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quinta-feira, junho 14, 2018

Histórias do Futebol em Portugal (19)... Memórias de uma primeira vez na alta roda do futebol internacional (1.ª parte)

Seleção portuguesa que marcou presença
nos Jogos Olímpicos de Amesterdão 1928
Se hoje em dia Portugal se apresenta perante a aldeia global futebolística como uma potência temida e respeitada, há quase um século atrás – 90 anos, para sermos mais precisos – a nação lusa não passava de uma mera e desconhecida aprendiz nos principais palcos do belo jogo planetário. Esta introdução faz-nos viajar precisamente 90 anos na cápsula do tempo, até ao ano de 1928, altura em que Amesterdão centrava em si os olhos do Mundo na sequência do acolhimento das Olimpíadas desse ano. Largas centenas de atletas vindos de vários pontos do globo assentaram arraiais naquela cidade holandesa em busca do endeusamento olímpico nas mais variadas modalidades. Entre elas, estava o futebol, que levou a Amesterdão (alguma da) a nata (de então) da modalidade, valorosos futebolistas atletas que iriam lutar entre si pelo trono da então maior competição futebolística do Mundo.

Cartaz oficial dos Jogos de 1928
Será importante sublinhar que na altura o torneio olímpico de futebol era a maior competição do planeta no que ao Desporto Rei concerne, a qual de quatro em quatro anos juntava as melhores seleções do globo. Isto porque nem o Campeonato do Mundo nem o Campeonato da Europa haviam visto a luz do dia. Vencer os Jogos Olímpicos era o equivalente a vencer um Mundial nos dias de hoje. O mediático sucesso dos torneios anteriores – Antuérpia 1920 e Paris 1924, sobretudo este último – elevou a fasquia de interesse em torno da competição que decorreu na Holanda entre 27 de maio e 10 de junho de 1928. Em campo iriam estar alguns dos pesos pesados do futebol planetário de então, casos de uma Itália que viria a dominar o Mundo na década seguinte – com a conquista de dois Mundiais consecutivos (1934 e 1938) –; da vice-campeã olímpica de 1920, a Espanha; ou das potências sul-americanas Argentina e Uruguai, sendo que estes últimos chegavam a Amesterdão como detentores (em título) do ouro olímpico – conquistado de forma época quatro anos antes em Paris. Os uruguaios eram por aqueles dias olhados como a maior potência do futebol global. Nos Jogos Olímpicos de 1924, esta pequena nação sul-americana (com apenas 3 milhões de habitantes) havia apresentado do Mundo os seus magistrais intérpretes do belo jogo, apresentando ao público parisiense um jogo alegre, solto, e tecnicamente atrativo, mais parecendo que o "onze charrúa” bailava ao som de um tango de Carlos Gardel.

A mítica seleção do Uruguai que iria vencer
o torneio olímpico pela segunda vez consecutiva
Na retina daqueles que presenciaram o torneio olímpico de 24, ficaram os bailados futebolísticos de nomes como Pedro Cea, Hector Scarone, José Nasazzi, Pedro Petrone, e de um tal José Leandro Andrade, um negro que haveria de sair destes Jogos Olímpicos endeusado pelo povo da capital francesa. O torneio de futebol das Olimpíadas de Amesterdão não foi mais do que a confirmação daquilo que se visionara em Paris 1924, por outras palavras, o Uruguai enquanto a seleção mais poderosa do Mundo. Amesterdão 1928 foi pois como a segunda parte de uma das mais belas e poéticas histórias futebolísticas, a história de uma talentosa equipa que mostrou ao globo que o futebol poderia ser jogado de uma maneira artística e atraente, bem diferente do famoso kick and rush inglês interpretado pela esmagadora das seleções e/ou clubes do então planeta da bola.

Gravura do Espanha - Portugal de 1921
(o primeiro jogo da seleção portuguesa)
Mas entre a elite do futebol global que viajou para a Holanda estava uma nação que dava os primeiros passos a nível internacional e cujo futebol – em termos de popularidade – crescia significativamente no plano interno. Portugal! Seleção que contrariamente a potências como Espanha, Itália, Argentina ou Uruguai apenas havia feito o seu batismo na alta roda internacional menos de sete anos antes (dezembro de 1921) num particular com nuestros hermanos, em Madrid, saldado por uma honrosa derrota – atendendo ao poderio do adversário – por 3-1.
Desde então, a seleção nacional fazia um percurso que podemos chamar de aprendizagem e ao mesmo tempo de afirmação na senda internacional, colecionando alguns resultados dignos de sublinhar que o futebol português tinha valor e que com um pouco mais de organização (interna) e prática (internacional) talvez fosse possível ombrear com os melhores. Isso, foi possível ver-se, a título de exemplo, em junho de 1925, quando no Campo do Lumiar (Lisboa) a nossa seleção derrotou (1-0) a poderosa Itália onde despontavam futuros campeões mundiais como Giampiero Combi, Gino Rosetti, ou Umberto Caligaris; ou os valorosos empates com potências como a Checoslováquia – em 1926 –; Hungria – também em 26 –; ou a Espanha liderada pelo lendário guarda-redes Ricardo Zamora – que em janeiro de 1928 não conseguiu levar de Lisboa melhor do que uma igualdade a uma bola.

Até aqui, Portugal disputara somente encontros amigáveis, 15 para sermos precisos, pelo que em Amesterdão iria ser o primeiro grande teste oficial no plano internacional para um futebol português que no plano interno apresentava algumas carências, apesar do crescimento em termos de popularidade em torno da modalidade.
No aspeto competitivo, o centro do nosso futebol estava em Lisboa, Porto, Algarve e Setúbal, onde se disputavam os campeonatos (regionais) mais importantes e acima de tudo competitivos. Nas outras regiões do país, a competição tinha ainda pouca expressão, ou quase nenhuma. Apesar de ainda ser algo limitado, em termos estruturais, o que é certo é que o futebol não havia envergonhado o país no plano “além fronteiras”, e mesmo nas derrotas havia mostrado valentia e valor que deixavam antever um futuro promissor. 

(continua) 

quinta-feira, março 29, 2018

Histórias do Planeta da Bola (20)... A vitória do negro sobre o racismo através do Desporto... e do futebol em particular

A história tem-nos mostrado que o Desporto tem tido um papel preponderante na construção de um mundo sem fronteiras, assumindo-se ao longo de anos, décadas e séculos não só como um veículo importante na promoção da paz e união entre povos de diferentes raças e culturas mas também como uma arma poderosa no combate ao preconceito e ao racismo entre os habitantes da aldeia global.
Ao conquistar, com o passar desses mesmos anos, décadas e séculos, o estatuto de fenómeno social de massas, o Desporto ergueu em seu redor uma espécie de civilização, geradora de deuses e mitos, mas também afigurando-se como um trono apetecido por todos os que procuravam o poder para impor os seus ideais políticos e sociais.
E é precisamente olhando para este poder que o Desporto agrega em si que por um lado iremos relembrar a oportunidade que os grandes eventos desportivos mundiais – sobretudo os Jogos Olímpicos – constituíram para que muitos regimes políticos e sociedades marcadas pela xenofobia e preconceito quisessem através deles mostrar ao mundo a superioridade da sua raça em relação às demais, atentando assim contra alguns dos principais ideais Olímpicos, que passavam pela paz, fraternidade, respeito e democracia entre os povos. Por outro lado, este trabalho visa mostrar que em vários episódios da história o mérito alcançado por atletas de raça negra contribuiu não só para a queda das pretensões desses regimes ou sociedades, mas igualmente para a quebra das barreiras do racismo, numa demonstração de que o desporto pode construir um elo de ligação harmoniosa entre os povos.
Os ideais olímpicos
Mas para compreender melhor esta filosofia de paz e harmonia aliada à exaltação em torno do mérito do atleta há que fazer uma viagem até à Grécia Antiga, o berço dos Jogos Olímpicos. Durante a ocorrência dos Jogos da Antiguidade as guerras entre as cidades gregas paravam, as hostilidades e os conflitos entre os homens cessavam durante o período em que Olímpia recebia gentes de toda a Grécia para contemplar as proezas dos atletas. Os vencedores eram elevados à categoria de heróis pelo povo grego, conquistando desta forma um lugar no patamar da imortalidade tal e qual os Deuses do Olimpo. Os Jogos Olímpicos assumiam-se assim como uma festa do mundo grego, sendo-lhes conferido um papel unificador e promotor da paz entre as cidades gregas, despertando nos homens um sentimento de pertença a uma só nação que em Olímpia se reunia para exultar o culto do corpo e do espírito, e onde os vencedores conquistavam um lugar ao lado dos Deuses do Olimpo.
Pierre de Coubertin, o sonhador dos Jogos Olímpicos
da Era Moderna
Invocando questões de ordem religiosa Teodósio interrompe no ano de 394 d.C. as Olimpíadas da Antiguidade. 1500 anos depois os Jogos reaparecem na Era Moderna pela mão de Pierre de Coubertin, um idealista francês cuja perspectiva do desporto enquanto veículo educativo poderia aperfeiçoar a conduta de uma cidadania democrata no ser humano. Partilhando a filosofia da Grécia Antiga Coubertin via os Jogos Olímpicos como os portadores mais fiéis e eficazes da ideia de paz e fraternidade entre os povos. Numa época em que conquistas técnicas como o caminho de ferro e o telégrafo propiciavam a comunicação entre as gentes de diversos pontos do Mundo Coubertin restituía os Jogos Olímpicos como uma inovação: a internacionalização. Os Jogos da Era Moderna iam assim muito além das fronteiras da Grécia Antiga. No final do 1º Congresso Olímpico Internacional, realizado em 1894, seria aprovado por unanimidade que “deveriam efetuar-se competições desportivas de quatro em quatro anos, continuando as diretivas dos Jogos Olímpicos Gregos, e que seriam convidadas todas as nações para que participassem, sem distinções de pessoas, cor, religião ou ideias políticos”. O renascimento dos Jogos deu-se precisamente no local onde há mais de 2500 anos atrás haviam nascido, a Grécia, tendo na cerimónia de abertura Coubertin sublinhado a ambição de fazer desta uma das maiores manifestações pacíficas da Humanidade, onde todos homens pudessem confraternizar admirando e enaltecendo a alta performance atlética. Reclamando para cada cultura um igual respeito os Jogos Olímpicos pretendiam assim atingir a sociedade e consciencializar os homens a melhorar as relações entre si.
Mas nem sempre os ideais olímpicos foram respeitados ao longo das edições dos Jogos que se seguiram a Atenas em 1896. Em 1904, na cidade de Saint Louis, assistiu-se a um dos ataques mais ferozes à ideia de que no seio do Jogos Olímpicos todas as culturas merecem igual respeito. No programa dos primeiros Jogos realizados em solo americano seria criada uma competição à parte para negros, índios e diminuídos físicos, a qual seria batizada de Dias Antropológicos, destinada ao entretenimento da raça branca, transparecendo desta forma para o resto do Mundo uma América racista.
Esta não era porém uma característica que se restringia unicamente ao povo norte americano. No início do século XX o advento da industrialização conferia à Europa uma capacidade económica muito superior em relação aos restantes continentes. Uma superioridade que se viria a estender aos ideais sociológicos e culturais dos europeus que no processo da colonização africana e sul americana, essencialmente, procuravam expandir as suas religiões, a sua língua, os seus costumes, por entenderem que havia uma superiorização do povo europeu em relação a todos os “não brancos”.
O futebol derruba barreiras racistas...
José Leandro Andrade
Contudo, seria em solo europeu que o ideal olímpico de igualdade e respeito entre todos os povos conheceria uma das suas primeiras grandes manifestações. Nas Olimpíadas de Paris, em 1924, as atenções seriam direcionadas para um negro uruguaio, filho de um escravo africano que no século XIX havia chegado à América do Sul, de seu nome José Leandro Andrade (de quem já aqui falámos em diversas ocasiões). Na pele de um talentoso futebolista Andrade causou espanto e deslumbramento entre os europeus. Exibindo uma agilidade felina e dotes técnicos invulgares o futebolista uruguaio encantou todos aqueles que nesse ano presenciaram o torneio olímpico de futebol, ganho com naturalidade pela seleção do Uruguai, que com a preciosa ajuda de Andrade introduziu o conceito até então desconhecido pelos europeus de arte aliada à técnica no jogo. José Leandro Andrade despontou para o Mundo nos Jogos Olímpicos de 1924, ganhando então a alcunha de “Maravilha Negra”. Em Paris Andrade passeava-se como um Deus, venerado pelos comuns mortais que com ele se cruzavam durante a sua estadia na capital francesa. Além de sublinhar a visão de respeito e igualdade entre todas as raças este exemplo mostra que o mérito e a mestria atlética de um ser humano conseguiu provocar um sentimento unânime de admiração e encantamento nos olhares centrados naquela manifestação desportiva. O Desporto conseguia aqui superar a barreira do racismo e do preconceito.
na Grã-Bretanha...
Andrew Watson
A história do endeusamento de Andrade abre-nos caminho para recordarmos aquele que foi o primeiro cidadão negro a ter o seu nome inscrito no Grande Atlas do Futebol. Mais do que isso, ele terá sido o primeiro negro a triunfar no desporto a nível planetário. O seu nome é Andrew Watson. Nasceu a 24 de maio de 1856 na então Guiana Britânica fruto de uma relação entre um barão escocês – Peter Miller Watson – e uma escrava local – Hanna Rose. Peter Watson, proprietário de uma plantação de açúcar naquela então colónia sul-americana do império britânico, não renegou o seu filho (bastardo) e na década de 60 do século XIX envia-o ainda muito jovem para a Grã-Bretanha onde inicia os estudos numa das mais reputadas escolas de Londres, a King's College School. Aos 19 anos viaja para Glasgow, para frequentar a universidade local onde cursa Filosofia, Matemática e Engenharia. É precisamente naquela cidade escocesa que o jovem Andrew tem um contacto mais próximo com o football. É então que evidencia os seus dotes de veloz e robusto defesa (tanto atuava na direita como na esquerda do setor recuado) ao serviço de emblemas de pequena dimensão, o Maxwell FC e o Parkgrove FC. O seu talento é de tal forma reconhecido que em 1880 é chamado o combinado de Glasgow (uma espécie de selecão que reuniu os melhores jogadores da cidade) para enfrentar o selecionado de Sheffield, em que os escoceses venceram por 1-0.
Mas foi já depois de ter concluído o seu percurso académico que Andrew Watson escreveu os capítulos mais sonantes da sua ligação com o futebol. Em 1880, e já depois da morte de seu pai, o qual lhe terá deixado uma considerável fortuna para que pudesse ter uma vida desafogada, Watson chega ao Queen's Park Football Club, tão só o mais reputado emblema escocês de então, como também para muitos o maior clube da Grã-Bretanha por aqueles dias. A sua perícia ajuda o clube a vencer as Taças da Escócia de 1880, 1881, 1882, 1884 e 1886, tornando-se desta forma no primeiro futebolista negro a vencer a prestigiada competição. Mas o triunfo do negro Watson num universo de brancos ganha contornos mais vincados quando em 1881 é-lhe concedida a honra de representar a seleção escocesa. 
Gravura do célebre Inglaterra - Escócia de 1881
Numa altura em que o profissionalismo estava prestes a bater à porta do jovem football, Watson enfrenta o vizinho e eterno rival da Escócia, a Inglaterra, em solo inimigo, isto é, no Kennington Oval, de Londres. Como se já não bastasse a honra de ter sido selecionado para este encontro amigável, Watson vê ainda ser-lhe entregue a responsabilidade de capitanear o onze escocês em território inglês, tornando-se desta forma não só no primeiro jogador negro a chegar a internacional como também no primeiro a capitanear uma seleção nacional. Estávamos a 12 de março de 1881, um dia histórico para Watson e para o desporto (sem barreiras étnicas). Ah, quanto ao resultado esse também entrou para a história, tendo a Escócia humilhado o eterno rival por 6-1 (!), que constitui assim a derrota caseira mais pesada da seleção dos “Três Leões”. Watson realizou mais dois jogos com a sua seleção – ante o País de Gales (1881) e novamente com a Inglaterra (1882) – antes de se mudar para Londres, onde entre 1882 e 1885 defendeu as cores de afamados emblemas locais, como o Swifts e o Corinthian FC – a “inspiração” do Corinthians brasileiro. Também em Inglaterra entrou na história do futebol daquele país, ao tornar-se no primeiro negro a jogar a famosa FA Cup – Taça de Inglaterra -, facto ocorrido na temporada de 1882/83 ao serviço do Swifts Football Club. Depois da aventura escocesa retorna a casa, Glasgow, para voltar a atuar pelo colosso Queen's Park, tendo conquistado a FA Cup escocesa de 1886 – como já vimos. No ano seguinte volta a Londres, terminando ai uma reputada carreira futebolística ao serviço do Bootle Football Club. Mais do que um notável full back, Andrew Watson era descrito como um cavalheiro, dentro e fora dos relvados, onde convivia com a fina flor britânica numa altura em que o preconceito com o cidadão negro era uma realidade um pouco por todo o Mundo. Andrew Watson quebrou esse preconceito em torno da sua figura, não se conhecendo – de acordo com a história – qualquer episódio de racismo para com Watson que depois de abandonar o futebol se tornou num respeitado e conceituado engenheiro naval. Morreu a 8 de março de 1921 o primeiro cidadão negro que levou a melhor sobre o racismo por meio do desporto.
na América do Sul...
Isabelino Gradín, a primeira lenda do futebol
na América do Sul
Há no entanto, um outro episódio (do qual já fizemos eco noutras viagens ao passado) em que o preconceito para com o negro veio ao de cima. Estávamos em 1916, ano em que a Argentina acolhe a primeira edição do Campeonato Sul-Americano de futebol, hoje denominado de Copa América. Chile e Uruguai defrontaram-se no encontro inaugural da estreante competição, no Estádio Gimnasia y Esgrima, de Buenos Aires. Sob a arbitragem do argentino Hugo Gronda os uruguaios mostraram na cancha toda a sua arte, o seu futebol rendilhado, fascinante, e... letal. Que o digam os chilenos, que caíram aos pés dos charrúas por 4-0! Episódio negativo - lamentável, na verdade - deste jogo inaugural do Campeonato Sul-Americano seria a posterior postura dos chilenos perante os factos ocorridos. Jogadores e dirigentes do Chile protestaram o encontro, queixando-se à organização que os uruguaios haviam jogado com... dois negros na sua equipa! Esses negros, ou melhor, essas lendas, eram o centro-campista Juan Delgado e o atacante Isabelino Gradín. Apelidados de "atletas do carnaval" eles foram ridicularizados pelos chilenos numa época em que o racismo imperava um pouco por todo o Mundo. este ato racista chileno seria inglório, já que tanto Gradín como Delgado seriam reconhecidos pela organização como uruguaios de berço - e na verdade eram-no - tendo o triunfo da seleção charrúa sido validado para descontentamento dos preconceituosos chilenos. Mais do que uma rotunda vitória obtida dentro de campo o Uruguai - e de um modo muito em particular Gradín e Delgado - vencia o racismo! Gradín é, aliás, tido como a primeira lenda negra do futebol (fantasista) sul-americano. Mais parecendo animados desfiles carnavalescos, as “jugaditas” deste avançado inspiraram as gerações seguintes de um pequeno país (Uruguai) que é descrito por muitos como o primeiro grande alfobre de magos da arte de conduzir a bola. A forma veloz e serpenteada como conduzia o mágico objeto esférico, deixando para trás adversários em catadupa, fazia as pessoas levantarem-se como uma mola esboçando olhares de encantamento perante aquela espécie de magia negra que brotava nas canchas de Montevideu.
e em Portugal
Guilherme Espírito Santo
No plano português, evocamos (ainda que ao de leve) a figura de Guilherme Espírito Santo, o primeiro negro a vestir o manto sagrado da seleção nacional. E o primeiro grande artista (na arte de manusear a bola) descendente de africanos a triunfar no futebol luso, há que dizê-lo. Nasceu em Lisboa, em 1919, pese embora tenha regressado ao país dos seus pais (Angola) com apenas oito anos de idade. Regressa à Metrópole em 1936, ainda adolescente, para continuar os estudos e... triunfar no Benfica com apenas 16 anos! Substituiu o lendário Vítor Silva (curiosamente o seu ídolo de infância) na liderança do ataque do clube encarnado, e o seu cavalheirismo aliado ao instinto predador pela baliza adversário são desde logo notados e admirados pela sociedade. Defendeu as cores do Benfica ao longo de 12 anos, vencendo quatro campeonatos nacionais e três Taças de Portugal, tendo certo dia outra lenda lenda daquele tempo dito que: «O Guilherme sempre foi melhor jogador de futebol que eu». Palavras de Fernando Peyroteo. Espírito Santo fez 199 golos em 285 jogos ao serviço das águias. O seu nome ganha contornos mais vincados de lenda a partir do dia 28 de novembro de 1937, altura em que representa pela primeira vez a seleção nacional, num particular ante a Espanha realizado em Vigo. Nesse dia, Espírito Santo não só efetuou o primeiro dos oito jogos em que defendeu a camisola das quinas como entrou igualmente para a história do futebol português por ter sido o primeiro jogador negro a ter tal honra. À semelhança de tantos outros pontos do globo, também o Portugal de então vivia com os seus tiques racistas. E Espírito Santo sentiu na pele esse preconceito. Corria o ano de 1947 quando numa deslocação à Madeira é negado ao atleta do Benfica o direito de pernoitar juntamente com os restantes colegas num hotel da região pelo facto de ser... negro. «Lugar de preto é no anexo», terá dito alguém responsável por essa unidade hoteleira. Frase que de imediato gerou entre a comitiva encarnada uma onda de solidariedade para com Espírito Santos, pois nessa noite todos os jogadores do Benfica dormiram no anexo! Mais uma vez o racismo foi goleado!
O caso mediático do herói negro Jesse Owens na Berlim fascista de Hitler
Jesse Owens nos Jogos Olímpicos de 1936
Com o avançar dos anos os Jogos Olímpicos tornaram-se num acontecimento mediático à escala mundial. A industrialização – as vias de comunicação, o telégrafo, a imprensa, a rádio, e mais tarde a televisão – ajudou a que as Olimpíadas da Era Moderna adquirissem o estatuto de maior espetáculo desportivo do planeta. De quatro em quatro anos olhares provenientes dos mais diversos pontos do Mundo centravam-se nas demonstrações da mestria atlética de homens das mais variadas raças, credos e religiões. Na qualidade de grande evento global os Jogos Olímpicos tornaram-se alvo de interesses políticos, adquirindo o papel de importante veículo de promoção de ideologias políticas. Olhando para as Olimpíadas como um instrumento para conquistar o poder, regimes políticos serviram-se do mediatismo do evento para vangloriar o seu nacionalismo e mostrar a superioridade da raça em relação às demais. O significado de uma medalha de ouro foi alterado, o que dantes premiava a excecionalidade de um atleta era visto pelos regimes políticos como um meio para mostrar ao Mundo a superioridade da sua nação em relação às suas congéneres. O atleta tornava-se assim num objeto do seu Estado de origem com a finalidade de evidenciar a supremacia de uma raça, enquanto que o mediatismo global do evento olímpico era visto como uma vitrine para que regimes políticos e/ou sociedades pudessem vincar no plano externo as suas ideologias políticas e/ou sociais.
O ano de 1936 é um bom exemplo de como os meios políticos procuraram usar a popularidade dos Jogos Olímpicos para evidenciar ao Mundo as suas ideologias. Berlim acolheu nesse referido ano aquela que era já inequivocamente a maior manifestação desportiva do planeta. A Alemanha de então vivia sob o regime nazista comandado por Adolf Hitler. Vendo nos Jogos a ferramenta ideal para mostrar ao Mundo a superioridade da raça ariana o líder nazi não se pouparia a esforços para fazer destas as Olimpíadas mais espetaculares da história. Hitler montou uma autêntica máquina de propaganda política através dos Jogos. Com um orçamento ilimitado não deixou ao acaso o mínimo detalhe que pudesse colocar em perigo a sua estratégia de assalto ao poder através do mega evento desportivo. Um estádio olímpico foi construído propositadamente, e aos atletas alemães tudo era dado e permitido para que se pudessem preparar conveniente para o evento e desta forma conquistar o máximo número de medalhas de ouro que traduzissem a superioridade da raça ariana.
Owens é endeusado nos Jogos do fascismo e racismo
O mediatismo dos Jogos atingia o ponto mais alto da sua história até então. 49 países marcavam presença em Berlim representados por cerca de 4000 atletas. Um recorde para a altura. Pela primeira vez a televisão associava-se ao evento, difundindo imagens do populismo nazi que tomou conta de Berlim para todo o Mundo. O maior evento desportivo do planeta estava transformado numa gigantesca manifestação de índole nazi perante o olhar do Mundo. Tudo parecia correr de feição a Hitler até ao momento em que surge um descendente de escravos que com a mestria da sua performance atlética desmoronou a máquina de propaganda nazi edificada por Hitler. Jesse Owens, era o nome deste norte americano que logo nas primeiras provas dos Jogos de 1936 arrecadou quatro medalhas de ouro para espanto do planeta que seguia com atenção os desenlaces de Berlim. A proeza do negro Owens desde logo se tornou numa epopeia que deitou por terras as aspirações de Hitler em transformar um evento desportivo de cariz global numa manifestação do regime nazista por si liderado. A saga de Owens fez com saísse de Berlim endeusado por todos, inclusive pelo próprio público alemão, com exceção de Adolf Hitler, por motivos óbvios, claro está.
As histórias de Jesse Owens e José Leandro Andrade (mas também um pouco as de Andrew Watson, Isabelino Gradín, Juan Delgado e Espírito Santo), dois negros descendentes de escravos, unem-se na visão de que a virtuosidade do atleta superou as barreiras do racismo e das tentativas de superiorização de raças em relação a outras, numa época em que estas tendências vigoravam em diversas sociedades. A excecionalidade dos atletas mereceu o reconhecimento e os aplausos de raças opostas as suas, residindo neste último aspeto a ideia de uma união global em torno do espetáculo desportivo, cumprindo e enaltecendo assim um dos ideais da essência olímpica, precisamente o de promover a união e a paz entre povos dos mais diversos pontos do Mundo.

quarta-feira, abril 24, 2013

Figuras do apito (1)... John Langenus - O excêntrico belga com papel de destaque na história dos Mundiais

Na maioria das ocasiões eles dão vida ao lado mais polémico do futebol. As suas decisões nem sempre são encaradas com fair-play, e muitas vezes são apontadas como a causa de uma derrota, da perda de um título, ou mesmo da violência física tristemente portagonizada por artistas e adeptos do belo jogo. Quando se ganha ninguém se lembra deles, mas quando se perde toda a gente lhes aponta o dedo reprovador. Apesar de tudo eles fazem parte do espetáculo, são eles que o dirigem, para o bem... e para o mal. Eles são os árbitros de futebol, as figuras do apito, que de hoje em diante terão uma vitrina a eles reservada nos corredores do Museu Virtual do Futebol.
E a nossa primeira estrela - sim, eles também brilham no universo futebolístico - é quiçá a primeira figura mediática da arbitragem internacional. John Langenus, de seu nome, belga de nascimento que ficou célebre por ter dirigido a primeira final de um Campeonato do Mundo, no Uruguai, em 1930. Este terá sido um justo prémio para aquele que era na altura considerado o melhor juíz do planeta, que a nível internacional havia feito a sua estreia nos Jogos Olímpicos de Amesterdão, em 1928.
Nasceu a 8 de dezembro de 1891, em Berchem, próximo de Antuérpia, e descobriu a aptidão para o apito, digamos assim, depois de comprovar o seu pouco - ou mesmo nenhum - talento para a interpretação do jogo enquanto praticante. A este propósito uma vez disse Diego Armando Maradona: «Quem tem jeito (para a prática do futebol) vai para jogador, quem não tem vai para... jornalista desportivo»! Pois bem, longas décadas antes desta célebre teoria ter sido lançada a público pela lenda argentina já Langenus a punha em prática, já que além do talento para apitar jogos de futebol ele revelava-se igualmente um habilidoso artesão das palavras, o mesmo é dizer, um notável jornalista desportivo. Esta foi pois a (dulpa)forma que este cidadão belga encontrou para continuar ligado ao desporto que tanto amava. No entanto, a sua entrada na arbitragem também não foi fácil, já que ao desconhecer a resposta para a questão sobre "o que fazer quando a bola bater num avião que voasse a baixa altitude…" (!) fez com que reprovasse no primeiro exame de admissão para ser árbitro! Acontece aos melhores...

Homem culto - dominava quatro idiomas - Langenus, que profissionalmente desempenhava funções de chefe de gabinete do governador de Antuérpia, era, como já vimos, um apreciado jornalista, tendo escrito centenas de crónicas alusivas a encontros de futebol, grande parte delas guardadas nos arquivos da prestigiada revista alemã Kicker, com quem o belga colaborou durante muito tempo. Curioso é que grande parte dos jogos analisados jornalisticamente, por assim dizer, por John Langenus eram, ou tinham sido, dirigidos... por ele próprio! Reza a lenda que no final de cada jogo recolhia aos balneários onde redigia a crónica desse mesmo jogo para depois a enviar para a Kicker
Dentro do campo tinha pulso forte com os jogadores, onde o seu metro e noventa de altura impunha respeito. Ganhou pois a admiração de uma classe (futebolistas) que além de respeito para com ele olhava-o com algum espanto! É verdade. Além de dar nas vistas como árbitro Langenus atraia as atenções - quer dos jogadores, quer do público - pela forma exótica como se equipava. Usava sempre umas calças largas - à golfista! -, meias até ao joelho, jaqueta cumprida, e uma pequena gravata, que lhe conferiam um visual muito peculiar.

Batismo internacional

O dia 25 de fevereiro de 1923 fica marcado na carreira do primeiro grande nome da arbitragem planetária, o dia em que dirige o seu primeiro encontro internacional, facto ocorrido em Paris, onde a França venceu por 3-2 o Luxemburgo. Dali em diante visita mais algumas cidades europeias, onde arbitra sobretudo encontros internacionais de caráter particular. Os níveis da sua popularidade foram subindo de tom, não admirando que em 1928 fosse chamado ao torneio olímpico de futebol, na altura o maior evento futebolístico à escala planetária. Em Amesterdão, localidade onde decorreram as Olimpíadas de 28, Langenus vivenciou o seu primeiro momento de glória no mundo da arbitragem, ao apitar dois jogos na qualidade de árbitro principal, e atuado como linesman (fiscal de linha, ou árbitro assistente como agora são denominados) na grande final olímpica.
A 30 de maio de 1928, no Estádio Olímpico de Amesterdão, ele dirige a partida que colocou frente a frente a equipa da casa, a Holanda, aos futuros campeões olímpicos, ou melhor, bi-campeões olímpicos, o lendário conjunto do Uruguai. Uma oportunidade única para os adeptos holandeses verem na sua pátria algumas das estrelas do futebol daqueles anos 20, casos de José Nasazzi, Héctor Scarone, a Maravilha Negra José Leandro Andrade, ou... John Langenus, também ele já uma verdadeira estrela do futebol internacional. Ainda nessa histórica Olimpíada o belga dirigiu um novo encontro, também ocorrido no estádio olímpico, e que opôs a Itália ao Egito. Em jogo estava nada mais nada menos do que a medalha de bronze, a qual iria para o peito da squadra azzurra, depois de um categórico triunfo sobre os faraós por 11-3. Este facto ocorreu a 9 de junho, quatro dias antes da final, onde marcaram presença as duas potências do futebol sul-americano da época, tidas aliás para muitos como as seleções mais fortes do mundo, a Argentina e o Uruguai.
Para apitar o jogo mais aguardado do torneio - o qual seria ganho pelos uruguaios - foi chamado o holandês Johannes Mutters, o qual seria coadjuvado pelo italiano Achile Gama e o... belga John Langenus. Era já mais do que evidente o prestígio que angariava a nível internacional.

Momento de glória vivido em Montevidéu

De tal modo que aquando da realização do primeiro Campeonato do Mundo, dois anos mais tarde, em Montevidéu, capital do Uruguai, a FIFA não teve dúvidas em colocar Langenus na lista dos árbitros convidados a marcar presença naquele importante evento. Efetuou a longa viagem para Montevidéu no majestoso navio Conte Verde, o mesmo onde viajavam as delegações da FIFA, da Roménia, França, e Bélgica, três seleções que a par da Jugoslávia - que viajou noutro navio - representavam a Europa no primeiro Mundial da história. Em Montevidéu, onde decorreu toda a ação, Langenus apitou quatro jogos, o Uruguai - Perú (1-0), o Argentina - Chile (3-1), ambos alusivos à primeira fase do torneio, o Argentina - Estados Unidos da América (6-1), e o Uruguai - Argentina (4-2), este último a grande final do evento.
Na meia-final disputada entre argentinos e norte-americanos não se livrou de duras críticas dos soccer boys, que o acusaram de fazer vista grossa ao violento jogo praticado pelos sul-americanos, para quem ao que parece tudo valia, desde empurrões, pontapés, insultos... A fúria dos yankees para com o belga foi tão grande que a equipa médica do combinado da América do Norte chegou mesmo a agredir o árbitro com um estojo médico (!) arremessado para dentro do retângulo de jogo.

Após dirigir esse polémico jogo Langenus escreveu a habitual crónica para o Kicker, aproveitando posterirmente a sua estadia na América do Sul para conhecer outros locais daquele canto do Mundo. Atravessando então o rio de La Plata - que divide o Uruguai da Argentina - visita Buenos Aires, onde dias antes da grande final, precisamente entre os dois velhos inimigos, Argentina e Uruguai, recebe um telefonema dos dirigentes da FIFA que lhe pedem que regresse de imediato a Montevidéu para apitar a... final! Um pouco surpreendido o belga compra de imediato o bilhete para regressar de barco à capital uruguaia, e é aqui que conhece os primeiros contornos da fervorosa paixão que aquele jogo estava a provocar entre os adeptos dos dois países. Ainda em Buenos Aires ele percebe que aquela final era muito mais do que um jogo, era uma questão de vida ou de morte. E como se apercebeu que não iria agradar a gregos e a troianos ao mesmo tempo, isto é, algum dos países iria olha-lo com ódio (!) na conclusão do Mundial, ele decide fazer de imediato um acordo com a FIFA. Para garantir a sua segurança exigiu que logo após o apito final lhe fosse facultado um transporte que o tirasse do Estádio Centenário rumo ao porto de Montevidéu, e dali embarcar rapidamente rumo à Europa, a salvo da mais do que provável ira de um dos derrotados. Exigência aceite John Langenus regressou então a Montevidéu num barco apinhado de fanáticos adeptos argentinos, que nem sequer imaginavam que aquele gentleman de envergadura alta seria o árbitro da final!

No dia 30 de julho sobe ao relvado do majestoso Estádio Centenário, construído propositadamente para este Mundial, e ainda antes de dar início ao esperado duelo a polémica estoirou. Na escolha de campo os dois capitães (Nasazzi do lado uruguaio e Ferreira do lado argentino) discutiam. O uruguaio queria jogar com uma bola feita em seu país. O argentino, com uma bola feita na Argentina. Perante esta birra o árbitro belga decidiu que no primeiro tempo joga-se com a bola argentina e no segundo com a bola uruguaia. Com a bola argentina, os uruguaios conseguiram o primeiro golo, aos 12 minutos, marcado por Dorado. Oito minutos depois, Peucelle empatou. Aos 37 minutos, Stabile, o artilheiro do campeonato, marcou o segundo tento argentino. E a primeira parte chegou ao fim com os argentinos a vencer por 2-1. Foi espantosa a  reação uruguaia na etapa complementar, jogando com a bola feita em casa. Aos 12 minutos, Cea empatou. Aos 23, num remate de fora da área, Iriarte pôs o Uruguai em vantagem. O país vivia momentos de sofrida espera quando, num contra-ataque Dorado centrou da direita, pelo alto, e Castro com uma cabeçada fulminante mandou a bola para o fundo das redes. Era o quarto golo. Um minuto depois, o jogo acabava. E o Uruguai era assim o primeiro campeão do Mundo da história.
Terminada a final Langenus correu - pelo próprio pé, já que o transporte que lhe havia sido assegurado pela FIFA não estava lá! - rapidamente para fora de um estádio que estava em profundo delírio com o triunfo da celeste. Chegado ao porto de Montevidéu as notícias para o belga não eram nada boas. O cerrado nevoeiro que se abateu sobre o rio de La Plata fez com que as autoridades marítimas cancelassem a partida de qualquer tipo de embarcação. Os planos de Langenus tinham saído furados, não tendo outro remédio senão passar a noite escondido no seu camarote do navio Duilio que o levaria no dia seguinte de volta a terra segura, isto é, a Europa.

Como grande celebridade que já era no mundo da arbitragem não foi com surpresa que quatro anos mais tarde fosse de novo chamado à fase final de um Campeonato do Mundo, desta feita em Itália, embora aqui apenas tivesse dirigido um encontro, o Checolosváquia - Roménia, disputado em Trieste, e que terminou com a vitória da primeira seleção por 2-1. E como não há duas sem três foi chamado em 1938 para um novo Mundial, desta feita em França, onde apitou dois encontros. O primeiro, disputado no Parc des Princes, em Paris, foi histórico para Langenus. Suíça e Alemanha discutiam a passagem aos quartos-de-final, e eis que aos seis minutos do prolongamento o germânico Pesser tem uma entrada para lá de violenta sobre um adversário, recebendo ordem de expulsão do belga, a única sanção disciplinar deste género que aplicou a um jogador em toda a sua carreira. A despedida dos grandes palcos ocorreria ainda nesse Mundial, quando é nomeado pela FIFA para dirigir o jogo de atribuição dos terceiros e quartos lugares, entre Brasil e Suécia, vencido pelos primeiros.
Numa altura em que os jogos internacionais eram escassos, ao contrário do que hoje acontece, John Langenus apitou um total de 85 jogos! Retirou-se definitivamente da arbitragem em 1939, tendo passeado a sua classe por diversos países do Mundo, inclusive Portugal, pais que teve a honra de receber uma visita sua, a 23 de fevereiro de 1930, quando no Porto dirigiu um Portugal-França, concluído com um triunfo luso por 2-0. Depois de retirado dedicou-se à sua outra paixão, a escrita, tendo publico entre outros livros alusivos ao futebol o célebre "Whistling in the World", uma autobiografia onde eternizou as suas aventuras pelo Mundo da bola. Faleceu na sua cidade natal, a 1 de dezembro de 1952, com 60 anos de idade.

Legenda das fotografias:
1-John Langenus
2-Na escolha de campo com os capitães de Holanda e Uruguai, nos Jogos Olímpicos de 1928
3-Como árbitro assistente na final de Amesterdão
4-Na viagem para Montevidéu
5-Com os capitães do Uruguai e Argentina, antes da final do Mundial de 1930
6-Golo da Argentina, em pleno Centenário, com Langenus ao fundo a visionar o lance
7-A peculiar imagem do primeiro grande ícone da arbitragem internacional

sexta-feira, abril 12, 2013

Copa América (1)... Argentina 1916

O prometido é devido, e tal como foi anunciado recentemente inauguramos hoje uma nova vitrina no Museu Virtual do Futebol. Um espaço onde a garra, a paixão, e a arte - futebolística, claro está - são condimentos que irão saltar inevitavelmente à vista de todos aqueles que o visitarão, condimentos esses bem vincados em cada edição desta que é hoje em dia a segunda competição disputada por seleções nacionais mais antiga do Mundo - a primeira dá pelo nome de torneio olímpico de futebol - em atividade. Iniciamos hoje então uma fascinante - sem margem para dúvidas - viagem pela Copa América, a quase centenária prova disputada árdua e apaixonadamente pelos guerreiros do continente americano, que viu oficialmente a luz do dia em 1916, embora a primeira tentativa de erguer um torneio continental tenha ocorrido seis antes, na Argentina. Por essa altura o futebol começava a despertar intensas paixões no já de si apaixonado povo sul-americano, e já era bem viva a chama da rivalidade que deflagrava entre alguns países nas canchas entretanto desenhadas, com destaque para os duelos entre os eternos inimigos separados pelo Rio de la Plata, Uruguai e Argentina. E seria precisamente este último país que em 1910 decide apimentar um pouco mais as rivalidades que iam crescendo um pouco por toda a zona sul do continente em torno do belo jogo ao criar uma competição continental, a qual seria batizada de Copa Centenario de la Revolución de Mayo, e que para além da seleção da casa contou ainda com o Chile e o Uruguai, os outros dois selecionados convidados. A este primeiro torneio organizado juntaram-se ainda as equipas locais do Alumni, Liga de Rosario, e Belgrano FC, as quais disputaram entre si uma série de jogos exibicionais, que serviam de aperitivo ao torneio principal, digamos assim. 

Na cancha a vitória da Copa Centenario de la Revolución de Mayo foi alcançada pela Argentina, que assim se proclamava campeã das Américas. Os argentinos venceram os dois encontros disputados, o primeiro ante o Chile, por expressivos 5-1 - com golos de Juan Hayes (2), José Viale, Eduardo Weiss, e Maximiliano Susán - e o segundo perante os inimigos do outro lado do Rio de la Plata, o Uruguai, que saiu do Estádio Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires, o palco onde foi desenrolado o evento - vergado a uma humilhante derrota por 1-4 - tendo os tentos argentinos sido apontados por Hayes, Susán, Viale, e Arnold Hutton. Porém, anos mais tarde, a Confederação Sul-Americana de Futebol não validou, digamos assim, este primeiro torneio como a edição estreia da Copa América, por razões que na verdade são pouco claras! O que se reconhece sim na Copa Centenario de la Revolución de Mayo é que ela galvanizou os países sul-americanos a darem aso à sua rivalidade dentro das canchas no seio de competições deste género, tal havia sido o sucesso do torneio idealizado pelos argentinos. Sucesso foi pois a principal palavra extraída desta Copa, a julgar não só pelo desmedido entusiasmo que a competição provocou nos fervorosos adeptos mas também pelo interesse dos dirigentes desportivos da época, que viam neste tipo de campeonatos internacionais o veículo ideal para levar o jovem futebol do continente a patamares mais elevados! 
E seria a pensar desta forma que seis anos mais tarde os argentinos - mais uma vez - orquestraram um novo capítulo dos acontecimentos ocorridos entre maio e junho de 1910. Aproveitando as comemorações do centenário da sua independência a Argentina leva então a cabo entre 2 e 17 de julho desse longínquo ano de 1916 o Campeonato Sul-Americano de Futebol, este sim, o tiro de partida oficial da atual Copa América. 


Entre os convidados voltavam a estar o Uruguai e o Chile, aos quais se juntava outra potência que começava a emergir no continente, o Brasil. Quarteto de luxo que se reuniu em Buenos Aires para dar vida a uma competição disputada em forma de poule, ou seja, em que todos jogavam contra todos, sendo o campeão a seleção que mais pontos contabilizasse. Mas até ao pontapé de saída algumas peripécias ficariam para a história desta primeira edição oficial do certame. A mais saliente foi protagonizada pela seleção brasileira, que esteve muito perto de... não participar no torneio. 
Nascida apenas dois anos antes a seleção teve algumas dificuldades no embarque para Buenos Aires, já que a planeada viagem marítima a bordo do navio Júpiter foi cancelada em cima da hora pelo jurista Ruy Barbosa que recusou que malandros - expressão por si usada (!) - viajassem no mesmo barco com diversos magistrados que iriam na mesma altura para a capital argentina. O Ministro das Relações Exteriores, Lauro Muller, tentou mediar este braço de ferro, mas em vão, pois a equipa brasileira teve mesmo de fazer a viagem para Buenos Aires de comboio, uma travessia que demorou quatro dias e cinco noites! Apesar do cansaço - evidente - provocado pela longa viagem o Brasil apresentou um futebol atrativo sob o ponto de vista técnico, caracterísitca que seria aprimorada com o passar dos anos e que faria deste país o rei do futebol planetário.
Apesar de muito jovem o futebol brasileiro daquela altura já tinha os seus ícones, as suas primeiras lendas, sendo a maior delas todas Arthur Friedenreich. Mas não só El Tigre - alcunha que imortalizou Friedenreich - atraía até si as luzes da ribalta deste primeiro Campeonato Sul-Americano. O Uruguai atravessava o Rio de la Plata com algumas das suas primeiras lendas, casos de José Piendibene, Juan Delgado, ou Isabelino Gradín - asto já aqui recordado noutros caminhos da história por nós trilhados -, assumindo-se como o maior rival da Argentina na luta pelo ceptro continental.

E eis que a 2 de julho a festa começou. No Estádio Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires - que acolheu a esmagadora maioria de jogos do torneio - entraram em campo Chile e Uruguai, com três mil espetadores a lotarem por completo o recinto. Sob a arbitragem do argentino Hugo Gronda os uruguaios mostraram na cancha toda a sua arte, o seu futebol rendilhado, fascinante, e... letal. Que o digam os chilenos, que cairam aos pés dos charrúas por 4-0! Para a história dessa partida ficaram dois homens. José Piendibene é um deles, médio-ofensivo alto, robusto, e criativo que aos 44 minutos desse célebre encontro fez balançar as redes pela primeira vez, entrando para a história como o autor do primeiro golo da - hoje - quase centenária Copa América. Descendente de italianos Piendibene saiu deste torneio endeusado pelos que o viram atuar, tendo ganho mesmo a alcunha de El Maestro, pela forma como comandava o jogo da sua equipa desde o centro do terreno, onde ditava leis como um centro campista de fino recorte técnico-tático. Mas a sua estrela não era a única a brilhar naquele cintilante coletivo. No setor ofensivo um negro, desecendente de escravos africanos, encantava a multidão com a magia do seu futebol. Isabelino Gradín se chamava. Nessa lendária tarde de 2 de julho ele apontou dois dos quatro tentos uruguaios - Piendibene apontou os outros dois - assombrando, no bom sentido, todos os presentes com o seu futebol, assente numa mescla de magia, velocidade, e força.

Vitória contra o racismo 

Episódio negativo - lamentável, na verdade - deste jogo inaugural do Campeonato Sul-Americano seria a posterior postura dos chilenos perante os factos ocorridos. Jogadores e dirigentes do Chile protestaram o encontro, queixando-se à organizção que os uruguaios haviam jogado com... dois negros na sua equipa! Esses negros, ou melhor, essas lendas, eram o centro-campista Juan Delgado e - claro - o atacante Isabelino Gradín. Apelidados de "atletas do carnaval" eles foram ridicularizados pelos chilenos numa época em que o racismo imperava um pouco por todo o Mundo. Felizmente, para o sucesso deste torneio inaugural, este ato racista chileno seria inglório, já que tanto Gradín como Delgado seriam reconhecidos pela organização como uruguaios de berço - e na verdade eram-no - tendo o triunfo da seleção charrúa sido validado para descontentamento dos preconceituosos chilenos. Mais do que uma rotunda vitória obtida dentro de campo o Uruguai - e de um modo muito em particular Gradín e Delgado - vencia o racismo!
E se este seria o argumento do Chile para tentar apagar a má imagem deixada no encontro de abertura do certame a Seleción Roja não teve sequer palavras para quatro dias depois justificar a tareia que levou da equipa da casa. 6-1, vitória da Argentina, com particularidade para a ocorrência de três bis - dois golos - da autoria de Alberto Ohaco, Juan Brown, e Alberto Marcovecchio, num encontro arbitrado pelo inglês Sidney Pullen, que era nada mais nada menos do que uma das principais estrelas da seleção do Brasil!  
Canarinhos que depois de muitas aventuras e desventuras subiram à cancha do Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires no dia 8 de julho para defrontar o pobre Chile, que com duas derrotas - bem pesadas na verdade - nada mais jogava do que o seu bom nome nesta sua derradeira aparição na competição. Talvez por isso, e já sem nada a ganhar, os chilenos entraram descontraídos em campo, dificultando ao máximo a vida dos artistas oriundos de Terras de Vera Cruz. Estes, comandados por uma comissão técnica composta por Joaquim de Souza Ribeiro, Benedicto Montenegro e Mário Sérgio Cardim, tinham a particularidade de ter no seu grupo dois... estrangeiros! A seleção do Brasil com dois estrangeiros? Impensável nos dias de hoje, mas realidade naquele tempo. Um deles era - como já vimos - o médio inglês Sidney Pullen, um dos grandes nomes do Flamengo dos anos 10 e 20, o outro era o guarda-redes português Casemiro do Amaral - já aqui evocado no Museu Virtual do Futebol noutras viagens ao passado - e habitual suplente do lendário goleiro Marcos Carneiro de Mendonça.

E foi com Pullen no onze - e Casemiro do Amaral na bancada - que o escrete fez então a sua estreia na prova. No entanto, e apesar de apresentar melhor futebol que os chilenos os canarinhos - que neste torneio apresentaram um equipamento peculiar: camisola listada de verde e amarelo, e calções brancos (!) - não foram além de um empate a um golo. Para a história do futebol brasileiro entra então o nome de Demósthenes, o avançado da Associação Atlética de Palmeiras, que aos 29 minutos desse duelo aponta aquele que foi o primeiro golo do Brasil na fase final de uma competição internacional oficial. A cinco minutos do final Hernando Salazar estraga a festa brasileira ao fazer o injusto 1-1 final. O Chile ia assim para casa com um pontinho no bolso, ao passo que os brasileiros tinham ainda pela frente os tubarões Argentina e Uruguai.

Fundação da CONMEBOL

Com apenas três jogos realizados o Campeonato Sul-Americano de Futebol fazia-se rodear de êxito a todos os níveis. Talvez olhando para isso o dirigente uruguaio Héctor Rivadavia Gómez propôs às confederações dos quatro países participantes a criação de um organismo que tutelasse todo o futebol da América do Sul, organismo esse que veria a luz do dia a 9 de julho desse ano - bem no decorrer da competição, portanto, e que seria batizado de Confederação Sul Americana de Futebol, a popular CONMEBOL. No dia seguinte à fundação deste organismo o Brasil teve pela frente o aguerrido conjunto da casa, que aos 10 minutos de jogo já traduzia em golos o seu teórico favoritismo no duelo, cabendo ao avançado do Huracán José Laguna encarnar o papel de herói ao violar as redes do português Casemiro do Amaral, que nesse jogou relegou para a bancada o titular Marcos. No entanto, os brasileiros não se deixaram influenciar pelo ambiente hostil que imanava das lotadas - de argentinos, pois claro - bancadas do Estádio Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires, e ainda antes do intervalo Alencar repôs a igualdade com que se atingiu os 90 minutos. O Brasil tinha superado o difícil teste argentino, e naquele momento ninguém no seio da seleção não sonhava com a coroa de campeão continental. Mas... ainda faltava o Uruguai.

No dia 12 de julho o Brasil entrou na cancha determinado a continuar a evidenciar o seu bom futebol até ali patenteado, e mais do que isso vencer os temíveis uruguaios e assim poder lutar pelo título. E as coisas até nem começaram mal para os artistas brasileiros. Aos oito minutos a estrela Friedenreich inaugura o marcador. Porém, a felicidade canarinha teria vida curta, já que pouco depois o defesa Orlando fica lesionado na sequência de um choque com El Maestro Piendibene. Ora, os regulamentos do torneio diziam que as substituições não eram permitidas, a não ser que os capitães de ambas as equipas concordassem em autorizá-las! E aqui entra a polémica. Jorge Germán Pacheco, capitão uruguaio, não aceitou a substituição, e a celeste uruguaia atuou o resto do encontro com mais um elemento sobre o retângulo de jogo, de nada valendo os protestos brasileiros. Mesmo com um elemento a menos o Brasil lutou, mas na segunda parte veio ao de cima toda a mestria uruguaia, em especial do mágico Isabelino Gradín, que aos 58 minutos restableceu o empate, apontando assim o seu terceiro golo na competição, e que lhe valeria o título de melhor marcador. A reviravolta dos charrúas seria consumada aos 77 minutos por intermédio de José Tognola, que batia o desamparado Casemiro do Amaral e acabava com o sonho brasileiro. 

Duelo mais desejado no jogo do título


Quiseram os caprichos do sorteio que o último jogo do Campeonato Sul-Americano de 1916 colocasse frente a frente os dois velhos inimigos do Rio de la Plata, e indiscutivelmente as duas melhores equipas do continente. No dia 16 de julho o Estádio  Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires engalanou-se para receber o decisivo encontro para o qual os uruguaios partiam em vantagem, pois um empate bastaria para garantirem o título, enquanto que os argentinos estavam obrigados a ganhar para poderem lançar os foguetes. O fervor dos adeptos de ambos os conjuntos era bem evidente, e com apenas cinco minutos decorridos a final - como era encarada - teve de ser interrompida devido a acesos confrontos nas bancadas para lá de lotadas, chegando mesmo a surgir uma ameaça de incêndio! Para o dia seguinte seria marcado um novo encontro, desta feita no Estádio do Racing Club, em Avelleneda,  que viu um empate a zero golos oferecer o primeiro título de campeão das Américas ao Uruguai.
Nascia assim a lenda das camisolas celestes, que no futuro próximo haveria de ter outros contornos de glória protagonizados por nomes como Scarone, Nasazzi, ou José Leandro Andrade. Mas por agora os imortais eram Piendibene, Juan Delgado, Jorge Germán Pacheco, Tognola, e claro Isabelino Gradín, o negrito mágico, melhor marcador deste torneio com três remates certeiros, e que além do futebol era também estrela no atletismo! 

Números e nomes:

2 de julho de 1916


Uruguai - Chile: 4-0
(Piendibene, aos 44m, aos 75m, Gradín, aos 55m, aos 70m)

6 de julho de 1916

Argentina - Chile: 6-1
(Ohaco, aos 2m, aos 75m, Brown, aos 60m, aos 62m, Marcovecchio, aos 67m, aos 89m)
(Báez, aos 44m)

8 de julho de 1916

Chile - Brasil: 1-1
(Salazar, aos 85m)
(Demósthenes, aos 29m)

10 de julho de 1916


Argentina - Brasil: 1-1
(Laguna, aos 10m)
(Alencar, aos 23m)

12 de julho de 1916

Uruguai - Brasil: 2-1
(Gradín, aos 58m, Tognola, aos 77m)
(Friedenreich, aos 8m)

17 de julho de 1916

Argentina - Uruguai: 0-0

Classificação

1-Uruguai: 5 pontos
2-Argentina: 4 pontos
3-Brasil: 2 pontos
4-Chile: 1 ponto

Legenda das fotografias.
1-Cartaz oficial da primeira Copa América, na altura denominada de Campeonato Sul-Americano de Futebol
2-Jogo entre Argentina e Uruguai, na Copa Centenario de la Revolución de Mayo de 1910

3-A seleção do Brasil que atuou ante o Chile, no Campeonato Sul-Americano de 1916. 
4-A bancada central do Estádio Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires
5-A estrela do torneio: Isabelino Gradín
6-Lance do jogo entre Brasil e Argentina (1)
7-Lance do jogo entre Brasil e Argentina (2)
8-Demósthenes, autor do primeiro golo de Brasil numa competição internacional
9-Uruguaios entram em campo no jogo final
10-José Piendibene, autor do primeiro golo do torneio
11-Seleção da Argentina
12-Os primeiros campeões da América, o Uruguai