terça-feira, fevereiro 21, 2017

Histórias do Futebol em Portugal (17)... O dia em que o recém nascido Oriental introduziu em Portugal a numeração nas camisolas



A equipa do Oriental que em 1946 entrou na história do futebol português
Saber onde foi o ponto de partida “disto ou daquilo” é por vezes uma missão espinhosa para um historiador, seja ele de que área for. E no futebol essa incerteza que convive com os investigadores do esférico sobre um determinado facto é em muitas ocasiões uma realidade, ou não estivéssemos nós perante um fenómeno global em que nem sempre é fácil ter certezas absolutas se determinado facto aconteceu pela primeira vez “aqui ou ali”. É o caso da numeração nas camisolas, que ainda hoje suscita algumas dúvidas entre os historiadores sobre o local ou a(s) equipa(s) que pela primeira vez na história usou dorsais nas costas dos seus mantos sagrados – vulgo camisolas. Há quem aponte o ano de 1911 como aquele em que pela primeira vez jogadores de duas equipas surgiram no retângulo de jogo com as “costas” numeradas. Facto ocorrido, segundo reza a história, na Austrália, num jogo disputado em Sydney, entre os conjuntos do Sydney Leichardt e do HMS Powerfull. Uma moda que terá pegado de estaca em terras de cangurus, já que no ano seguinte todas as equipas do país foram obrigadas a usar numeração nos torneios oficiais em que competiam. 
Outros historiadores defendem que os números estampados nas costas das camisolas surgiram pela primeira vez nos Estados Unidos da América, nos anos 20, num jogo entre o Fall River Marksmen e o Saint Louis Vesper Buick. Certezas, certezas de onde foi a "primeira vez" não existem, sabendo-se apenas que a moda rapidamente pegou, e em finais dos anos 20 do século passado chegou (com toda a certeza) à Europa, mais concretamente à pátria do futebol moderno, Inglaterra, onde o Arsenal então orientado pelo lendário Herbert Chapman surgiu em campo para defrontar o Sheffield Wednesday a 25 de agosto de 1928 com as suas camisolas numeradas. Segundo a História, e no mesmo dia, o Chelsea defrontou o Swansea Town com as suas camisolas... numeradas! A única diferença entre os rivais londrinos residiu no facto de que o guarda-redes dos blues não usava número na sua camisola, contrariamente aos seus colegas de campo - cuja numeração ia do 2 ao 11. Já os gunners apresentavam a sua equipa numerada de 1 a 11. 
E em Portugal, quando é que a moda pegou? Quando é que uma equipa se apresentou com camisolas numeradas num jogo? Bom, é aqui que entronca a nossa história de hoje, o momento em que os números nas costas dos jogadores bailaram pela primeira vez num relvado lusitano.
Facto histórico que coincide com outro momento histórico para um não menos histórico - e perdoem-nos os nossos visitantes por usarmos e abusarmos desta palavra - clube lusitano, neste caso o Clube Oriental de Lisboa. Bem, sobre a história do Oriental não nos vamos alongar muito, até porque ela é rica e extensa, e não caberia neste artigo, vamos sim centrar-nos no primeiro passo futebolístico que este emblema deu e que entrou na história do futebol em Portugal. 
Relembrar apenas que o Oriental nasceu da fusão de três pequenos clubes da zona oriental de Lisboa, no caso o Clube Desportivo "Os Fósforos", o Marvilense Futebol Clube e o Chelas Futebol Clube. Uma união que visava um sonho: dotar a freguesia de Marvila de um grande clube. E assim nasceu a 8 de agosto de 1946 o Clube Oriental de Lisboa. O futebol foi desde o primeiro dia a modalidade rainha de um emblema que alcançou inúmeros momentos de glória - desde logo as presenças no palco principal do futebol luso, a 1ª Divisão, onde esteve por sete ocasiões. E foi precisamente ao serviço do desporto rei que o Oriental entrou para a História do futebol português no dia 15 de setembro de 1946. Uma jornada cheia de significado para o então recém nascido Oriental, que nessa tarde disputava diante do gigante Belenenses aquele que era o primeiro match da sua curta existência. Uma partida desenrolada no mítico Estádio das Salésias a contar para a ronda inaugural do Campeonato Regional de Lisboa da temporada de 1946/47. Rezam as crónicas que o recém criado Oriental vendeu muito cara a derrota (1-2) diante do emblema que nessa temporada haveria de conquistar o maior feito da sua história: o título de campeão nacional da 1ª Divisão
Mas nesse longínquo encontro do Regional lisboeta um pormenor histórico ressalta hoje, passados poucos mais de 70 anos, à nossa memória, isto é, o facto de pela primeira vez uma equipa de futebol ter usado números nas suas camisolas. E esse registo pertence ao Oriental, que mal gatinhava ainda e já se apresentava inovador. Aliás, na antecâmara deste encontro um dirigente do clube de Marvila, no caso Rui de Seixas, levantava um pouco do véu junto da imprensa da época ao dizer que o seu clube iria surgir nas Salésias com uma pequena surpresa, fazendo um apelo ao público para comparecer ao encontro pois iriam presenciar algo de inédito nos retângulos da bola lusitanos. O mistério lançado pelo dirigente orientalista foi então dissipado na tarde de 15 de setembro, quando os jogadores de Marvila surgiram no relvado com as camisolas numeradas de 1 a 11. E assim se fazia história no futebol português. A imprensa da época fez eco desta "primeira vez" que os números bailaram nas costas das camisolas de uma equipa em Portugal, tendo o mestre Cândido de Oliveira, por exemplo, escrito que «a decisão do Oriental de numerar os jogadores merece relevo e é digna de ser seguida por todos os clubes». Seria contudo só a partir da época de 1947/48 que a Federação Portuguesa de Futebol iria tornar obrigatório o uso de números nas camisolas. 

domingo, fevereiro 12, 2017

Arquivos do Futebol Português (8)...

Um quadro de Lisboa no início do Século XX
O início do século XX trouxe consigo a alavanca que iria catapultar em definitivo o futebol português para o caminho da popularidade. Não deixa de ser curioso que esta ascensão acontece em anos conturbados da vida do país, o qual estava mergulhado numa profunda crise sócio-económica. O regime monárquico era pontapeado sistematicamente pelo movimento republicano que ganhava cada vez mais adeptos e força para vencer uma batalha que teria o seu epílogo a 5 de Outubro de 1910 - precisamente com a implementação da República. Mas isso são outras histórias... Era, no entanto, num cenário negro que o país vivia no início do novo século, sob o signo da tristeza, do sofrimento e da miséria. Motivos para sorrir eram quase uma miragem. Quase, e este quase deve-se ao futebol, ou jogo do coice, como então ainda era denominado por alguns que resistiam em ridicularizar aquele que começava aqui a tornar-se como o ópio do povo, como muitos anos mais tarde "alguém" viria a denominar esta modalidade. Na verdade, o football começava a vislumbrar-se por estes dias conturbados como uma distração de um povo que diariamente sofria as consequências da agitação - a diversos níveis - que se vivia em Portugal. E a quem muito se deve este súbito despertar do interesse em torno do belo jogo foi à imprensa. Após os últimos anos do século anterior terem sido pautados por algum desprezo face ao jogo, os jornais (nota: o Tiro Civil é um dos mais ativos na publicação de notícias futebolísticas por estes dias) voltam a centrar atenções nos matches - e nas figuras que lhes davam vida - que iam sendo desenrolados. Nos primeiros anos do novo século surgem mesmo inúmeras publicações vocacionadas apenas para o sport, não só no futebol como noutras modalidades, facto que contribuiu imenso para a popularização do fenómeno. E quando falamos em popularização aludimos ao facto de o football começar neste início de século a sair do berço aristocrático em que nasceu para se juntar ao povo, às classes mais baixas da sociedade. Apesar deste início de união (eterna) entre futebol e povo começar a ganhar vida nos primeiros lampejos do século XX, seriam, de certa forma, os aristocratas a voltar a segurar na alavanca que iria impulsionar de vez o futebol em Portugal. E neste capítulo há que destacar uma vez mais a nobre família Pinto Basto, os introdutores do jogo no nosso país, nunca é demais recordar, cabendo a eles uma grande parte da responsabilidade pelo facto de a bola recomeçar a saltar com vigor nos grounds nacionais.

Eduardo Luís Pinto Basto
A chama do futebol em Portugal reacende-se no seu berço, isto é, em Lisboa. É lá que alguns grupos se voltam a reunir. Em Belém surgem alguns grupos provenientes da Casa Pia, e que acabariam por estar na génese do futuro Sport Lisboa que mais tarde viria a tornar-se no atual Sport Lisboa e Benfica. De forma um pouco mais organizada o futebol ressurge então pela mão dos aristocratas, com os Pinto Basto a comandar esse intento juntamente com a colónia inglesa radicada na capital - ou zona envolvente - que sempre continuou a praticar o jogo mesmo no período em que ele esteve digamos que moribundo. Claro que noutras zonas da capital, em Belém como já vimos, o futebol ganhou vida pela mão de populares, sobretudo estudantes, muitos deles vindos da também já referida Casa Pia, mas no que concerne a matches rodeados de interesse, esses ainda eram disputados por aristocratas e ingleses, sendo aqui de destacar três clubes em particular, o Carcavellos Club, o Lisbon Cricket Club - dois temidos emblemas fundados e compostos por ingleses - e o Real Ginásio Clube, agremiação de índole nacional reanimada pela mão da família Pinto Basto, sobretudo por intermédio de Eduardo Luís Pinto Basto, cuja ação foi preponderante para a reorganização da secção de futebol do Ginásio Clube. Por esta altura, e facto que também terá contribuído para o definitivo enraizamento do futebol em Portugal, terá sido o fim do ódio português a tudo o que era inglês, e como o football era uma criação britânica abriram-se os braços ao beautiful game.

No concerne a matches, ou notícias relevantes de jogos, que surgiram na imprensa durante esta época de 1900/01, destacamos por exemplo a goleada do Carcavellos Club - continuava indiscutivelmente a dominar o futebol lisboeta - aos conterrâneos do Lisbon Cricket Club por 5-0, num duelo disputado na Quinta Nova, em Carcavelos, em março, sendo que no plano individual um tal de Withers destacou-se ao apontar três golos. No início de 1901 o Real Ginásio Club havia também medido forças com o Carcavellos Club, tendo conseguido o enorme feito de travar a armada britânica com um... empate a zero bolas na Cruz Quebrada.
Em 16 de março de 1901 acontece algo de certa forma histórico, que veio quebrar pela primeira vez em Portugal uma tradição inglesa, a de não se jogar football ao domingo por motivos religiosos. Neste dia o Carcavellos Club aceita um desafio diante do Real Ginásio Clube, ocorrido em Carcavelos. A notícia deste match é dada com relevância no Diário Ilustrado de 18 de março desse ano de 1901, da qual recordamos na integra alguns trechos que mostram a mestria e a admiração (que crescia entre os portugueses) pelos ingleses e a bravura dos lusos:
«(...) Os jogadores de Lisboa partiram acompanhados de grande número de sportsmen e senhores convidados no comboio da 1.45 do Cais do Sodré. Chegados a Carcavellos às 2 e meia, eram cercadas 3 quando o referee, Sr. Blythman, deu o sinal de começo, estando frente a frente os dois teams seguintes: Por Carcavellos Club: Durrant (goalkeeper), E.A. Wilmott (back), Hall (back), Normandy (half back), E.P. Wilmott (half back), Manes (half back), Coombs (forward), MacKay (forward), Clark (forward), Gibbons (forward) e Colider (forward). 
Pelo Real Gymnasio Club: Figueiredo (goalkeeper), Aimé da Costa Feio (back) e Siddle (back), C. Gonçalves (half back), F. Boavida (half back) e Motta Veiga (half back), Lacerda (forward), L. Araujo (forward), Mortimer (forward), (nota: desconhecendo-se os dois outros jogadores).
De ambos os lados, desde o principio, jogou-se com valentia. Por parte do team inglês notou-se o que sempre se nota por parte de teams ingleses, e em especial de Carcavellos: muito treino. O seu segredo não é outro.É esse: muito treino. O muito treino dá-lhes unidade no ataque, resistencia na defesa, certesa nos pontapés e folego para nunca abandonarem a bola. (...) São em football o que são em polities, em família, em comércio, em tudo: valentes dentro de sangue frio, enthusiastas dentro da logica, atrevidos dentro da lei. Modelos em tudo. (...) Na 1ª parte marcaram 2 goals contra nenhum; na 2ª marcaram outros dois contra nenhum. Não se pense, porém, que venceram com facilidade. Custou-lhes a vencer, e o perder os portugueses não podia ser mais honroso do para estes do que foi. Efectivamente sem treinos, com jogadores - como o goalkeeper - que há seis anos não jogava e outros que não conheciam o jogo dos seus parceiros, é precisa muita alma, alma de portugueses para aguentar o embate das hostes inimigas com valentia com que o R.G.C. aguantou (...)».