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Victor Agustín Ugarte, recriando-se com o objeto que lhe conferiu o estatuto de imortal |
É comum dizer-se que caso um Campeonato do Mundo fosse realizado em cidades como Quito (Equador) ou La Paz (Bolívia) os favoritos à conquista do
caneco não eram os habituais Brasil, Argentina, Alemanha, ou Espanha, mas sim as modestas seleções locais! Uma teoria que advém do facto dessas mesmas cidades se encontrarem geograficamente localizadas bem acima do nível do mar, característica natural que provoca a quem lá desembarca sensações de alguma indisposição, como aconteceu, por exemplo, ao antigo Ministro da Justiça do Brasil, Tarso Genro, que num ato solene decorrido na capital boliviana La Paz desmaiou, provavelmente como consequência do impacto que o ar rarefeito comum em cidades posicionadas em elevadas altitudes teve no seu organismo. Quiçá um pouco alarmado com estes perigos - à saúde - naturais o conhecido político brasileiro liderou posteriormente uma campanha para que a FIFA proibisse a realização de jogos de futebol em cidades
portadoras destas características, alegando que a altitude - elevada - constituía um perigo para a integridade física dos futebolistas forasteiros. Uma tentativa inglória, já que a entidade máxima do futebol planetário fez ouvidos de mercador, e continuou a dar
luz verde para que a bola rolasse nos
tetos do Mundo. Para os clubes e seleções visitantes ali jogar significa ter pela frente um adversário - extra - quase insuperável, ao passo que para os combinados da casa este torna-se, sem dúvida, num precioso 12º jogador. Mesmo que essa seleção - ou clube - seja um dos parentes pobres da grande aldeia global do futebol. Este é o caso da Bolívia, seleção pouco habituada ao longo da sua história às luzes da ribalta internacional, perfilando-se na maior parte das vezes cabisbaixa na cauda do pelotão do futebol sul-americano, bem distante dos virtuosos vizinhos do Brasil, Argentina, ou Uruguai.
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A histórica seleção boliviana que em 1963 conquistou o seu único título oficial |
No entanto, o pequeno e frágil
David veste a pele do temível
Golias quando atua no
teto do seu Mundo, o mesmo é dizer na cidade de La Paz. Ali situa-se a fortaleza do futebol boliviano, o Estádio Hernando Siles, o
céu para a seleção boliviana e o
inferno para os seus adversários. Ali,
La Verde - como é conhecida a equipa nacional - escreveu a maior parte das suas escassas
páginas douradas no
planeta da bola. Num curto exercício de memória foi em La Paz - cidade localizada a 3600 metros acima do nível do mar!!! - que a última geração talentosa do futebol boliviano, comandado pelos geniais Marco
El Diablo Etcheverry e Erwin
Platini Sanchez, assegurou o passaporte para o Campeonato do Mundo de 1994 após ter humilhado, sim, humilhado, não é exagero dizer-se, o
gigante Brasil, ou de ter feito a
vida negra a esse mesmo
escrete na final da Copa América de 1997. Foi ali também que a modesta Bolívia viveu o seu momento de glória,
el momento más lindo de su vida, como ainda hoje faz questão de sublinhar quem de perto se emocionou com esse capítulo da história. Em 1963
La Verde fez chorar de alegria o seu povo na sequência da épica conquista da Copa América. Uma vitória impensável para um país que, a título de exemplo, cohabitava o mesmo território futebolístico que o então bi-campeão mundial Brasil, para um país cujo percurso nos caminhos do futebol havia passado quase despercebido. Foi pois um triunfo surpreendente de uma nação que à partida para a competição só queria fazer boa figura naquela que era primeira grande competição desportiva que organizava.
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O povo exulta com o momento de glória alcançado em 1963 |
Mais do que a particular localização geográfica de Laz Paz - onde decorreram a esmagadora maioria dos jogos da competição - ou de o facto de dois dos principais candidatos ao título continental, neste caso o Brasil e a Argentina, se terem feito representar pelas suas equipas "b" - os brasileiros, por exemplo, deixaram em casa estrelas como Pelé, Garrincha, Vavá, Didi, Gilmar, ou Zagalo - a chave do êxito boliviano ficou a dever-se a um grupo de imortais jogadores que
partilhavam um só coração. Juntos, eles personificaram na
cancha a garra e a força de todo um povo. Mas, à semelhança de todas as constelações de estrelas há uma que brilha um pouco mais do que as outras, e também naquela que é considerada a geração dourada da Bolívia no que a futebol concerne - esperemos que
El Diablo Etcheverry e
Platini Sanchez não fiquem zangados com esta designação que não é da nossa autoria - havia um jogador que se destinguia dos demais pelas suas qualidades de artista da bola. Victor Agustín Ugarte, assim se chamava o maior jogador de sempre da história do futebol boliviano, o herói
del momento más lindo de la histoira de Bolívia.
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Ugarte com as cores do Bolivar |
Encravada entre gigantes escarpas vermelhas está a pequena cidade de Tupiza, onde a 5 de maio de 1926 nasceu Victor Agustín Ugarte. Começou a evidenciar os seus dotes artísticos de médio ofensivo no clube local, o Huracán de Tupiza, emblema que num curto espaço de tempo se tornou pequeno demais para a grandeza do homem que haveria de ficar imortalizado como
El Maestro. Corria o ano de 1947 quando o jovem Victor decide reunir os poucos trapos que possuia e partir à aventura para a capital La Paz, onde de pronto ingressaria num dos maiores clubes do país, o Bolivar. A ascensão do
diamante de Tupiza é meteórica. Torna-se de imediato na principal referência do emblema de La Paz, onde as suas
gambetas (dribles) enlouqueciam, no bom sentido, os
hinchas. 1947 é mesmo um ano histórico para Ugarte, o qual é convocado para a seleção boliviana que iria competir na Copa América a ser disputada na Colômbia, tendo aí efetuado os primeiros seis dos 45 jogos encontros em que ao longo da sua carreira vestiu a camisola verde da Bolívia. Dois anos mais tarde volta a envergar a camisola do seu país no maior torneio de seleções da América, desta feita no Brasil, onde ante o Chile concretiza o primeiro dos 16 golos que apontou com
La Verde entre 1947 e 1963, o período em que Ugarte foi internacional. Na memória dos poucos
hinchas daquele tempo que hoje vivem perdura a imagem da virtuosa seleção boliviana que disputou a Copa América de 1949, com Ugarte na condição de líder de uma constelação de estrelas como Mena, Gutierrez, ou Godoy, que num dos encontros dessa Copa ridicularizou o futuro campeão do Mundo, o Uruguai, na sequência de uma épica vitória por 3-2, com
El Maestro a fazer um dos golos. E por falar em campeão do Mundo o mesmo Brasil iria acolher um ano mais tarde o célebre Mundial que os
charrúas uruguaios iriam arrecadar, uma competição onde a Bolívia de Victor Ugarte passou praticamente ao lado, já que no único jogo realizado seria cilindrada por 8-0 pelo... Uruguai.
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Ugarte defendeu por 45 ocasiões o seu país tendo apontado 16 golos |
Apesar da má campanha boliviana na
Copa de 50 o talento de Ugarte não foi ofuscado, longe disso. Em 1952 é tentado a procurar melhores condições de vida fora do seu país, onde o miserável salário de um futebolista mal dava para sobreviver. Da Colômbia chegou nesse ano uma proposta do Millonarios, clube este onde pontificava então um tal de Alfredo Di Stéfano. Da Argentina foi o Boca Juniors que lançou o isco a Victor, mas a Bolívia não queria perder o seu tesouro nacional, tendo mesmo o Presidente da República daquela época, Mamerto Urriolagoitía, prometido a Ugarte uma pomposa vivenda em La Paz caso este declinasse o tentador convite do clube de Buenos Aires. Quiçá influenciado pelo chefe de Estado do seu país - do qual não se sabe se cumpriu ou não com a promessa feita ao nativo de Tupiza - ou pela paixão que o seu povo tinha por si, Ugarte foi rejeitando convites atrás de convites ano após ano, permancendo no pobre campeonato boliviano onde com as cores do Bolivar arrecada não só os títulos de campeão nacional em 50, 53, e 56, mas sobretudo continua a encantar os adeptos com jogadas artísticas que muitas vezes resultavam em golos de beleza sublime.
Até que em 1958 decide dar ouvidos à sua amada Graciela, a sua esposa, que sempre o incentivara a procurar melhores condições de vida fora da terra natal. Ugarte aceita então uma proposta do San Lorenzo, emblema argentino que fez de tudo para o contratar, sobretudo depois de um ano antes o ter visto a humilhar a poderosa Argentina, que rastejou aos pés de Ugarte no infernal
teto do Mundo como é conhecida La Paz no seio do futebol. Ainda hoje quando o nome de Ugarte salta para cima da mesa das tertúlias futebolísticas é de imediato recordada essa célebre vitória da seleção boliviana sobre os argentinos por 2-0, a primeira da história do futebol boliviano sobre a equipa das
pampas.
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Levado em ombros após a épica conquista de 63 |
Porém, em solo argentino Victor Ugarte não se sentiu feliz. Não por ter sido mal tratado pelos dirigentes, colegas, ou adeptos do seu novo emblema, mas simplesmente porque na Argentina encontrou um ambiente escaldante em torno do futebol, ao qual estava pouco habituado na pacata Bolívia. O ambiente fanático tão comum nos campos de futebol argentinos assustou de certa forma Ugarte, que nas
canchas daquele país esteve muito longe de mostrar todo o seu talento. Viajou em seguida para a Colômbia, onde encontrando um clima mais calmo perpetuou nos relvados as famosas
gambetas, ao serviço do Once Caldas. Por terras colombianas juntou algum dinheiro, que permitiu-lhe viver junto da sua amada Graciela e dos seus quatro rebentos de forma algo desafogada durante algum tempo.
Apesar de longe dos seus olhos a Bolívia jamais o esqueceu, nem Victor deixava que isso acontecesse, pois em 1963, o tal ano mágico do futebol boliviano, ele é um dos imprescindíveis na seleção orientada pelo brasileiro Danilo Alvim - estrela do futebol brasileiro dos anos 40 - para vestir as cores de
La Verde na Copa América que o país recebia. Apesar da idade avançada - 37 anos - Ugarte aceita o desafio para defender o seu país por uma última vez, naquela que era a sua quinta presença numa Copa América.
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A estátua de Victor Ugarte em Tupiza |
O peso da idade não se fez notar, e juntamente com figuras notáveis do futebol boliviano de então como Wilfredo Camacho, Máximo Alcócer, Fortunato Castillo, ou Eduardo Espinoza guiou
La Verde até ao tal
momento más lindo de su vida. No jogo final da competição o
gigante Brasil caiu por 5-4, sendo memorável a exibição de Ugarte, autor não só de dois golos como de
lindas jugaditas que permitiram à Bolívia conquistar um lugar na história do futebol.
Ugarte ainda atuou mais uma temporada (67/68) pelo Bolivar antes de se retirar definitivamente do palco do
belo jogo.
El Maestro nasceu e morreu na miséria. A 20 de março de 1995 a Bolívia verteu lágrimas ao receber a notícia da morte do maior jogador da sua história, um homem que continua a viver na memória dos poucos comuns mortais que tiveram o prazer de o ver atuar.
O
rei do futebol boliviano tem o seu nome perpetuado no estádio de futebol mais alto do Mundo (!), localizado em Potosi, a quase 4000 metros acima do nível do mar, além de que na sua cidade natal, Tupiza, foi erguida uma estátua que imortaliza a sua lendária figura.