segunda-feira, janeiro 07, 2013

Histórias do Futebol em Portugal (10)... Em memória de Velez Carneiro

Depois de duas temporadas consecutivas a morar no sul do país o título mais importante do futebol português dos anos 20 e 30 do século XX voltou ao norte, na época de 1924/25. E fê-lo pela mão do emblema mais titulado desta região, o Futebol Clube do Porto, que desta forma enriquecia as suas vitrinas com a sua segunda coroa de campeão de Portugal. Tratou-se de uma conquista muito especial, deveras emotiva, já que na cabeça - e sobretudo no coração - dos jogadores portistas estava gravado o nome de um querido e valoroso companheiro de luta, morto dias antes do início da caminhada triunfal naquela que era já a competição mais popular do futebol lusitano. Velez Carneiro, talentoso atleta do FC Porto que viu a morte bater demasiado cedo à sua porta, na sequência de um ajuste de contas fatal ante um marido atraiçoado...Tragédia ocorrida a 18 de maio desse longínquo ano de 1925, quase duas semanas antes da realização (31 de maio) da 1ª ronda de uma prova alargada a 11 associações de futebol, nomeadamente Porto, Lisboa, Viana do Castelo, Braga, Coimbra, Portalegre, Funchal, Algarve, Aveiro, Santarém, e Beja, estas três últimas a fazerem a sua estreia nestas andanças.

No entanto, e em cima do tiro de partida para a corrida ao título os representantes das associações de Santarém e Beja, respetivamente Leões de Santarém e Luso Beja, desistiram da competição, facto que possibilitou ao campeão de Lisboa, o Sporting, avançar imediatamente para as meias-finais, ficando isento das duas primeiras eliminatórias! 
Os restantes campeões regionais - à exceção de FC Porto e Marítimo - entraram então em campo no dia 31, sendo que no Campo do Raio, em Braga, o Sporting local era surpreendido pelos vizinhos minhotos do Vianense por 1-2, com os heróis de Viana do Castelo a darem pelos nomes de Lobo (fez o 0-1), e Gomes (apontou o 1-2).

Em Aveiro, no Campo de S. Domingos, o campeão do distrito, o Sporting de Espinho, sentia algumas dificuldades para derrotar os vice-campeões de Portugal da temporada de 22/23, a Académica de Coimbra. Os estudantes adiantaram-se no marcador por intermédio de Juvenal, tendo a primeira reação dos tigres da Costa Verde surgido dos pés de Simplício, que de grande penalidade repôs a igualdade. O tento da vitória espinhense foi apontado por António Rodrigues.

Massacre foi aquilo que os campeões em título, o Olhanense, fizeram ao Alentejo Football Clube, o campeão regional de Portalegre. No Campo da Padinha, em Olhão, os pupilos de Júlio Costa esmagaram por completo o combinado alentejano por 11-2!!! Destaque para José Gralho, autor de 6 dos 11 tentos dos algarvios.

Futuro campeão entra em ação

A prova conheceu o seu segundo capítulo no dia 7 de junho, com a realização da 2ª eliminatória. No Campo do Covelo, no Porto, a equipa local batia-se com o Vianense para discutir o acesso às meias finais. Portistas que se apresentavam com um novo treinador, o húngaro Akos Tezler, uma aposta pessoal do presidente azul e branco da altura, Domingos Almeida Soares, para substituir o francês Adolphe Cassaigne, o homem que, recorde-se, havia conduzido os rapazes da Invicta ao título de campeão de Portugal três anos antes.

Diga-se que a contratação do treinador húngaro foi bastante controversa, já que o seu ordenado de 1000 escudos por mês era para muitos dirigentes e adeptos uma autêntica heresia (!), pois convém não esquecer que o profissionalismo no futebol era algo de absurdo naquele tempo. Pois bem, o que é certo é que esta se revelaria uma aposta ganha do presidente portista, como mais à frente iremos ver.

E o primeiro obstáculo ultrapassado foi pois o Vianense, que no Covelo perdeu por 1-4, tendo os golos do FC Porto sido apontados por Balbino da Silva e Flávio Laranjeira, com dois golos cada um na sua conta pessoal. 
Em Lisboa, no Campo Grande, o Olhanense deu mais uma prova do seu valor, da genialidade dos seus jogadores, ao vencer o Marítimo por 4-2, com Gralho a apontar mais dois golos, ele que haveria de ser o rei dos goleadores desta edição do Campeonato de Portugal, com 8 remates certeiros.

Meia final polémica

Olhanense que haveria de ser afastado da prova na ronda seguinte, isto é, nas meias-finais, pelo Sporting. Um afastamento inglório, e deveras polémico. No Campo Grande o árbitro Mário Simões, da Associação de Futebol do Funchal, foi a figura do encontro, ao levar o leão ao colo até à final! Quiçá querendo fazer justiça pela eliminação dos seus conterrâneos do Marítimo aos pés dos talentosos jogadores de Olhão Mário Simões inventou uma grande penalidade inexistente a favor do Sporting em cima do minuto 90! Na conversão o treinador-jogador Filipe dos Santos fez o único golo da partida, um golo que ficaria eternamente conhecido como o... "golo sombra". No final do jogo os sportinguistas saíram do campo debaixo de uma chuva de... assobios, tendo posteriormente o capitão leonino, Jorge Vieira, vindo a público pedir desculpas ao Olhanense pelo... erro do árbitro! Outros tempos, tempos em que futebol era tratado com cavalheirismo.

Nesse mesmo dia 21 de junho, e de novo no Covelo (recinto do vizinho Salgueiros), o FC Porto repetia, ante o Espinho, o resultado aplicado ao Vianense na eliminatória anterior, ou seja, 4-1, com Flávio Laranjeira a fazer de novo o gosto ao pé em duas ocasiões, gesto imitado pelo seu companheiro de equipa Norman Hall.
O FC Porto de Tezler era uma equipa que praticava um futebol-espetáculo, algo que começava a encantar os adeptos dos dragões, os quais pareciam cada vez mais esquecerem-se do ordenado milionário que o técnico húngaro auferia na Invicta.

Repetição da final de 1922... com igual desfecho

Assim sendo FC Porto e Sporting voltavam a encontrar-se na final do campeonato, depois de terem medido forças pela primeira vez em 1922, na edição estreia da competição. Mas a disputa do ceptro nacional de 1925 começou muito antes dos jogadores entrarem em campo. Ambos os clubes gladiaram-se pelo local da final, sendo que os lisboetas queriam que o jogo decisivo fosse jogado ou em Santarém, ou em Coimbra, ao que os portistas responderam que só jogariam em Viana do Castelo! Por decisão da União Portuguesa de Futebol (UPF) venceram os azuis e brancos, isto quando faltavam apenas seis dias para o pontapé de saída do grande jogo!

Mas muito ainda havia para fazer, até porque o Campo de Monserrate não reunia as condições necessárias para acolher um duelo daquela importância. Foi então que numa ação relâmpago se fizeram obras de melhoramento do recinto, desde bancadas, passando por tribunas centrais, e até camarotes (!), tudo pelo astronómico valor - para aqueles dias - de 12 contos de réis!
Tudo pronto no dia da final (28 de junho), sendo que dos 5000 lugares disponíveis em Monserrate 3000 eram preenchidos pelos adeptos do FC Porto. Da Cidade Invicta viajaram dezenas de automóveis, e a CP disponibilizou dois comboios especiais que partiram da Estação de S. Bento (no Porto) apinhados de entusiastas portistas. De Lisboa não viajaram mais do que centena e meia de adeptos em auxílio dos leões. Como se não bastasse as opiniões distintas em relação ao local da final, FC Porto e Sporting também discordaram em relação à nomeação do árbitro. Não querendo mais confusões a UPF decidiu nomear um juiz... galego, de seu nome Rafael Nuñez.

E foi pois num autêntico caldeirão azul e branco que se desenrolou o encontro, que teve na equipa nortenha a mais determinada em chegar ao triunfo. Com Velez Carneiro no pensamento os portistas queriam ganhar e dedicar assim o título de campeão ao recém desaparecido companheiro, e nesse sentido partiram com tudo para cima dos lisboetas desde o apito inicial do galego Nuñez. Sem espanto chegariam pois à vantagem aos 14 minutos por intermédio do capitão Hall após uma boa jogada de combinação com João Nunes. Do lado dos portistas destaque igualmente para a exibição do seu guarda-redes, o também húngaro Mihaly Siska, que numa época em que o profissionalismo era proibido chegava ao Porto para desempenhar a função de... mecânico dentista numa empresa de vinhos! Mais uma mentira piedosa do presidente do clube Domingos Almeida Soares, quando confrontado pelos seus pares de Direção dos rumores de que Siska - oriundo do Vasas de Budapeste - vinha para o clube ganhar um ordenado milionário. Soares retorquiu que não, que viera para Portugal para ser mecânico dentista, e que o clube não iria pagar um tostão àquele que mais tarde viria a ser considerado o primeiro grande guarda-redes do futebol português.

Voltando ao jogo da final para dizer que o Sporting ainda reagiu na etapa complementar. Aos 50 minutos Jaime Gonçalves empatou a contenda, mas a tarde era azul e branca. Nove minutos depois Rafael Nuñez assinalou grande penalidade contra os lisboetas, por uma alegada mão na bola de Martinho de Oliveira. Os leões protestaram ferozmente, mas de nada lhes valeu tal manifestação, pois Coelho Costa atirou o esférico para o fundo das redes de Cipriano Nunes. Estava feito o resultado final, 2-1, e tal como em 1922 o FC Porto vencia o Sporting e sagrava-se campeão de Portugal.
Festa rija estalou de imediato em Viana do Castelo, prolongando-se nas horas seguintes ao Porto, enquanto que em Lisboa reinava a... revolta.

O consagrado jornalista Ricardo Ornelas, do jornal Sport de Lisboa, escrevia o seguinte: «A vitória portuense foi merecida porque o FC Porto jogou efetivamente melhor que o representante de Lisboa e porque, a par dessa superioridade técnica, lutou pela vitória com entusiasmo e com alma, e demonstrou, a cada momento da partida, perfeita compenetração do encargo que lhe cabia pela representação da sua cidade. O Sporting, pelo contrário, jogou sem convicção. Saiu do campo vencido por factos que devia desprezar ou esquecer. Inferiorizou-se, deixando-se dominar por factores que lhe deviam dar coragem e ânimo. Preocupou-se com o público, potuense na maioria; influenciou-se com a alma dos adversários e desmoralizou-se com os erros do árbitro...», juiz galego cujo desempenho Ornelas descreveu como «simplesmente bárbaro», numa alusão clara à grande penalidade que originou o golo da vitória portista, castigo máximo que para os leões não teve razão de existir.

Como prémio de vitória os jogadores do FC Porto receberam máquinas Gillete de ouro, oferecidas pela empresa lisboeta (!) João Machado da Conceição e Companhia Lda, representantes da mundialmente afamada fábrica Gillete de Nova Iorque.

A figura: Velez Carneiro

Não jogou um único minuto durante a caminhada triunfal no Campeonato de Portugal de 24/25, é certo, mas foi tão campeão quanto os seus companheiros. Velez Carneiro foi impedido de conquistar o seu segundo título de campeão de Portugal por um marido atraiçoado, que na noite de 18 de maio de 1925 matou o valoroso atleta com um tiro na cabeça.

Velez Carneiro nasceu em 1898, e começou o seu percurso futebolístico ao serviço do Sporting de Espinho, clube pelo qual se fez a sua estreia diante do... FC Porto, o seu futuro clube. Ingressou no emblema portuense em 1920, fazendo parte do conjunto que obteve a primeira vitória da história (3-2) sobre o Benfica. Médio ofensivo de gabadas qualidades técnico-táticas Velez Carneiro atingiu o ponto alto ao serviço dos dragões em 1922, altura em que ajudou a equipa a vencer o primeiro Campeonato de Portugal da história. E quando se preparava para arrecadar o seu segundo ceptro nacional foi... morto a tiro. Naquela trágica noite de 18 de maio o jovem jogador de 27 anos conversava com alguns amigos junto a uma das portas do Café Chave d' Ouro. Dele se abeirou posteriormente um individuo com cara de poucos amigos, que ao ouvido lhe disse qualquer coisa que mais ninguém terá escutado.

Velez avisou os amigos que voltava dali a nada, e partiu pelos Congregados abaixo junto do tal sujeito. Os poucos que testemunharam tal crime terão visto dois homens a discutir vivamente debaixo de um lampião na Travessa dos Congregados, ao que se seguiram alguns empurrões, socos, pontapés, e por fim um tiro, uma bala que atingiu mortalmente - na cabeça - o talentoso futebolista. O assassino era Carmindo Ferreira Duarte, escriturário na empresa Minho e Douro, e ao que parece um marido traído pelos dotes extra futebolísticos de Velez!

O funeral do futebolista (ocorrido no dia 22 de maio) foi imponente, ou não fosse ele um dos ídolos do clube. O Jornal de Notícias desse dia escrevia: «Muito antes da hora marcada para a saída do féretro já o Campo de Jogos da Constituição regurgitava de pessoas. Depois de dar a volta ao campo, o féretro, conduzido pelos jogadores do team de que o finado fazia parte, foi colocado ao centro do campo, mantendo-se o público em silêncio durante cinco minutos, que foram observados religiosamente. Findo este recolhimento que impressionou, a Direcção do F. C. Porto procedeu à colocação da bandeira do seu clube sobre o féretro. O capitão da equipa, Hall, conduzia sobre uma almofada de cetim preto as medalhas oferecidas ao falecido jogador.»

Resultados

1ª Eliminatória

Sp. Braga - Vianense: 1-2

Sp. Espinho - Académica: 2-1

Olhanense - Alentejo FC: 11-2

2ª Eliminatória

FC Porto - Vianense: 4-1

Olhanense - Marítimo: 4-2

Meias-finais

FC Porto - Sp. Espinho: 4-1

Sporting - Olhanense: 1-0

Final

FC Porto - Sporting: 2-1

Data: 28 de junho de 1925

Estádio: Campo de Monserrate, em Viana do Castelo

Árbitro: Rafael Nuñez (Galiza)

FC Porto: Miguel Siska; Júlio Cardoso, Pedro Temudo; Humberto, Coelho da Costa, Floreano Pereira; Augusto Freire, Balbino da Silva, Flávio Laranjeira, Norman Hall, e João Nunes. Treinador: Akos Tezler

Sporting: Cipriano Nunes; Joaquim Ferreira, Jorge Vieira; José Leandro, Filipe dos Santos, Martinho de Oliveira; Torres Pereira, Jaime Gonçalves, Henrique Portela, João Francisco, e Emílio Ramos. Treinador: Filipe dos Santos

Golos: 1-0 (Hall, aos 14m), 1-1 (Jaime Gonçalves, aos 50m); 2-1 (Coelho da Costa, aos 59m)

Legenda das fotografias:
1-Equipa do FC Porto vencedora do Campeonato de Portugal de 24/25
2-Balbino da Silva, autor de dois golos ante o Vianense na 2ª eliminatória
3-Lance do polémico jogo Sporting - Olhanense
4-Outro lance, desta feita da grande final
5-Velez Carneiro

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