Na maioria das ocasiões eles dão vida ao lado mais polémico do futebol. As suas decisões nem sempre são encaradas com fair-play, e muitas vezes são apontadas como a causa de uma derrota, da perda de um título, ou mesmo da violência física tristemente portagonizada por artistas e adeptos do belo jogo. Quando se ganha ninguém se lembra deles, mas quando se perde toda a gente lhes aponta o dedo reprovador. Apesar de tudo eles fazem parte do espetáculo, são eles que o dirigem, para o bem... e para o mal. Eles são os árbitros de futebol, as figuras do apito, que de hoje em diante terão uma vitrina a eles reservada nos corredores do Museu Virtual do Futebol.
E a nossa primeira estrela - sim, eles também brilham no universo futebolístico - é quiçá a primeira figura mediática da arbitragem internacional. John Langenus, de seu nome, belga de nascimento que ficou célebre por ter dirigido a primeira final de um Campeonato do Mundo, no Uruguai, em 1930. Este terá sido um justo prémio para aquele que era na altura considerado o melhor juíz do planeta, que a nível internacional havia feito a sua estreia nos Jogos Olímpicos de Amesterdão, em 1928.
Nasceu a 8 de dezembro de 1891, em Berchem, próximo de Antuérpia, e descobriu a aptidão para o apito, digamos assim, depois de comprovar o seu pouco - ou mesmo nenhum - talento para a interpretação do jogo enquanto praticante. A este propósito uma vez disse Diego Armando Maradona: «Quem tem jeito (para a prática do futebol) vai para jogador, quem não tem vai para... jornalista desportivo»! Pois bem, longas décadas antes desta célebre teoria ter sido lançada a público pela lenda argentina já Langenus a punha em prática, já que além do talento para apitar jogos de futebol ele revelava-se igualmente um habilidoso artesão das palavras, o mesmo é dizer, um notável jornalista desportivo. Esta foi pois a (dulpa)forma que este cidadão belga encontrou para continuar ligado ao desporto que tanto amava. No entanto, a sua entrada na arbitragem também não foi fácil, já que ao desconhecer a resposta para a questão sobre "o que fazer quando a bola bater num avião que voasse a baixa altitude…" (!) fez com que reprovasse no primeiro exame de admissão para ser árbitro! Acontece aos melhores...
Homem culto - dominava quatro idiomas - Langenus, que profissionalmente desempenhava funções de chefe de gabinete do governador de Antuérpia, era, como já vimos, um apreciado jornalista, tendo escrito centenas de crónicas alusivas a encontros de futebol, grande parte delas guardadas nos arquivos da prestigiada revista alemã Kicker, com quem o belga colaborou durante muito tempo. Curioso é que grande parte dos jogos analisados jornalisticamente, por assim dizer, por John Langenus eram, ou tinham sido, dirigidos... por ele próprio! Reza a lenda que no final de cada jogo recolhia aos balneários onde redigia a crónica desse mesmo jogo para depois a enviar para a Kicker.
Dentro do campo tinha pulso forte com os jogadores, onde o seu metro e noventa de altura impunha respeito. Ganhou pois a admiração de uma classe (futebolistas) que além de respeito para com ele olhava-o com algum espanto! É verdade. Além de dar nas vistas como árbitro Langenus atraia as atenções - quer dos jogadores, quer do público - pela forma exótica como se equipava. Usava sempre umas calças largas - à golfista! -, meias até ao joelho, jaqueta cumprida, e uma pequena gravata, que lhe conferiam um visual muito peculiar.
Batismo internacional
O dia 25 de fevereiro de 1923 fica marcado na carreira do primeiro grande nome da arbitragem planetária, o dia em que dirige o seu primeiro encontro internacional, facto ocorrido em Paris, onde a França venceu por 3-2 o Luxemburgo. Dali em diante visita mais algumas cidades europeias, onde arbitra sobretudo encontros internacionais de caráter particular. Os níveis da sua popularidade foram subindo de tom, não admirando que em 1928 fosse chamado ao torneio olímpico de futebol, na altura o maior evento futebolístico à escala planetária. Em Amesterdão, localidade onde decorreram as Olimpíadas de 28, Langenus vivenciou o seu primeiro momento de glória no mundo da arbitragem, ao apitar dois jogos na qualidade de árbitro principal, e atuado como linesman (fiscal de linha, ou árbitro assistente como agora são denominados) na grande final olímpica.
A 30 de maio de 1928, no Estádio Olímpico de Amesterdão, ele dirige a partida que colocou frente a frente a equipa da casa, a Holanda, aos futuros campeões olímpicos, ou melhor, bi-campeões olímpicos, o lendário conjunto do Uruguai. Uma oportunidade única para os adeptos holandeses verem na sua pátria algumas das estrelas do futebol daqueles anos 20, casos de José Nasazzi, Héctor Scarone, a Maravilha Negra José Leandro Andrade, ou... John Langenus, também ele já uma verdadeira estrela do futebol internacional. Ainda nessa histórica Olimpíada o belga dirigiu um novo encontro, também ocorrido no estádio olímpico, e que opôs a Itália ao Egito. Em jogo estava nada mais nada menos do que a medalha de bronze, a qual iria para o peito da squadra azzurra, depois de um categórico triunfo sobre os faraós por 11-3. Este facto ocorreu a 9 de junho, quatro dias antes da final, onde marcaram presença as duas potências do futebol sul-americano da época, tidas aliás para muitos como as seleções mais fortes do mundo, a Argentina e o Uruguai.
Para apitar o jogo mais aguardado do torneio - o qual seria ganho pelos uruguaios - foi chamado o holandês Johannes Mutters, o qual seria coadjuvado pelo italiano Achile Gama e o... belga John Langenus. Era já mais do que evidente o prestígio que angariava a nível internacional.
Momento de glória vivido em Montevidéu
De tal modo que aquando da realização do primeiro Campeonato do Mundo, dois anos mais tarde, em Montevidéu, capital do Uruguai, a FIFA não teve dúvidas em colocar Langenus na lista dos árbitros convidados a marcar presença naquele importante evento. Efetuou a longa viagem para Montevidéu no majestoso navio Conte Verde, o mesmo onde viajavam as delegações da FIFA, da Roménia, França, e Bélgica, três seleções que a par da Jugoslávia - que viajou noutro navio - representavam a Europa no primeiro Mundial da história. Em Montevidéu, onde decorreu toda a ação, Langenus apitou quatro jogos, o Uruguai - Perú (1-0), o Argentina - Chile (3-1), ambos alusivos à primeira fase do torneio, o Argentina - Estados Unidos da América (6-1), e o Uruguai - Argentina (4-2), este último a grande final do evento.
Na meia-final disputada entre argentinos e norte-americanos não se livrou de duras críticas dos soccer boys, que o acusaram de fazer vista grossa ao violento jogo praticado pelos sul-americanos, para quem ao que parece tudo valia, desde empurrões, pontapés, insultos... A fúria dos yankees para com o belga foi tão grande que a equipa médica do combinado da América do Norte chegou mesmo a agredir o árbitro com um estojo médico (!) arremessado para dentro do retângulo de jogo.
Após dirigir esse polémico jogo Langenus escreveu a habitual crónica para o Kicker, aproveitando posterirmente a sua estadia na América do Sul para conhecer outros locais daquele canto do Mundo. Atravessando então o rio de La Plata - que divide o Uruguai da Argentina - visita Buenos Aires, onde dias antes da grande final, precisamente entre os dois velhos inimigos, Argentina e Uruguai, recebe um telefonema dos dirigentes da FIFA que lhe pedem que regresse de imediato a Montevidéu para apitar a... final! Um pouco surpreendido o belga compra de imediato o bilhete para regressar de barco à capital uruguaia, e é aqui que conhece os primeiros contornos da fervorosa paixão que aquele jogo estava a provocar entre os adeptos dos dois países. Ainda em Buenos Aires ele percebe que aquela final era muito mais do que um jogo, era uma questão de vida ou de morte. E como se apercebeu que não iria agradar a gregos e a troianos ao mesmo tempo, isto é, algum dos países iria olha-lo com ódio (!) na conclusão do Mundial, ele decide fazer de imediato um acordo com a FIFA. Para garantir a sua segurança exigiu que logo após o apito final lhe fosse facultado um transporte que o tirasse do Estádio Centenário rumo ao porto de Montevidéu, e dali embarcar rapidamente rumo à Europa, a salvo da mais do que provável ira de um dos derrotados. Exigência aceite John Langenus regressou então a Montevidéu num barco apinhado de fanáticos adeptos argentinos, que nem sequer imaginavam que aquele gentleman de envergadura alta seria o árbitro da final!
No dia 30 de julho sobe ao relvado do majestoso Estádio Centenário, construído propositadamente para este Mundial, e ainda antes de dar início ao esperado duelo a polémica estoirou. Na escolha de campo os dois capitães (Nasazzi do lado uruguaio e Ferreira do lado argentino) discutiam. O uruguaio queria jogar com uma bola feita em seu país. O argentino, com uma bola feita na Argentina. Perante esta birra o árbitro belga decidiu que no primeiro tempo joga-se com a bola argentina e no segundo com a bola uruguaia. Com a bola argentina, os uruguaios conseguiram o primeiro golo, aos 12 minutos, marcado por Dorado. Oito minutos depois, Peucelle empatou. Aos 37 minutos, Stabile, o artilheiro do campeonato, marcou o segundo tento argentino. E a primeira parte chegou ao fim com os argentinos a vencer por 2-1. Foi espantosa a reação uruguaia na etapa complementar, jogando com a bola feita em casa. Aos 12 minutos, Cea empatou. Aos 23, num remate de fora da área, Iriarte pôs o Uruguai em vantagem. O país vivia momentos de sofrida espera quando, num contra-ataque Dorado centrou da direita, pelo alto, e Castro com uma cabeçada fulminante mandou a bola para o fundo das redes. Era o quarto golo. Um minuto depois, o jogo acabava. E o Uruguai era assim o primeiro campeão do Mundo da história.
Terminada a final Langenus correu - pelo próprio pé, já que o transporte que lhe havia sido assegurado pela FIFA não estava lá! - rapidamente para fora de um estádio que estava em profundo delírio com o triunfo da celeste. Chegado ao porto de Montevidéu as notícias para o belga não eram nada boas. O cerrado nevoeiro que se abateu sobre o rio de La Plata fez com que as autoridades marítimas cancelassem a partida de qualquer tipo de embarcação. Os planos de Langenus tinham saído furados, não tendo outro remédio senão passar a noite escondido no seu camarote do navio Duilio que o levaria no dia seguinte de volta a terra segura, isto é, a Europa.
Como grande celebridade que já era no mundo da arbitragem não foi com surpresa que quatro anos mais tarde fosse de novo chamado à fase final de um Campeonato do Mundo, desta feita em Itália, embora aqui apenas tivesse dirigido um encontro, o Checolosváquia - Roménia, disputado em Trieste, e que terminou com a vitória da primeira seleção por 2-1. E como não há duas sem três foi chamado em 1938 para um novo Mundial, desta feita em França, onde apitou dois encontros. O primeiro, disputado no Parc des Princes, em Paris, foi histórico para Langenus. Suíça e Alemanha discutiam a passagem aos quartos-de-final, e eis que aos seis minutos do prolongamento o germânico Pesser tem uma entrada para lá de violenta sobre um adversário, recebendo ordem de expulsão do belga, a única sanção disciplinar deste género que aplicou a um jogador em toda a sua carreira. A despedida dos grandes palcos ocorreria ainda nesse Mundial, quando é nomeado pela FIFA para dirigir o jogo de atribuição dos terceiros e quartos lugares, entre Brasil e Suécia, vencido pelos primeiros.
Numa altura em que os jogos internacionais eram escassos, ao contrário do que hoje acontece, John Langenus apitou um total de 85 jogos! Retirou-se definitivamente da arbitragem em 1939, tendo passeado a sua classe por diversos países do Mundo, inclusive Portugal, pais que teve a honra de receber uma visita sua, a 23 de fevereiro de 1930, quando no Porto dirigiu um Portugal-França, concluído com um triunfo luso por 2-0. Depois de retirado dedicou-se à sua outra paixão, a escrita, tendo publico entre outros livros alusivos ao futebol o célebre "Whistling in the World", uma autobiografia onde eternizou as suas aventuras pelo Mundo da bola. Faleceu na sua cidade natal, a 1 de dezembro de 1952, com 60 anos de idade.
Legenda das fotografias:
1-John Langenus
2-Na escolha de campo com os capitães de Holanda e Uruguai, nos Jogos Olímpicos de 1928
3-Como árbitro assistente na final de Amesterdão
4-Na viagem para Montevidéu
5-Com os capitães do Uruguai e Argentina, antes da final do Mundial de 1930
6-Golo da Argentina, em pleno Centenário, com Langenus ao fundo a visionar o lance
7-A peculiar imagem do primeiro grande ícone da arbitragem internacional
E a nossa primeira estrela - sim, eles também brilham no universo futebolístico - é quiçá a primeira figura mediática da arbitragem internacional. John Langenus, de seu nome, belga de nascimento que ficou célebre por ter dirigido a primeira final de um Campeonato do Mundo, no Uruguai, em 1930. Este terá sido um justo prémio para aquele que era na altura considerado o melhor juíz do planeta, que a nível internacional havia feito a sua estreia nos Jogos Olímpicos de Amesterdão, em 1928.
Nasceu a 8 de dezembro de 1891, em Berchem, próximo de Antuérpia, e descobriu a aptidão para o apito, digamos assim, depois de comprovar o seu pouco - ou mesmo nenhum - talento para a interpretação do jogo enquanto praticante. A este propósito uma vez disse Diego Armando Maradona: «Quem tem jeito (para a prática do futebol) vai para jogador, quem não tem vai para... jornalista desportivo»! Pois bem, longas décadas antes desta célebre teoria ter sido lançada a público pela lenda argentina já Langenus a punha em prática, já que além do talento para apitar jogos de futebol ele revelava-se igualmente um habilidoso artesão das palavras, o mesmo é dizer, um notável jornalista desportivo. Esta foi pois a (dulpa)forma que este cidadão belga encontrou para continuar ligado ao desporto que tanto amava. No entanto, a sua entrada na arbitragem também não foi fácil, já que ao desconhecer a resposta para a questão sobre "o que fazer quando a bola bater num avião que voasse a baixa altitude…" (!) fez com que reprovasse no primeiro exame de admissão para ser árbitro! Acontece aos melhores...
Homem culto - dominava quatro idiomas - Langenus, que profissionalmente desempenhava funções de chefe de gabinete do governador de Antuérpia, era, como já vimos, um apreciado jornalista, tendo escrito centenas de crónicas alusivas a encontros de futebol, grande parte delas guardadas nos arquivos da prestigiada revista alemã Kicker, com quem o belga colaborou durante muito tempo. Curioso é que grande parte dos jogos analisados jornalisticamente, por assim dizer, por John Langenus eram, ou tinham sido, dirigidos... por ele próprio! Reza a lenda que no final de cada jogo recolhia aos balneários onde redigia a crónica desse mesmo jogo para depois a enviar para a Kicker.
Dentro do campo tinha pulso forte com os jogadores, onde o seu metro e noventa de altura impunha respeito. Ganhou pois a admiração de uma classe (futebolistas) que além de respeito para com ele olhava-o com algum espanto! É verdade. Além de dar nas vistas como árbitro Langenus atraia as atenções - quer dos jogadores, quer do público - pela forma exótica como se equipava. Usava sempre umas calças largas - à golfista! -, meias até ao joelho, jaqueta cumprida, e uma pequena gravata, que lhe conferiam um visual muito peculiar.
Batismo internacional
O dia 25 de fevereiro de 1923 fica marcado na carreira do primeiro grande nome da arbitragem planetária, o dia em que dirige o seu primeiro encontro internacional, facto ocorrido em Paris, onde a França venceu por 3-2 o Luxemburgo. Dali em diante visita mais algumas cidades europeias, onde arbitra sobretudo encontros internacionais de caráter particular. Os níveis da sua popularidade foram subindo de tom, não admirando que em 1928 fosse chamado ao torneio olímpico de futebol, na altura o maior evento futebolístico à escala planetária. Em Amesterdão, localidade onde decorreram as Olimpíadas de 28, Langenus vivenciou o seu primeiro momento de glória no mundo da arbitragem, ao apitar dois jogos na qualidade de árbitro principal, e atuado como linesman (fiscal de linha, ou árbitro assistente como agora são denominados) na grande final olímpica.
A 30 de maio de 1928, no Estádio Olímpico de Amesterdão, ele dirige a partida que colocou frente a frente a equipa da casa, a Holanda, aos futuros campeões olímpicos, ou melhor, bi-campeões olímpicos, o lendário conjunto do Uruguai. Uma oportunidade única para os adeptos holandeses verem na sua pátria algumas das estrelas do futebol daqueles anos 20, casos de José Nasazzi, Héctor Scarone, a Maravilha Negra José Leandro Andrade, ou... John Langenus, também ele já uma verdadeira estrela do futebol internacional. Ainda nessa histórica Olimpíada o belga dirigiu um novo encontro, também ocorrido no estádio olímpico, e que opôs a Itália ao Egito. Em jogo estava nada mais nada menos do que a medalha de bronze, a qual iria para o peito da squadra azzurra, depois de um categórico triunfo sobre os faraós por 11-3. Este facto ocorreu a 9 de junho, quatro dias antes da final, onde marcaram presença as duas potências do futebol sul-americano da época, tidas aliás para muitos como as seleções mais fortes do mundo, a Argentina e o Uruguai.
Para apitar o jogo mais aguardado do torneio - o qual seria ganho pelos uruguaios - foi chamado o holandês Johannes Mutters, o qual seria coadjuvado pelo italiano Achile Gama e o... belga John Langenus. Era já mais do que evidente o prestígio que angariava a nível internacional.
Momento de glória vivido em Montevidéu
De tal modo que aquando da realização do primeiro Campeonato do Mundo, dois anos mais tarde, em Montevidéu, capital do Uruguai, a FIFA não teve dúvidas em colocar Langenus na lista dos árbitros convidados a marcar presença naquele importante evento. Efetuou a longa viagem para Montevidéu no majestoso navio Conte Verde, o mesmo onde viajavam as delegações da FIFA, da Roménia, França, e Bélgica, três seleções que a par da Jugoslávia - que viajou noutro navio - representavam a Europa no primeiro Mundial da história. Em Montevidéu, onde decorreu toda a ação, Langenus apitou quatro jogos, o Uruguai - Perú (1-0), o Argentina - Chile (3-1), ambos alusivos à primeira fase do torneio, o Argentina - Estados Unidos da América (6-1), e o Uruguai - Argentina (4-2), este último a grande final do evento.
Na meia-final disputada entre argentinos e norte-americanos não se livrou de duras críticas dos soccer boys, que o acusaram de fazer vista grossa ao violento jogo praticado pelos sul-americanos, para quem ao que parece tudo valia, desde empurrões, pontapés, insultos... A fúria dos yankees para com o belga foi tão grande que a equipa médica do combinado da América do Norte chegou mesmo a agredir o árbitro com um estojo médico (!) arremessado para dentro do retângulo de jogo.
Após dirigir esse polémico jogo Langenus escreveu a habitual crónica para o Kicker, aproveitando posterirmente a sua estadia na América do Sul para conhecer outros locais daquele canto do Mundo. Atravessando então o rio de La Plata - que divide o Uruguai da Argentina - visita Buenos Aires, onde dias antes da grande final, precisamente entre os dois velhos inimigos, Argentina e Uruguai, recebe um telefonema dos dirigentes da FIFA que lhe pedem que regresse de imediato a Montevidéu para apitar a... final! Um pouco surpreendido o belga compra de imediato o bilhete para regressar de barco à capital uruguaia, e é aqui que conhece os primeiros contornos da fervorosa paixão que aquele jogo estava a provocar entre os adeptos dos dois países. Ainda em Buenos Aires ele percebe que aquela final era muito mais do que um jogo, era uma questão de vida ou de morte. E como se apercebeu que não iria agradar a gregos e a troianos ao mesmo tempo, isto é, algum dos países iria olha-lo com ódio (!) na conclusão do Mundial, ele decide fazer de imediato um acordo com a FIFA. Para garantir a sua segurança exigiu que logo após o apito final lhe fosse facultado um transporte que o tirasse do Estádio Centenário rumo ao porto de Montevidéu, e dali embarcar rapidamente rumo à Europa, a salvo da mais do que provável ira de um dos derrotados. Exigência aceite John Langenus regressou então a Montevidéu num barco apinhado de fanáticos adeptos argentinos, que nem sequer imaginavam que aquele gentleman de envergadura alta seria o árbitro da final!
No dia 30 de julho sobe ao relvado do majestoso Estádio Centenário, construído propositadamente para este Mundial, e ainda antes de dar início ao esperado duelo a polémica estoirou. Na escolha de campo os dois capitães (Nasazzi do lado uruguaio e Ferreira do lado argentino) discutiam. O uruguaio queria jogar com uma bola feita em seu país. O argentino, com uma bola feita na Argentina. Perante esta birra o árbitro belga decidiu que no primeiro tempo joga-se com a bola argentina e no segundo com a bola uruguaia. Com a bola argentina, os uruguaios conseguiram o primeiro golo, aos 12 minutos, marcado por Dorado. Oito minutos depois, Peucelle empatou. Aos 37 minutos, Stabile, o artilheiro do campeonato, marcou o segundo tento argentino. E a primeira parte chegou ao fim com os argentinos a vencer por 2-1. Foi espantosa a reação uruguaia na etapa complementar, jogando com a bola feita em casa. Aos 12 minutos, Cea empatou. Aos 23, num remate de fora da área, Iriarte pôs o Uruguai em vantagem. O país vivia momentos de sofrida espera quando, num contra-ataque Dorado centrou da direita, pelo alto, e Castro com uma cabeçada fulminante mandou a bola para o fundo das redes. Era o quarto golo. Um minuto depois, o jogo acabava. E o Uruguai era assim o primeiro campeão do Mundo da história.
Terminada a final Langenus correu - pelo próprio pé, já que o transporte que lhe havia sido assegurado pela FIFA não estava lá! - rapidamente para fora de um estádio que estava em profundo delírio com o triunfo da celeste. Chegado ao porto de Montevidéu as notícias para o belga não eram nada boas. O cerrado nevoeiro que se abateu sobre o rio de La Plata fez com que as autoridades marítimas cancelassem a partida de qualquer tipo de embarcação. Os planos de Langenus tinham saído furados, não tendo outro remédio senão passar a noite escondido no seu camarote do navio Duilio que o levaria no dia seguinte de volta a terra segura, isto é, a Europa.
Como grande celebridade que já era no mundo da arbitragem não foi com surpresa que quatro anos mais tarde fosse de novo chamado à fase final de um Campeonato do Mundo, desta feita em Itália, embora aqui apenas tivesse dirigido um encontro, o Checolosváquia - Roménia, disputado em Trieste, e que terminou com a vitória da primeira seleção por 2-1. E como não há duas sem três foi chamado em 1938 para um novo Mundial, desta feita em França, onde apitou dois encontros. O primeiro, disputado no Parc des Princes, em Paris, foi histórico para Langenus. Suíça e Alemanha discutiam a passagem aos quartos-de-final, e eis que aos seis minutos do prolongamento o germânico Pesser tem uma entrada para lá de violenta sobre um adversário, recebendo ordem de expulsão do belga, a única sanção disciplinar deste género que aplicou a um jogador em toda a sua carreira. A despedida dos grandes palcos ocorreria ainda nesse Mundial, quando é nomeado pela FIFA para dirigir o jogo de atribuição dos terceiros e quartos lugares, entre Brasil e Suécia, vencido pelos primeiros.
Numa altura em que os jogos internacionais eram escassos, ao contrário do que hoje acontece, John Langenus apitou um total de 85 jogos! Retirou-se definitivamente da arbitragem em 1939, tendo passeado a sua classe por diversos países do Mundo, inclusive Portugal, pais que teve a honra de receber uma visita sua, a 23 de fevereiro de 1930, quando no Porto dirigiu um Portugal-França, concluído com um triunfo luso por 2-0. Depois de retirado dedicou-se à sua outra paixão, a escrita, tendo publico entre outros livros alusivos ao futebol o célebre "Whistling in the World", uma autobiografia onde eternizou as suas aventuras pelo Mundo da bola. Faleceu na sua cidade natal, a 1 de dezembro de 1952, com 60 anos de idade.
Legenda das fotografias:
1-John Langenus
2-Na escolha de campo com os capitães de Holanda e Uruguai, nos Jogos Olímpicos de 1928
3-Como árbitro assistente na final de Amesterdão
4-Na viagem para Montevidéu
5-Com os capitães do Uruguai e Argentina, antes da final do Mundial de 1930
6-Golo da Argentina, em pleno Centenário, com Langenus ao fundo a visionar o lance
7-A peculiar imagem do primeiro grande ícone da arbitragem internacional