de Dias Antropológicos, destinada ao entretenimento da raça branca, transparecendo desta forma para o resto do Mundo uma América racista.
Esta não era porém uma característica que se restringia unicamente ao povo norte americano. No início do século XX o advento da industrialização conferia à Europa uma capacidade económica muito superior em relação aos restantes continentes. Uma superioridade que se viria a estender aos ideais sociológicos e culturais dos europeus que no processo da colonização africana e sul americana, essencialmente, procuravam expandir as suas religiões, a sua língua, os seus costumes, por entenderem que havia uma superiorização do povo europeu em relação a todos os “não brancos”.
O futebol derruba barreiras racistas...
José Leandro Andrade
Contudo, seria em solo europeu que o ideal olímpico de igualdade e respeito entre todos os povos conheceria uma das suas primeiras grandes manifestações. Nas Olimpíadas de Paris, em 1924, as atenções seriam direcionadas para um negro uruguaio, filho de um escravo africano que no século XIX havia chegado à América do Sul, de seu nome José Leandro Andrade (de quem já aqui falámos em diversas ocasiões). Na pele de um talentoso futebolista Andrade causou espanto e deslumbramento entre os europeus. Exibindo uma agilidade felina e dotes técnicos invulgares o futebolista uruguaio encantou todos aqueles que nesse ano presenciaram o torneio olímpico de futebol, ganho com naturalidade pela seleção do Uruguai, que com a preciosa ajuda de Andrade introduziu o conceito até então desconhecido pelos europeus de arte aliada à técnica no jogo. José Leandro Andrade despontou para o Mundo nos Jogos Olímpicos de 1924, ganhando então a alcunha de “Maravilha Negra”. Em Paris Andrade passeava-se como um Deus, venerado pelos comuns mortais que com ele se cruzavam durante a sua estadia na capital francesa. Além de sublinhar a visão de respeito e igualdade entre todas as raças este exemplo mostra que o mérito e a mestria atlética de um ser humano conseguiu provocar um sentimento unânime de admiração e encantamento nos olhares centrados naquela manifestação desportiva. O Desporto conseguia aqui superar a barreira do racismo e do preconceito.
na Grã-Bretanha...
Andrew Watson
A história do endeusamento de Andrade abre-nos caminho para recordarmos aquele que foi o primeiro cidadão negro a ter o seu nome inscrito no Grande Atlas do Futebol. Mais do que isso, ele terá sido o primeiro negro a triunfar no desporto a nível planetário. O seu nome é Andrew Watson. Nasceu a 24 de maio de 1856 na então Guiana Britânica fruto de uma relação entre um barão escocês – Peter Miller Watson – e uma escrava local – Hanna Rose. Peter Watson, proprietário de uma plantação de açúcar naquela então colónia sul-americana do império britânico, não renegou o seu filho (bastardo) e na década de 60 do século XIX envia-o ainda muito jovem para a Grã-Bretanha onde inicia os estudos numa das mais reputadas escolas de Londres, a King's College School. Aos 19 anos viaja para Glasgow, para frequentar a universidade local onde cursa Filosofia, Matemática e Engenharia. É precisamente naquela cidade escocesa que o jovem Andrew tem um contacto mais próximo com o football. É então que evidencia os seus dotes de veloz e robusto defesa (tanto atuava na direita como na esquerda do setor recuado) ao serviço de emblemas de pequena dimensão, o Maxwell FC e o Parkgrove FC. O seu talento é de tal forma reconhecido que em 1880 é chamado o combinado de Glasgow (uma espécie de selecão que reuniu os melhores jogadores da cidade) para enfrentar o selecionado de Sheffield, em que os escoceses venceram por 1-0.
Mas foi já depois de ter concluído o seu percurso académico que Andrew Watson escreveu os capítulos mais sonantes da sua ligação com o futebol. Em 1880, e já depois da morte de seu pai, o qual lhe terá deixado uma considerável fortuna para que pudesse ter uma vida desafogada, Watson chega ao Queen's Park Football Club, tão só o mais reputado emblema escocês de então, como também para muitos o maior clube da Grã-Bretanha por aqueles dias. A sua perícia ajuda o clube a vencer as Taças da Escócia de 1880, 1881, 1882, 1884 e 1886, tornando-se desta forma no primeiro futebolista negro a vencer a prestigiada competição. Mas o triunfo do negro Watson num universo de brancos ganha contornos mais vincados quando em 1881 é-lhe concedida a honra de representar a seleção escocesa. 
Gravura do célebre Inglaterra - Escócia de 1881
Numa altura em que o profissionalismo estava prestes a bater à porta do jovem football, Watson enfrenta o vizinho e eterno rival da Escócia, a Inglaterra, em solo inimigo, isto é, no Kennington Oval, de Londres. Como se já não bastasse a honra de ter sido selecionado para este encontro amigável, Watson vê ainda ser-lhe entregue a responsabilidade de capitanear o onze escocês em território inglês, tornando-se desta forma não só no primeiro jogador negro a chegar a internacional como também no primeiro a capitanear uma seleção nacional. Estávamos a 12 de março de 1881, um dia histórico para Watson e para o desporto (sem barreiras étnicas). Ah, quanto ao resultado esse também entrou para a história, tendo a Escócia humilhado o eterno rival por 6-1 (!), que constitui assim a derrota caseira mais pesada da seleção dos “Três Leões”. Watson realizou mais dois jogos com a sua seleção – ante o País de Gales (1881) e novamente com a Inglaterra (1882) – antes de se mudar para Londres, onde entre 1882 e 1885 defendeu as cores de afamados emblemas locais, como o Swifts e o Corinthian FC – a “inspiração” do Corinthians brasileiro. Também em Inglaterra entrou na história do futebol daquele país, ao tornar-se no primeiro negro a jogar a famosa FA Cup – Taça de Inglaterra -, facto ocorrido na temporada de 1882/83 ao serviço do Swifts Football Club. Depois da aventura escocesa retorna a casa, Glasgow, para voltar a atuar pelo colosso Queen's Park, tendo conquistado a FA Cup escocesa de 1886 – como já vimos. No ano seguinte volta a Londres, terminando ai uma reputada carreira futebolística ao serviço do Bootle Football Club. Mais do que um notável full back, Andrew Watson era descrito como um cavalheiro, dentro e fora dos relvados, onde convivia com a fina flor britânica numa altura em que o preconceito com o cidadão negro era uma realidade um pouco por todo o Mundo. Andrew Watson quebrou esse preconceito em torno da sua figura, não se conhecendo – de acordo com a história – qualquer episódio de racismo para com Watson que depois de abandonar o futebol se tornou num respeitado e conceituado engenheiro naval. Morreu a 8 de março de 1921 o primeiro cidadão negro que levou a melhor sobre o racismo por meio do desporto.
na América do Sul...
Isabelino Gradín, a primeira lenda do futebol
na América do Sul
Há no entanto, um outro episódio (do qual já fizemos eco noutras viagens ao passado) em que o preconceito para com o negro veio ao de cima. Estávamos em 1916, ano em que a Argentina acolhe a primeira edição do Campeonato Sul-Americano de futebol, hoje denominado de Copa América. Chile e Uruguai defrontaram-se no encontro inaugural da estreante competição, no Estádio Gimnasia y Esgrima, de Buenos Aires. Sob a arbitragem do argentino Hugo Gronda os uruguaios mostraram na cancha toda a sua arte, o seu futebol rendilhado, fascinante, e... letal. Que o digam os chilenos, que caíram aos pés dos charrúas por 4-0! Episódio negativo - lamentável, na verdade - deste jogo inaugural do Campeonato Sul-Americano seria a posterior postura dos chilenos perante os factos ocorridos. Jogadores e dirigentes do Chile protestaram o encontro, queixando-se à organização que os uruguaios haviam jogado com... dois negros na sua equipa! Esses negros, ou melhor, essas lendas, eram o centro-campista Juan Delgado e o atacante Isabelino Gradín. Apelidados de "atletas do carnaval" eles foram ridicularizados pelos chilenos numa época em que o racismo imperava um pouco por todo o Mundo. este ato racista chileno seria inglório, já que tanto Gradín como Delgado seriam reconhecidos pela organização como uruguaios de berço - e na verdade eram-no - tendo o triunfo da seleção charrúa sido validado para descontentamento dos preconceituosos chilenos. Mais do que uma rotunda vitória obtida dentro de campo o Uruguai - e de um modo muito em particular Gradín e Delgado - vencia o racismo! Gradín é, aliás, tido como a primeira lenda negra do futebol (fantasista) sul-americano. Mais parecendo animados desfiles carnavalescos, as “jugaditas” deste avançado inspiraram as gerações seguintes de um pequeno país (Uruguai) que é descrito por muitos como o primeiro grande alfobre de magos da arte de conduzir a bola. A forma veloz e serpenteada como conduzia o mágico objeto esférico, deixando para trás adversários em catadupa, fazia as pessoas levantarem-se como uma mola esboçando olhares de encantamento perante aquela espécie de magia negra que brotava nas canchas de Montevideu.
e em Portugal
Guilherme Espírito Santo
No plano português, evocamos (ainda que ao de leve) a figura de Guilherme Espírito Santo, o primeiro negro a vestir o manto sagrado da seleção nacional. E o primeiro grande artista (na arte de manusear a bola) descendente de africanos a triunfar no futebol luso, há que dizê-lo. Nasceu em Lisboa, em 1919, pese embora tenha regressado ao país dos seus pais (Angola) com apenas oito anos de idade. Regressa à Metrópole em 1936, ainda adolescente, para continuar os estudos e... triunfar no Benfica com apenas 16 anos! Substituiu o lendário Vítor Silva (curiosamente o seu ídolo de infância) na liderança do ataque do clube encarnado, e o seu cavalheirismo aliado ao instinto predador pela baliza adversário são desde logo notados e admirados pela sociedade. Defendeu as cores do Benfica ao longo de 12 anos, vencendo quatro campeonatos nacionais e três Taças de Portugal, tendo certo dia outra lenda lenda daquele tempo dito que: «O Guilherme sempre foi melhor jogador de futebol que eu». Palavras de Fernando Peyroteo. Espírito Santo fez 199 golos em 285 jogos ao serviço das águias. O seu nome ganha contornos mais vincados de lenda a partir do dia 28 de novembro de 1937, altura em que representa pela primeira vez a seleção nacional, num particular ante a Espanha realizado em Vigo. Nesse dia, Espírito Santo não só efetuou o primeiro dos oito jogos em que defendeu a camisola das quinas como entrou igualmente para a história do futebol português por ter sido o primeiro jogador negro a ter tal honra. À semelhança de tantos outros pontos do globo, também o Portugal de então vivia com os seus tiques racistas. E Espírito Santo sentiu na pele esse preconceito. Corria o ano de 1947 quando numa deslocação à Madeira é negado ao atleta do Benfica o direito de pernoitar juntamente com os restantes colegas num hotel da região pelo facto de ser... negro. «Lugar de preto é no anexo», terá dito alguém responsável por essa unidade hoteleira. Frase que de imediato gerou entre a comitiva encarnada uma onda de solidariedade para com Espírito Santos, pois nessa noite todos os jogadores do Benfica dormiram no anexo! Mais uma vez o racismo foi goleado!
O caso mediático do herói negro Jesse Owens na Berlim fascista de Hitler
Jesse Owens nos Jogos Olímpicos de 1936
Com o avançar dos anos os Jogos Olímpicos tornaram-se num acontecimento mediático à escala mundial. A industrialização – as vias de comunicação, o telégrafo, a imprensa, a rádio, e mais tarde a televisão – ajudou a que as Olimpíadas da Era Moderna adquirissem o estatuto de maior espetáculo desportivo do planeta. De quatro em quatro anos olhares provenientes dos mais diversos pontos do Mundo centravam-se nas demonstrações da mestria atlética de homens das mais variadas raças, credos e religiões. Na qualidade de grande evento global os Jogos Olímpicos tornaram-se alvo de interesses políticos, adquirindo o papel de importante veículo de promoção de ideologias políticas. Olhando para as Olimpíadas como um instrumento para conquistar o poder, regimes políticos serviram-se do mediatismo do evento para vangloriar o seu nacionalismo e mostrar a superioridade da raça em relação às demais. O significado de uma medalha de ouro foi alterado, o que dantes premiava a excecionalidade de um atleta era visto pelos regimes políticos como um meio para mostrar ao Mundo a superioridade da sua nação em relação às suas congéneres. O atleta tornava-se assim num objeto do seu Estado de origem com a finalidade de evidenciar a supremacia de uma raça, enquanto que o mediatismo global do evento olímpico era visto como uma vitrine para que regimes políticos e/ou sociedades pudessem vincar no plano externo as suas ideologias políticas e/ou sociais.
O ano de 1936 é um bom exemplo de como os meios políticos procuraram usar a popularidade dos Jogos Olímpicos para evidenciar ao Mundo as suas ideologias. Berlim acolheu nesse referido ano aquela que era já inequivocamente a maior manifestação desportiva do planeta. A Alemanha de então vivia sob o regime nazista comandado por Adolf Hitler. Vendo nos Jogos a ferramenta ideal para mostrar ao Mundo a superioridade da raça ariana o líder nazi não se pouparia a esforços para fazer destas as Olimpíadas mais espetaculares da história. Hitler montou uma autêntica máquina de propaganda política através dos Jogos. Com um orçamento ilimitado não deixou ao acaso o mínimo detalhe que pudesse colocar em perigo a sua estratégia de assalto ao poder através do mega evento desportivo. Um estádio olímpico foi construído propositadamente, e aos atletas alemães tudo era dado e permitido para que se pudessem preparar conveniente para o evento e desta forma conquistar o máximo número de medalhas de ouro que traduzissem a superioridade da raça ariana.
Owens é endeusado nos Jogos do fascismo e racismo
O mediatismo dos Jogos atingia o ponto mais alto da sua história até então. 49 países marcavam presença em Berlim representados por cerca de 4000 atletas. Um recorde para a altura. Pela primeira vez a televisão associava-se ao evento, difundindo imagens do populismo nazi que tomou conta de Berlim para todo o Mundo. O maior evento desportivo do planeta estava transformado numa gigantesca manifestação de índole nazi perante o olhar do Mundo. Tudo parecia correr de feição a Hitler até ao momento em que surge um descendente de escravos que com a mestria da sua performance atlética desmoronou a máquina de propaganda nazi edificada por Hitler. Jesse Owens, era o nome deste norte americano que logo nas primeiras provas dos Jogos de 1936 arrecadou quatro medalhas de ouro para espanto do planeta que seguia com atenção os desenlaces de Berlim. A proeza do negro Owens desde logo se tornou numa epopeia que deitou por terras as aspirações de Hitler em transformar um evento desportivo de cariz global numa manifestação do regime nazista por si liderado. A saga de Owens fez com saísse de Berlim endeusado por todos, inclusive pelo próprio público alemão, com exceção de Adolf Hitler, por motivos óbvios, claro está.
As histórias de Jesse Owens e José Leandro Andrade (mas também um pouco as de Andrew Watson, Isabelino Gradín, Juan Delgado e Espírito Santo), dois negros descendentes de escravos, unem-se na visão de que a virtuosidade do atleta superou as barreiras do racismo e das tentativas de superiorização de raças em relação a outras, numa época em que estas tendências vigoravam em diversas sociedades. A excecionalidade dos atletas mereceu o reconhecimento e os aplausos de raças opostas as suas, residindo neste último aspeto a ideia de uma união global em torno do espetáculo desportivo, cumprindo e enaltecendo assim um dos ideais da essência olímpica, precisamente o de promover a união e a paz entre povos dos mais diversos pontos do Mundo.