Fazendo
jus ao ditado de que “recordar é viver” o Museu Virtual do Futebol
edifica a partir de hoje uma nova vitrina, destinada a guardar para a
eternidade as lembranças retiradas do baú das recordações pela
mão das velhas, e por vezes esquecidas, lendas que ajudaram a escrever
momentos inolvidáveis na história do belo jogo.
O primeiro visitante
do museu é Fernando Tomé, antiga glória do Vitória de Setúbal e do
Sporting Clube de Portugal, que numa curta mas deveras simpática
conversa recordou os momentos por si vividos na final da Taça de
Portugal mais longa da história, o golo que deixou por terra o famoso e
temível Liverpool orientado pelo lendário Bill Shankly, e a malfadada
meia-final da Taça das Taças desenrolada na véspera da Revolução dos
Cravos, nesta entusiasmante viagem ao passado na companhia
deste homem nascido no Porto em 1947.
A primeira paragem desta viagem a bordo da máquina do tempo
é pois a tarde de 9 de julho de 1967, tendo como cenário o Estádio do
Jamor, palco de mais uma final da Taça de Portugal, a prova rainha do
futebol português que nessa época de 1966/67 cumpria a sua 27ª edição.
Frente a frente dois históricos do futebol luso, Vitória de Setúbal e
Académica de Coimbra, dois emblemas que conheciam bem o sabor de uma
vitória na taça, sendo que para os sadinos esta era a terceira presença
consecutiva na relva sagrada do Jamor, tendo por uma ocasião saído
vencedores (em 1965, ante o Benfica de Eusébio e companha), e noutra
derrotados (em 1966, ano memorável para a seleção nacional no Mundial de
Inglaterra, e para o Braga, que com um golo solitário do argentino
Perrichon subiu ao trono da Taça de Portugal).
Como
diz o ditado: não há duas sem três, e lá estava outra vez o Vitória de
Setúbal na discussão de um jogo que haveria de ganhar contornos
lendários ao tornar-se na final mais longa da citada prova.
Foram
144 minutos (!) de uma longa, intensa, e entusiasmante batalha,
imprópria para cardíacos, e apenas ao alcance dos mais pacientes, que
não arredaram pé das bancadas de pedra do Estádio Nacional até que a
taça fosse por fim levantada por um dos capitães.
Numa rápida recordação
dos factos do célebre duelo, a Académica entrou melhor, já que uma falta
de Herculano sobre Ernesto permitiu a Celestino cobrar um livre direto
que levou a bola a beijar pela primeira vez as malhas de uma das
balizas. Ainda na primeira parte o Vitória empatou na sequência de uma
bomba lançada por José Maria. O minuto 90 foi alcançado, sem um vencedor à
vista. Seguiu-se um prolongamento de 30 minutos, e o equilíbrio
continuava a ser nota dominante. Porém, ao minuto 97 Guerreiro volta a
colocar em delírio os vitorianos. 2-1, mas foi sol de pouco dura, já que curtos minutos depois a Briosa volta a colocar tudo na estaca zero,
graças a uma jogada de génio do chinês Rocha pelo corredor esquerdo da
sua equipa, colocando posteriormente com conta, peso, e medida a bola no coração da
área, onde apareceu Ernesto a empurra-la para o fundo das redes de
Vital. O prolongamento chegava ao fim, e do vencedor nem sinal!
Numa altura em que os desempates através da marcação por grandes penalidades ainda não haviam visto a luz do dia, Salvador
Garcia, o árbitro, não teve outro remédio senão dar início a outro
prolongamento! O suor escorria pela cara dos atletas e o público
aguardava expectante nas bancadas. Os minutos iam passando, e quanto ao
vencedor, nada! Até que num lance de génio – como só ele sabia fazer –
Jacinto João irrompeu pelo lado esquerdo da defesa coimbrã, e com um
remate raso, forte, e colocado coloca um ponto final naquela longa
maratona futebolística, a mais longa da história da Taça de Portugal.
No final o
suor e as lágrimas escorriam lado a lado pelas faces dos vitorianos, o
Vitória levava de novo para Setúbal o emblemático troféu.
Passemos então a palavra ao nosso convidado.
Museu
Virtual do Futebol (MVF): O Fernando Tomé foi um dos jogadores que
viveu essa final. Foram mais de duas horas (144 minutos, como já
referimos) de futebol. Como recorda essa tarde no Jamor?
Fernando
Tomé (FT): Foi uma final inolvidável, pois jogaram as duas melhores
equipas portuguesas dessa época. Na altura não havia substituições, o
que acentuou ainda mais o esforço físico dos jogadores de ambas as
equipas. E no final, enquanto nós tivemos forças para festejar como é
normal e natural nestas situações, os jogadores da Académica ficaram,
como se compreenderá, desolados e tristes. Mas em suma foi uma grande
final, entre, e repito, duas grandes equipas. Lembro-me que aquela
Académica tinha grandes jogadores, sendo que alguns deles chegariam mais
tarde a grandes clubes nacionais e internacionais. Era uma “Académica à
Académica”, orientada por um grande treinador, o senhor Mário Wilson.
MVF:
Aquela foi a primeira vez que pisou a relva do Estádio Nacional, a
catedral do futebol português, o que sentiu ao entrar em campo?
FT:
Já tinha estado na final de 65/66 com o Braga, em que nós perdemos por
1-0, jogo esse para o qual estava convocado, mas em que não alinhei nem
poderia ter entrado, porque, repito, na altura não havia substituições.
Mas nesse dia (da final com a Académica) com o Estádio Nacional esgotado
e as duas equipas perfiladas para receber as medalhas do então Chefe do
Estado Américo Tomás, foi uma emoção forte ao ouvir o hino nacional, e
confesso que então fiquei com “pele de galinha”, como deve calcular, e
as claques não descansaram um minuto, tal a intensidade do jogo, com
ataque numa baliza, ataque na outra baliza. Foi um momento lindo para a
vista dos milhares de espectadores presentes.
MVF: Em 1967 o Vitória chegava à sua terceira final consecutiva…
FT:
Sim, era a nossa terceira final consecutiva, tínhamos ganho uma e
perdido outra. A final de 67 teve um cariz diferente, desde logo foi
encarada com respeito, devido ao adversário, que sabíamos que era forte,
tal como o resultado indica. Depois, os longos minutos de jogo que
tivemos que fazer para vencer a taça. Em suma, foi uma ENORME FINAL.
MVF:
Entretanto, o jogo começou, desenvolveu-se, e terminou. O empate
persistia. Um prolongamento e nada, a igualdade teimava em não
desaparecer. Seguiu-se um novo e penoso prolongamento! O que passava
pela cabeça dos jogadores naqueles minutos de futebol interminável?
FT:
O que todos nós queríamos, quando fomos para o segundo prolongamento, e
a pedido do árbitro, o senhor Salvador Garcia, era que uma das equipas
marca-se um golo (!) ou então dividir a taça ao meio (risos), como ele
nos disse na altura. Recordo que tínhamos cãimbras que nunca mais
acabavam. Era sair do campo para sermos massajados e entrar logo a
seguir, nem era preciso pedir autorização ao árbitro, pois a lei
permitia isso. Foi muito doloroso para todos os jogadores. Nesse segundo
prolongamento surgiu, por fim o golo de “morte súbita”, apontado pelo
falecido Jacinto João. Foi o delírio. Com a taça nas mãos ainda tivemos
forças para correr mais um bocado para junto dos nossos adeptos,
enquanto que os jogadores da Académica tinham todos caído no relvado,
fruto da exaustão e da desilusão. Também o árbitro, após o final, caiu
de costas no relvado, tal era o cansaço que tinha nas pernas.
MVF: Ao pegar naquela taça deve ter sentido uma dupla sensação, por um lado de alívio, por outro de alegria…
FT:
Foi de facto uma sensação de grande emoção. Guardo ainda uma foto em
que eu apareço a saltar com a taça na mão em direção dos vitorianos, o
chamado VIII EXÉRCITO, que não se cansaram de nos apoiar e mereceram
tanto como nós aquela Taça de Portugal.
MVF: Reza a lenda que já não havia luz solar no Jamor perto do final do jogo?
FT:
O jogo foi em pleno Verão, mas quase que acabou de noite, sim senhor,
pois os intervalos do jogo (o tempo regulamentar dos 90 minutos) e os
dos prolongamentos levou a que o dia quase tivesse desaparecido, e a noite
quase tivesse caído sobre o Jamor. Relembro que foi um final de tarde
deslumbrante.
MVF: Aquele Vitória era treinado por uma lenda da tática, Fernando Vaz…
FT:
Sou suspeito ao falar desse SENHOR, pois depois do meu pai, ele foi a
pessoa que mais me marcou. Para essa final ele fez uma palestra que
nos motivou a todos. Era um grande estudioso de todas as matérias, não
só desportivas como da vida, sendo que tudo o que ele nos dizia era para
nosso bem. Por isso, ainda hoje lhe estou grato por tudo, e que esteja
em ETERNO DESCANSO.
MVF: E quando chegaram a Setúbal, como foi a receção?
FT:
Nem queira saber, nós chegámos a Setúbal já perto da meia noite.
Recordo que na Praça do Bocage, onde fica a Câmara Municipal, não cabia
“uma cabeça de alfinete”, pois estava superlotada, foi uma festa linda
que a cidade e os vitorianos bem mereceram.
MVF: Ainda se lembra qual foi o prémio pela conquista da taça?
FT:
Foi de seis mil escudos (hoje 30 euros), comprei uma bicicleta para o
meu irmão, e um "gira discos" lá para casa, o qual já não funciona mas
está guardado em minha casa.
MVF:
Esteve até 1970 em Setúbal (desde 1965, sendo que posteriormente, entre
76 e 78 jogou mais duas temporadas no Bonfim) e lá viveu grandes
momentos da sua carreira. Para além desta final que outros momentos
recorda com destaque?
FT:
Além da final de 67, recordo o meu primeiro jogo na primeira categoria
contra o Varzim, em Setúbal, e quando na altura em que defendia as
cores do ENORME (nota: a forma carinhosa como trata o seu Vitória) fui
Internacional “A”, numa eliminatória da fase de apuramento para o
Campeonato do Mundo de 1970, contra a Suiça, em Berna.
MVF: Nos anos 60 e 70 Setúbal viveu grandes noites europeias, com o Vitória a fazer a vida negra a alguns dos grandes tubarões
do futebol europeu. Entre outras as épocas de 68/69 e 69/70 foram
memoráveis no Bonfim. Em 68/69 o Vitória chegou aos quartos-de-final da
Taça das Cidades com Feira (hoje Liga Europa), depois de eliminar a
Fiorentina nos oitavos-de-final caiu aos pés do Newcastle United (que viria a
vencer a prova). O Tomé nessa campanha fez 4 golos...
FT:
Foi uma época espetacular, pois em Newcastle, onde perdemos por 5-1,
jogámos num campo em muito mau estado, com neve e lama até aos joelhos
como dissemos na altura. Depois, cá, ganhámos por 3-1 em Alvalade, com
uma grande exibição coletiva que no entanto não chegou para avançarmos
para a meia-final.
MVF:
Na época seguinte foi a vez do poderoso Liverpool, treinado pelo lendário Bill
Shankly, cair no Bonfim, e o Tomé também lá estava. Até marcou um golo…
FT:
Em Setúbal jogámos (ante o Liverpool) a uma quarta-feira à tarde, pois não havia
iluminação no Estádio do Bonfim, o comércio fechou e os alunos do Liceu e
da Escola Comercial, tiveram “feriado” para assistir ao jogo. Estava
uma moldura humana linda nesse dia, e quanto ao golo foi um remate do
Cardoso, com a bola a bater na barra e eu na recarga de primeira fiz o
único golo do jogo. Em Liverpool perdemos 2-3, mas passamos a
eliminatória (por terem marcado golos fora de casa), e eu também fiz o
segundo golo do Vitória, mas os jornalistas atribuíram o golo a um
inglês, o qual quando tocou na bola esta já estava dentro da baliza. A
partir daquele dia começaram (a Europa do futebol) a ver-nos com
outros olhos, afinal não erámos os parolos que nos julgavam. Fizemos
grandes jogos com enormes clubes dessa Europa fora..
MVF: Depois da glória no Bonfim (casa do Vitória) seguiu-se a glória em Alvalade. Como se deu esta mudança de casa?
FT:
Na altura da transferência para o Sporting eu não estava em Portugal,
estava na Venezuela a ajudar o ENORME (Vitória de Setúbal) a ganhar a
pequena Copa do Mundo.
Depois fomos fazer uma digressão ao Brasil, e
quando voltámos fui convocado para uma reunião com os dirigentes do
Sporting, e digo que estive quase para não aceitar a transferência,
porque não quis aceitar o que me ofereciam, já que primeiro eles fizeram
o negócio com o Vitória e eu fiquei em segundo plano nas negociações.
Mas lá acabámos por chegar depois a um acordo, até porque também tinha
uma proposta do Benfica…
Chegado ao Sporting Clube de Portugal encontrei um grande clube, e
grandes jogadores do nosso futebol. Tive uma boa entrada naquele clube,
embora com algumas contrariedades, pois estava acostumado a outro tipo
de exigências no Bonfim, onde nos pediam para jogar bem e ganhar, e no
Sporting éramos obrigados a ganhar fosse de que forma fosse, porque ali
lutava-se sempre por títulos.
MVF:
No Sporting o Fernando Tomé também viveu grandes noites europeias. Em
73/74 o Sporting esteve muito perto de atingir a final da Taça das
Taças, caindo nas meias-finais aos pés do Magdeburgo, no dia 24 de abril
de 1974, véspera da Revolução dos Cravos, em Portugal.
FT:
Foi uma campanha que teve a sua história, à qual ainda hoje estou
ligado de forma muito direta, pois quando chega o dia 24 de Abril, seja
de que ano for, os adeptos do Sporting lembram-se sempre de mim, pela
negativa, já que no jogo de lá perdi um golo a poucos minutos do final, o
tal golo que mais gostaria de ter marcado, o golo que nos dava o
passaporte para a final, mas que não aconteceu (Nota: o Sporting perdeu
1-2, depois de ter empatado na primeira mão em casa a uma bola). Mas
penso que perdemos a passagem à final em Alvalade, pois falhámos um
penalty através do Dinis, atirámos três bolas aos ferros da baliza e
ainda fizemos um auto-golo. Em Lisboa, sim, é que foi o desaire maior,
mas pela parte nagativa que a mim me tocou já pedi desculpas
publicamente a todos os sportinguistas.
MVF:
Nesse ano de 1974 viveu um grande momento desportivo pelo Sporting, ao
sagrar-se campeão nacional. O que sentiu ao ser campeão nacional?
FT:
Sabe, o ser campeão ou ser internacional, é tudo aquilo que os
jogadores ambicionam alcançar nas suas carreiras, penso eu. Costumo
dizer que sou do Vitória e morro por ele, mas quem pode esquecer os anos
no Sporting, onde ajudei o clube a ser campeão nacional, e conquistar três Taças de Portugal (1971, 1973 e 1974), ou mesmo esquecer a União de
Leiria, onde fui campeão nacional da 2ª Divisão nos últimos anos da
minha carreira. Em relação ao grupo com o qual fui campeão no Sporting
posso dizer que era extraordinário, todos os jogadores foram
fundamentais para alcançar esse feito, mas a parte técnica com esse
grande SENHOR do futebol sportinguista e português, o qual dá pelo nome
de Mário Lino, foi essencial, passando ainda por uma Direção então dirigida por
um grande PRESIDENTE que deixou marca nos destinos do clube, o senhor
João Rocha, não esquecendo uma massa adepta que adora o seu
clube, tudo isso junto deu aso a uma grande campanha, a que só faltou a
final da Taça das Taças, onde caímos nas meias-finais após o malfadado
jogo de Magdeburgo.
MVF:
Para terminar esta simpática conversa façamos um exercício de respostas
prontas para curtas questões.
Qual foi o melhor momento da sua
carreira?
FT: Já disse antes, a estreia na primeira categoria do Vitória de Setúbal, o triunfo na Taça de Portugal de 1967, e ter sido internacional “A”.
MVF: Qual o melhor jogador com quem jogou?
FT: Vou destacar as pessoas de Eusébio (na seleção nacional) e do Jacinto João (no Vitória).
MVF: E qual o adversário que nunca mais esquece?
FT: O Bobby Charlton, porque era um jogador fantástico.
MVF: O treinador?
FT: Sem dúvida, o SENHOR FERNANDO VAZ.
Legenda das fotografias:
1-Fernando Tomé, com a camisola do seu Vitória de Setúbal
2-O "onze" do Vitória que em 1967 derrotou a Académica na final mais longa da história da Taça de Portugal
3-A caricatura do mestre Francisco Zambujal dos heróis da taça de 67
4-Página do jornal Record, com destaque para Jacinto João com a taça na mão, ao lado das duas equipas que alinharam na final
5-Fernando Vaz comemora com os seus atletas a árdua conquista de 67
6- Receção apoteótica nos Paços do Concelho (em Setúbal) já depois da meia-noite!
7-Fernando Tomé, com a camisola do Sporting
8-Tomé, de mãos na cabeça, tinha acabado de falhar o golo que iria colocar o Sporting na final da Taça das Taças de 1974
9-Com a camisola da seleção nacional
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