A
4 de junho de 1980 era escrito no templo
Santiago Bernabéu um capítulo muito peculiar da História do
Futebol: o Real Madrid enfrentava na final da Copa
del Rey
o… Real Madrid! Para tornar a “coisa” um pouco mais confusa
para o leitor menos familiarizado com as efemérides do Planeta
da Bola, digamos
que o colosso da capital espanhola se defrontou a si mesmo na final
da Taça de Espanha da temporada 1979/80! E não, não foi num jogo
de treino entre os jogadores do então plantel merengue,
foi mesmo um jogo oficial! Passamos a decifrar este enigma.
A
equipa principal do Real Madrid defrontou nessa mítica e inédita
final a sua congénere B, na altura denominada de Real Madrid
Castilla. Para nos enquadrarmos melhor com este cenário, isto seria
a mesma coisa que ver um dos chamados “três grandes” do nosso
futebol defrontar a sua equipa B numa partida oficial.
Cenário
que hoje é impensável à luz dos regulamentos, tanto em Portugal
como além
fronteiras,
mas que naquela altura foi uma realidade.
Não
vamos falar hoje (de forma esmiuçada) da caminhada de glória dos
niños
do Castilla até à final da Copa,
onde seriam derrotados (outra coisa não seria de esperar) pelo
progenitor merengue
por 6-1, mas vamos sim recordar um episódio passado em Portugal com
algumas semelhanças com esta fábula castelhana.
A equipa da Académica/SF na temporada de 2014/15 |
E
esta história leva-nos a Coimbra, a cidade dos estudantes e de
outros encantos, que num passado muito recente – em 2014 –
assistiu a um duelo
de… Académicas! Académica só há uma, pensarão por esta altura
alguns leitores, mas na realidade, hoje, a cidade beijada
pelo Mondego é berço de duas Associações Académica de Coimbra.
Por palavras mais objetivas, a Académica/Secção de Futebol (SF) e
a Académica/Organismo Autónomo de Futebol (OAF).
Sem
dúvida que a existência de dois clubes sob a essência, digamos
assim, de apenas um emblema é um tema polémico em Coimbra e que tem
dividido a cidade. Não vamos abordar minuciosamente este dilema,
rodeado da tal polémica e motivo de acesas discussões em terra
dos doutores,
mas antes recorda um capítulo desportivo destes dois clubes... ou
simplesmente deste clube, porque para muitos opinadores
a Académica é só uma.
Tal
episódio aconteceu na temporada desportiva de 2014/15, quando quis o
destino que a SF da Académica defrontasse na 1ª jornada do
Campeonato da Divisão de Honra da Associação de Futebol de Coimbra
(AFC) a equipa B do OAF da Académica. Um duelo
entre duas Briosas com ideologias distintas. A SF guarda em si a
mística do clube constituído apenas e só por jogadores estudantes
(da velha e lendária Universidade de Coimbra), atletas que entram em
campo de capa aos ombros por entre gritos de F-R-A como nos velhos
tempos da Briosa. À boa maneira estudantil coimbrã, portanto.
A
SF foi reativada em 1977 após três anos antes o clube ter sido
dissolvido e dado lugar ao então Clube Académico de Coimbra. Por
sua vez, este deu origem ao Organismo Autónomo de Futebol, criado em
1984, sendo este o lado da Académica profissional, digamos assim, da
Académica que hoje milita na II Liga do futebol português.
Dois
clubes, duas realidades distintas na defesa do mesmo emblema. Na SF
joga-se única e exclusivamente por amor à Briosa, não há
salários, é o verdadeiro clube dos estudantes (dizem em Coimbra);
ao passo que no OAF o profissionalismo é há mais de 30 anos uma
realidade, não existe a obrigatoriedade dos jogadores virem – ou
frequentarem - da academia. No entanto, há igualmente quem defenda
que o amor à Briosa é comum, e que de certa forma foi estranho ver
as duas Académicas defrontarem-se pela primeira vez num jogo oficial
de seniores naquela tarde de 28 de setembro de 2014, no Estádio
Universitário de Coimbra diante de três centenas de adeptos. Uns
confessavam o seu apoio à OAF, outros a sua paixão e admiração
pela SF, outros apresentavam-se ainda de coração dividido, mas em
comum todos tinham o amor pela Académica. O resultado final deste
jogo será possivelmente o que menos importará neste confronto
histórico: 3-1 para a SF que nessa temporada iria vencer a Divisão
de Honra da AFC e ascender ao Campeonato Nacional de Seniores, ao
passo que a equipa B do OAF quedou-se pelo 5º lugar da classificação
final – recorde-se que a equipa principal do OAF disputava nessa
época a I Liga.
As
duas Académicas iriam voltar a encontra-se na segunda volta dessa
Divisão de Honra 14/15, desta feita no Campo Ramos de Carvalho,
tendo a SF voltado a levar a melhor sobre o seu clone
– pelo menos na designação –, desta feita por 4-3.
No
entanto, para a história fica mesmo o primeiro confronto, até então
inédito no escalão sénior, jogo esse que o Jornal de Notícias deu
destaque na sua edição de 29 de setembro de 2014, num texto
assinado pelo jornalista João Pedro Campos, que aqui postamos para a
eternidade.
Secção
de Futebol da Académica leva a melhor sobre o Organismo Autónomo
num duelo entre amigos
JOGO
A DOER PARA A HISTÓRIA DA BRIOSA
A
primeira vez na história que a Secção de Futebol (SF) e Organismo
Autónomo de Futebol (OAF) da Académica se defrontaram, em jogo a
contar para a primeira jornada da Divisão de Honra da Associação
de Futebol de Coimbra, teve de tudo, no Estádio Universitário de
Coimbra. Desde o tradicional “canelão” – cerimónia de batismo
dos novos jogadores – feito pelas duas equipas, a uma roda e um
F-R-A conjunto, e um ambiente de grande desportivismo e amizade entre
todos os intervenientes, numa atmosfera rara para um encontro em que
havia três pontos em disputa.
Os
três pontos, esses, foram para a Académica/SF, que venceu por 3-1.
Sérgio Garcês (14), Dany Marques (82) e Eduardo Seixas (84)
entraram para a história da Secção, ao marcar os primeiros golos
de sempre à formação com quem partilham o emblema, a casa-mãe e a
história. Rui Pereira, aos 90+4, reduziu para a equipa sub-23 (ou B)
da Académica. Um resultado justo, para a equipa que mais procurou a
baliza adversária. Mas, no final, os espectadores aplaudiram as duas
equipas, sem ligar muito a vencedores e vencidos.
Cinco
golos gritados
“Na
primeira parte estou por uma equipa, na segunda parte estou pela
outra”. A frase foi dita por uma jovem presente na bancada antes do
início da partida. Entre as cerca de três centenas de espectadores
que marcaram presença no Estádio Universitário, algumas caras
conhecidas, com o presidente da Académica, José Eduardo Simões, à
cabeça. Nuno Oliveira, candidato derrotado nas últimas eleições
do clube, em maio, também não faltou, bem como o presidente da
Direção-Geral da Associação Académica de Coimbra, Bruno Matias.
As
bancadas mostraram-se divididas, mas com algum ascendente da Secção
de Futebol – neste jogo a atuar de branco -, cujos lances eram
acompanhados de maior entusiasmo por parte de quem se deslocou ao
estádio. O extremo Sérgio Garcês protagonizou a primeira explosão
de alegria no encontro, aproveitando a atrapalhação da defesa do
OAF. Mas o momento de maior euforia vivida dentro e fora do campo,
surgiu ao minuto 82, quando Dany Marques – um dos muitos
ex-Académica/OAF que representam a equipa universitária –,
ampliou a vantagem, com jogadores e treinadores da SF abraçados.
O
dado mais curioso vindo da bancada foi, num jogo com quatro golos, se
terem gritado cinco. Tudo porque, ao mesmo tempo, também a Académica
(equipa principal da OAF) jogava, e marcava em Arouca, conquistando a
primeira vitória na I Liga.
ENTREVISTA
A EDUARDO SEIXAS (autor de um dos golos da SF nesse dia)
28
homens (os 22 titulares mais os seis suplentes utilizados no
decorrer da partida) entraram em campo nesse dia 28 de setembro de
2014 para defender as cores da... Académica. Um deles foi Eduardo
Seixas, jovem atleta que atuou pela Académica/SF e que até marcou
um dos golos do triunfo da equipa que naquele dia equipou de branco.
Seixas, então estudante de Ciências do Desporto em Coimbra, esteve
no Museu Virtual do Futebol, onde numa breve conversa recordou as
emoções daquele histórico dia.
Museu
Virtual do Futebol (MVF): O Seixas subiu ao relvado do Estádio
Universitário de Coimbra na condição de titular da equipa da SF
para enfrentar o OAF. Que sentimentos carregava consigo naquele dia
histórico ao defrontar a Académica pela... Académica?
Eduardo
Seixas (ES): No
meu caso específico, e de alguns outros colegas, que como eu já
tinham jogado no lado contrário (no OAF), o sentimento foi de
responsabilidade tremenda. Não só por termos a necessidade de
provar que no OAF estavam errados quando não apostaram na nossa
continuidade, mas igualmente pela conotação negativa que era dada à
nossa equipa. Quisemos provar que não havia uma Académica 'boa' e
uma Académica 'má'. E que apesar da falta de financiamento e de
condições, quando comparado com os nossos “adversários”,
tínhamos condições de fazer algo muito positivo. E como é óbvio,
queríamos dignificar o símbolo que carregávamos ao peito.
MVF:
Como foram vividos aqueles dias que antecederam o jogo, isto é, como
é que a cidade de Coimbra estava a encarar aquela partida?
ES:
Havia muita divisão de opiniões. A discussão principal era qual
seria a “verdadeira” Académica, mas também se levantavam
questões quanto à lógica deste jogo. Pois a Académica devia estar
unida numa só.
MVF:
Pegando nesta sua resposta, qual era a opinião quer do Seixas e de
outros colegas seus da SF em redor deste encontro. Fazia sentido duas
“Académicas” defrontarem-se no terreno de jogo?
ES:
Mesmo no nosso balneário havia alguma divisão de opiniões. Este é
um tema de ampla discussão, devido às origens de cada uma das
equipas. Mas nessas semanas o nosso foco foi a vitória no jogo , e
não tanto responder à questão se fazia ou não sentido a
realização deste jogo...
MVF:
...Certo, mas o Seixas além de representar a SF também fez formação
no OAF. Nesse sentido conhece bem os dois lados. E pergunto-lhe, qual
é a verdadeira Académica?
ES:
Não acho que haja uma “verdadeira” Académica. Nos primórdios
da sua história a Académica só podia ser constituída por
estudantes, e para se competir a um nível superior essa restrição
dificulta o processo. Por aí procurou-se profissionalizar a
Académica, formou-se então a Académica/OAF, mas acredito que ambas
(as equipas) partilham os mesmos valores e ideologias. Uma num
contexto profissional, e outra num contexto amador.
MVF:
Mas faz sentido na sua opinião esta divisão? Ou por outro lado,
acha que o profissionalismo (do futebol) e a academia (estudantes)
podiam conviver perfeitamente num só clube?
ES:
Penso que estas duas vertentes podem encaixar perfeitamente uma na
outra, desde que haja coordenação entre ideologias.
MVF:
Voltando ao jogo, ao histórico jogo entre as duas Académicas. O
Seixas marcou um golo, que significado teve para si esse golo?
ES:
Foi um golo especial, um turbilhão de emoções. Era um jogo que por
si só gerava imensa expectativa, e eu sentia que tinha algo a provar
por já ter estado do “lado de lá”. Mas também muito feliz por
saber que estávamos a iniciar a nossa caminhada rumo a um objetivo
(subida de divisão) nunca antes conseguido.
MVF:
E o público, como estava nesse dia? Vocês sentiam divisões (no
apoio) na bancada?
ES:
Aqueles
que estiveram presentes nesse dia foram os mesmos que nos
acompanharam em toda a caminhada, por isso a única coisa que
sentimos foi apoio.
MVF:
Foi um jogo especial para Coimbra e ao mesmo tempo estranho (?)...
ES:
Acho que foi um misto desses dois sentimentos!