sexta-feira, maio 31, 2013

Grandes lendas do futebol mundial (13)... Billy Meredith - O primeiro galático do futebol

Há quem o aponte como a primeira figura mediática de um jogo que apesar de já ser rei em Inglaterra ainda gatinhava na maior parte do resto do planeta. Apesar de não existirem quaisquer registos áudiovisuais que comprovam a teoria sustentada por diversos historiadores desportivos daquela época de que esta foi indiscutivelmente a primeira lenda do belo jogo, ele é descrito nas páginas esbatidas dos jornais e livros daqueles longínquos dias de finais do século XIX e principios do século XX como o mago dos primórdios do futebol. E é fazendo fé nessa pomposa caracterização que reservamos para ele um cantinho na vitrina destinada às grandes lendas do jogo. Sem mais demoras façamos uma visita ao mago galês Billy Meredith. Figura elegante podemos dizer que William Henry Meredith - de seu nome completo - nasceu no tempo em que o futebol moderno dava ainda os primeiros passos em terras britânicas, tendo ele tido um papel preponderante no crescimento e na popularização da modalidade por aquelas bandas. 20 de julho de 1874 é pois o dia em a nossa lenda de hoje veio ao Mundo, tendo como berço Chirk, terra conhecida pelas suas minas, e situada no norte do País de Gales. O próprio Billy, diminutivo de William, trabalhou como mineiro, ocupando os seus tempos livres a correr atrás de uma bola pelos campos verdes de Black Park. A sua requintada perícia técnica com o esférico fez-se desde logo sobressair, e com apenas 16 anos veste a sua primeira camisola no planeta da bola, mais precisamente a do clube local, o Chik AAA Football Club. A estreia com este emblema amador ocorreu em setembro de 1892. Um ano mais tarde Billy Meredith ajudou o clube da sua terra a alcançar a final da Welsh Cup (Taça do País de Gales), perdida para o vizinho e rival Wrexham por 1-2. Posicionando-se no retângulo de jogo como ala-direito - ou como se diz nos dias atuais extremo direito - Meredith deslumbrava a multidão com a superior técnica como conduzia a bola, bem distinta do kick and rush (pontapé para a frente) que começava a caracterizar o futebol britânico. Era um jogador diferente dos demais, tratava o esférico de uma forma encantadora, cativando todos aqueles que o viam jogar. Numa altura em que o profissionalismo começava a aparecer Billy não resistiu à possibilidade de ganhar algum dinheiro fazendo aquilo que mais gostava, jogar futebol. Com 18 anos muda-se então para o poderoso Northwich Victoria, emblema que disputa a principal liga galesa, defendendo as cores do clube somente durante dois anos, voltando posteriormente para a sua cidade natal, e para o Chirk AAA, ao mesmo tempo em que regressa ao duro trabalho nas minas. Com mais experiência Billy torna-se no líder natural da sua velha equipa, conduzindo-a ao patamar da glória precisamente no ano em que regressou, 1894, altura em que vence a Welsh Cup (triunfo sobre o Westminster Rovers por 2-0), o seu primeiro grande título.

 Chegar, ver, e vencer em Manchester

A passagem de Meredith pelo Northwich Victoria pode até ter sido fugaz - na verdade realizou apenas 11 partidas, tendo apontado cinco golos - mas foi suficiente para clubes de maior gabarito se apaixonarem pelo seu estilo muito próprio de jogar futebol. De Inglaterra surgiram então algumas propostas tentadoras, como a do Bolton Wanderers, que através do seu jogador Di Jones, o qual havia sido em tempos atleta do Chirk AAA, tentou convencer Billy a assinar um contrato profissional com o clube, mas em vão. Ao que parece a mãe de Meredith defendia que o seu filho deveria continuar empenhado em manter o seu trabalho de mineiro e encarar o futebol como um mero passatempo pós-laboral! Seguindo em parte o conselho de sua mãe Billy continuou pelo menos durante mais dois anos a trabalhar na mina, mas ao mesmo tempo embarcava numa nova e arrojada aventura futebolística, ao assinar um contrato de amador com o Manchester City. Corria o ano de 1894. Como atleta amador Meredith viajava para Manchester ao fim de semana para atuar com o seu novo clube, enquanto que durante a semana exercia a dura profissão de mineiro. Foi assim durante dois anos. A estreia pelo City aconteceu em novembro desse ano, em casa do Newcastle United, sendo que uma semana mais tarde faz o debute ante os adeptos do seu novo clube numa partida diante do Newton Heath - clube mais tarde rebatizado como... Manchester United. Nesse célebre dérbi local - o primeiro da história - o Newton venceu por 5-2, sendo que os dois golos do City foram apontados por Billy Meredith, que no final dessa temporada de estreia marcou 12 golos em 18 aparições. 1895 é outro ano memorável para Meredith, já que pela primeira vez vestiu o manto sagrado do seu país, numa partida disputada a 16 de março em Belfast ante a Irlanda, concluida com uma igualdade a duas bolas. O estilo de Billy encantava os fãs do seu novo clube, que não muito tempo depois da sua estreia o batizaram de Welsh Wizard, qualquer coisa como, o mago galês. Alto, magro, e com uma apurada técnica rapidamente se tornou na figura principal do City. Não foi de admirar que na sua segunda temporada do clube lhe dessem o cargo de capitão de equipa.


Na época de 1898/99 ele guiou o clube no assalto à promoção ao principal escalão do futebol inglês, e pelo caminho deixou a marca pessoal de quatro hattricks (!), terminando a temporada com um total de 29 remates certeiros. Depois de uma certa instabilidade na First Division - o City foi relegado na temporada de 1901/02 - o clube de Manchester atinge a glória em 1903/04, altura em que vencem o troféu mais prestigado do país, e do Mundo por aqueles dias, a FA Cup (Taça de Inglaterra). Billy Meredith assinou exibições majestosas ao longo da caminhada triunfal até ao Crystal Palace Stadium - o principal estádio londrino da época, já que Wembley ainda não havia sido construido - onde curiosamente o esperava o Bolton Wanderers, o primeiro clube que o quis levar para Inglaterra. Diante de 62 000 pessoas o City levou a melhor, graças a Billy Meredith, que aos 23 minutos fez o único golo da partida, oferecendo assim ao seu clube a primeira coroa de glória da sua história.

Descida ao inferno e mudança para o rival United

O fascínio dos fãs do City pelo seu mago galês, pela sua elegante forma de manter sempre junto ao relvado o esférico, ultrapassando os adversários em corrida com dribles diabólicos, não durou muito mais tempo após a lendária final da FA Cup de 1904. No ano seguinte Meredith é forçado a abandonar o clube na sequência daquele que é descrito como o primeiro grande escândalo do futebol internacional. O welsh wizard foi considerado culpado pela Football Association num caso de suborno. Ao que parece Meredith terá oferecido 10 libras ao capitão do Aston Villa, Alex Leake, para que este convencesse os restantes companheiros de equipa a facilitar a vitória do City no decisivo confronto com a equipa de Birminghan, já que caso o emblema de Manchester alcançasse o triunfo seria campeão. A situação foi denunciada e a FA decidiu suspender Meredith por um ano. Ao contrário do que esperaria Billy Meredith não obteve o apoio do seu clube neste caso. Manchester City que inclusive se recusou a pagar o salário de Billy - que já era jogador profissional a tempo inteiro - durante o ano em que este estaria suspenso de toda a atividade futebolística. Em claro litígio com o seu clube a estrela galesa decide denunciar à FA outros casos de corrupção em que o seu clube havia estado envolvido, levando a que o City fosse punido severamente pela federação inglesa. Pior do que isso o clube viu 17 dos seus jogadores abandonaram Hyde Road - a casa do emblema - entre outros, claro está, Billy Meredith. E como a vingança ainda não estava totalmente concluida o jogador galês decide - após o levantamento da sua suspenssão - assinar pelo vizinho e rival do City, o Manchester United!

Para assegurar a contratação de Billy Meredith - que tinha deixado o City com um impressionante registo de 145 golos apontados em 338 disputados - os responsáveis do United tiveram de desembolsar 500 libras, a verba exigida pelo jogador. Dinheiro bem gasto, terão por certo pensado pouco depois os dirigentes dos red devils, já que Meredith rapidamente assumiu o papel de estrela da companhia, conduzindo através do seu invulgar talento o clube a inúmeras conquistas. Fez a sua estreia pelo United a 1 de janeiro de 1907, ante o Aston Villa - o clube que o tramou no caso do subornos - saindo dos seus pés de mago cruzamento para Sandy Turnbull fazer o único golo com que clube de Manchester venceu a partida. Com as cores do Manchester United, e como já sublinhámos, ele conquistou a esmagadora maioria dos títulos logrados na sua carreira, tendo o primeiro deles ocorrido na temporada de 1907/08, altura em que vence o campeonato nacional. Feito repetido em 1910/11. Mas a joia da coroa era mesma a FA Cup, competição que o galês iria vencer ao serviço do United em 1909, quando no Crystal Palace Stadium os red devils venceram por 1-0 a Bristol City, tendo o obreiro desse triunfo sido o príncipe dos pontas, como também era já conhecido Meredith.

Antes deste triunfo Meredith ajudou o seu país a escrever uma das mais brilhantes páginas do seu - pouco conhecido - futebol. Em 1907 ele ajuda o País de Gales a vencer o Campeonato Britânico, uma competição disputada por Inglaterra, Irlanda, Escócia, e claro, Gales. Em 1920 ele venceria de novo a prova, mas deste vez com um sabor ainda mais especial, pois no jogo decisivo o País de Gales derrotou a poderosa Inglaterra em Londres, por 2-1, sendo esta a primeira vitória galesa da história alcançada sobre os vizinhos ingleses. Meredith defendeu as cores do seu país em 48 ocasiões - e mais poderiam ter sido, pois reza a lenda que pelo menos 71 vezes foi chamado a representar a seleção, mas na maior parte das ocasiões os seus clubes opunham-se a essas convocatórias e não o deixavam representar a seleção nacional - e apontou 11 golos.

Jogou até quase aos 50 anos pelo... Manchester City

Billy Meredith ficou eternizado na história do futebol não só pela sua talentosa forma de interpretar o belo jogo como também pelo facto de ter jogador até quase aos 50 anos de idade! É verdade. 49 anos e oito meses, era esta a idade precisa no dia em que o galês fez as suas despedidas dos relvados, fazendo-o com as cores do... Manchester City. Em 1921 ele abandona o United com 35 golos marcados em mais de 300 jogos disputados, e regressa ao vizinho City onde joga até quase aos 50 anos (em 1924). Em 1923 ele ainda leva o City às meias-finais da FA Cup, precisamente um ano depois de ter representado o País de Gales pela última vez, com 48 anos, tornando-se assim no jogador mais velho a vestir o manto sagrado galês. O seu derradeiro encontro pelo City aconteceu a 29 de março de 1924, num encontro diante do Newcastle, precisamente o clube que apadrinhou a estreia de Meredith em 1894. 40 anos tinham passado desde então! Pendoradas as chuteiras comprou um hotel em Manchester, dedicando-se à hotelaria, vindo a falecer a 19 de abril de 1958.

Legenda das fotografias:
1-Billy Meredith
2-Com a camisola do Manchester City
3-Atuando na final da Taça de Inglaterra de 1904
4-Com as cores do Manchester United
5-O estilo inconfundível de Billy
6-Seleção do País de Gales (Meredith é o segundo da fila de cima da esquerda para a direita)
7-Com quase 50 anos ainda encantava todos aqueles que o viam jogar!

terça-feira, maio 28, 2013

Estrelas cintilantes (34)... Magnar Isaksen


Com o avançar dos anos - desde a sua (re)criação - os Jogos Olímpicos tornaram-se num acontecimento mediático à escala mundial. A industrialização – as vias de comunicação, o telégrafo, a imprensa, a rádio, e mais tarde a televisão – ajudou a que as Olimpíadas da Era Moderna adquirissem o estatuto de maior espetáculo desportivo do planeta durante a primeira metade do século XX. De quatro em quatro anos olhares provenientes dos mais diversos pontos do Mundo centravam-se nas demonstrações da mestria atlética de homens das mais variadas raças, credos e religiões. Na qualidade de grande evento global os Jogos Olímpicos tornaram-se alvo de interesses políticos, adquirindo o papel de importante veículo de promoção de ideologias políticas. Olhando para as Olimpíadas como um instrumento para conquistar o poder, regimes políticos serviram-se do mediatismo do evento para vangloriar o seu nacionalismo e mostrar a superioridade da raça em relação às demais. O significado de uma medalha de ouro foi alterado, o que dantes premiava a excecionalidade de um atleta era visto pelos regimes políticos como um meio para mostrar ao Mundo a superioridade da sua nação em relação às suas congéneres. O atleta tornava-se assim num objeto do seu Estado de origem com a finalidade de evidenciar a supremacia de uma raça, enquanto que o mediatismo global do evento olímpico era visto como uma vitrine para que regimes políticos e/ou sociedades pudessem vincar no plano externo as suas ideologias políticas e/ou sociais. 


O ano de 1936 é um bom exemplo de como os meios políticos procuraram usar a popularidade dos Jogos Olímpicos para evidenciar ao Mundo as suas ideologias. Berlim acolheu nesse referido ano aquela que era já inequivocamente a maior manifestação desportiva do planeta. A Alemanha de então vivia sob o regime nazista comandado por Adolf Hitler. Vendo nos Jogos a ferramenta ideal para mostrar ao Mundo a superioridade da raça ariana o líder nazi não se pouparia a esforços para fazer destas as Olimpíadas mais espetaculares da história. 

Hitler montou uma autêntica máquina de propaganda política através dos Jogos. Com um orçamento ilimitado não deixou ao acaso o mínimo detalhe que pudesse colocar em perigo a sua estratégia de assalto ao poder através do mega evento desportivo. Um estádio olímpico foi construído propositadamente, e aos atletas alemães tudo era dado e permitido para que se pudessem preparar conveniente para o evento e desta forma conquistar o máximo número de medalhas de ouro que traduzissem a superioridade da raça ariana. 


O mediatismo dos Jogos atingia o ponto mais alto da sua história até então. 49 países marcavam presença em Berlim representados por cerca de 4000 atletas. Um recorde para a altura. Pela primeira vez a televisão associava-se ao evento, difundindo imagens do populismo nazi que tomou conta de Berlim para todo o Mundo. O maior evento desportivo do planeta estava transformado numa gigantesca manifestação de índole nazi perante o olhar do Mundo. Tudo parecia correr de feição a Hitler até ao momento em que surge um descendente de escravos que com a mestria da sua performance atlética desmoronou a máquina de propaganda nazi edificada por Hitler. Jesse Owens, era o nome deste norte americano que logo nas primeiras provas (de atletismo) dos Jogos de 1936 arrecadou quatro medalhas de ouro para espanto do planeta que seguia com atenção os desenlaces de Berlim.

A proeza do negro Owens desde logo se tornou numa epopeia que deitou por terra as aspirações de Hitler em transformar um evento desportivo de cariz global numa manifestação do regime nazista por si liderado. A saga de Owens fez com saísse de Berlim endeusado por todos, inclusive pelo próprio público alemão, com exceção de Adolf Hitler, por motivos óbvios, claro está.
Bom, esta pequena sinopse retrata não só um pouco a essência dos Jogos (re)criados pelo Barão Pierre de Coubertin nos finais do século XIX como também uma das edições mais mediáticas da história deste mega evento desportivo global. Mas o que ainda hoje muita gente desconhece é que não foi apenas Owens o causador dos planos de Hitler terem ido por água abaixo em 1936. E é aqui que se inicia esta nossa viagem ao passado... 

Jesse Owens pode até ter sido o elemento mais medático a desencadear a revolta - diria mesmo o ódio - de Adolf Hitler pelo facto de os seus discípulos terem sido humilhados, mas um outro homem, cujo foco da carreira desportiva praticamente se resumiu à efeméride que hoje vamos recordar, o facto que o tornou imortal na história do futebol, teve igualmente uma grande parte da responsabilidade por deixar furioso o... fuhrer. O seu nome é Magnar Isaksen, futebolista norueguês que integrou a lendária seleção nórdica que participou no torneio olímpico de futebol em 1936. Futebol que apesar da sua (já) vincada popularidade por aqueles dias até esteve para nem figurar no cartaz olímpico de Berlim! Ao que parece Hitler detestava o belo jogo (!), mas como este era tão só a modalidade rainha do planeta o fuhrer não teve dúvidas em inclui-lo no programa olímpico, e assim tirar partido da popularidade do jogo. Para a sua seleção nada faltou, tratando os seus futebolistas como verdadeiros membros da realeza, com o intuito de agarrar o ouro olímpico e assim atrair até si as luzes da ribalta
E as coisas até nem começaram nada mal para os germânicos, que na primeira ronda do torneio esmagaram o Luxemburgo por 9-0, para contentamento dos pares de Hitler, os quais após a pomposa vitória correram de imediato a avisar o fuhrer do massacre que haviam infringido aos frágeis luxemburgueses. Talvez devido a esse entusiasmo, o líder nazi fez questão de aparecer no encontro seguinte, a contar para os quartos-de-final, cujo adversário era a Noruega, que na eliminatória inicial se havia desenvencilhado da Turquia por 4-0. 

Reza a lenda que até então Adolf Hitler nunca havia presenciado uma partida de futebol (!), mas convencido pelos seus pares decide marcar presença no pomposo Estádio Olímpico de Berlim para ver a sua Alemanha ganhar e desta forma subir mais um degrau rumo ao ouro olímpico. Sim, ganhar, pois não lhe passava pela cabeça que depois dos nove golos aplicados aos luxemburgueses a sua equipa pudesse cair aos pés daqueles desconhecidos noruegueses. Aliás, os seus pares haviam-lhe garantido que a Alemanha não iria perder!!! Como estavas enganados. 

Não só cairam, como cairam com estrondo, graças a uma tarde inspirada do até então desconhecido avançado Magnar Isaksen. Atleta este nascido a 13 de outubro de 1910, na cidade costeira de Kristiansund, iniciando a sua - praticamente enigmática - carreira no clube da sua terra. Seria no entanto ao serviço do gigante norueguês Lyn (da capital Oslo) que Isaksen percorreu a maior parte do seu trajeto futebolístico. 1936 é na realidade um ano inesquecível na vida da nossa estrela cintilante de hoje, já que a 26 de julho faz o seu debute com a seleção nacional norueguesa, num encontro particular ante os vizinhos da Suécia. Uma estreia que não poderia ter corrido melhor, já que além da vitória (4-3) Magnar, que então contava com 26 anos, fez um dos golos da sua equipa. Se dúvidas existissem esta performance do avançado do Lyn convenceu o selecionador nacional Asbjorn Halvorsen a dar-lhe o cartão de embarque para Berlim, onde a Noruega iria escrever a página mais bela da sua história futebolística. Depois da já referida robusta vitória sobre a Turquia os noruegueses enfrentavam a turma da casa. 

Sem se intimidar com a presença de Adolf Hitler na tribuna de honra Magnar Isaksen silenciou por completo o estádio olímpico logo aos 7 minutos, quando pela primeira vez na tarde bateu o guardião Hans Jakob. Hitler terá gelado por esta altura, mas será que este não era mais do que um mero golpe de sorte de um duelo que ainda nem sequer tinha aquecido? Não, já que a Noruega controlou a contenda a seu bel prazer, e confirmaria essa superioridade já muito perto do fim - 83 minutos - e de novo pela estrela da tarde, Magnar Isaksen. 2-0, resultado final. Hitler, de cara fechada, de pronto abandonou o estádio olímpico, furioso, ao passo que Isaksen passava a ser inimigo eterno do fuhrer, tal como Jesse Owens, enquanto que para o seu povo ascendia à categoria de herói nacional.
A Noruega avançada para as meias-finais contra todas previsões, fase esta onde iria cair aos pés da futura campeã olímpica, a Itália. O prémio para a inolvidável façanha norueguesa viria com a conquista da medalha de bronze, após um trunfo sobre a Polónia por 3-2. Para sempre esta seleção nórdica ficaria conhecida como a equipa de bronze

Esta geração de futebolistas de um país que raramente marcou presença em grandes eventos futebolísticos viveu ainda um segundo momento inesquecível, dois anos após a epopeia de Berlim, em França, país que acolheria a fase final do Campeonato do Mundo. Noruega que era um dos 15 participantes, sendo que os caprichos do sorteio ditaram que a Itália - campeã do Mundo e olímpica em título - seria o adversário na primeira eliminatória. Na tórrida tarde de 5 de junho de 1938 Magnar Isaksen fazia parte do onze nórdico que subiu ao relvado do Stade Velodrome para enfrentar Giuseppe Meazza e companhia. E o que se assistiu foi a mais uma magnífica exibição norueguesa, obrigando a squadra azzurra a horas extras - isto é, prolongamento - para passar à eliminatória seguinte. 2-1 a favor dos italianos - que viriam a consagrar-se neste campeonato de novo senhores do Mundo - mas a Noruega saiu de cena debaixo de fortes aplausos. 

Entre 1936 e 1938 Magnar Isaksen vestiu em 14 ocasiões a camisola da sua seleção, ao serviço da qual apontou cinco golos, sendo que dois deles - os de Berlim - fizeram dele uma lenda. Uma figura lendária não por ter sido um atleta extraordinário, nada disso, até porque a Noruega teve futebolistas de maior craveira, mas lendário porque foi graças ao seu instinto matador que Adolf Hitler ficou a detester ainda mais o futebol no único jogo a que assitiu na sua vida! Magnar Isaksen faleceu a 8 de junho de 1979.

Legenda das fotografias:
1-Magnar Isaksen 
2-Imagem do histórico jogo que colocou frente a frente a Alemanha e a Noruega nos Jogos de Berlim, em 1936
3-O imortal onze norueguês que enfrentou os germânicos, com Isaksen na fila de cima (identificado com um círculo)
4-Noruega enfrenta a Itália no Mundial de 1938.

quarta-feira, maio 22, 2013

Histórias do Futebol em Portugal (13)... Nau de Belém chega à terra prometida

Depois de em 1926 ter estado muito perto de lá atracar, a nau de Belém alcançou um ano mais tarde a terra prometida do futebol português. Fundado precisamente oito anos antes (1919) por Artur José Pereira o Belenenses conquistava em 1927 o primeiro grande título de uma história que nas décadas seguintes haveria de ter (outros) inúmeros momentos de glória, os quais haveriam de fazer deste um dos mais populares e laureados emblemas de Portugal. Clube de Futebol "Os Belenenses" que levou então para casa o título de campeão de Portugal num ano (1927) em que aquela que já era a mais importante e querida competição lusitana conheceu profundas remodelações. O certame foi avolumado, isto é, alargado a mais clubes que não os campeões regionais. Inspirados no sucesso da FA Cup inglesa um trio de ilustres figuras do futebol (e do jornalismo desportivo) português daquele tempo, nomeadamente Ribeiro dos Reis, Ricardo Ornelas, e Cândido de Oliveira, propuseram então que mais clubes pudessem competir no Campeonato de Portugal, constituindo para isso uma comissão que traçou o novo regulamento da prova. Regulamento esse que propunha a edificação de um Torneio de Classificação a anteceder o campeonato, torneio esse dividido em 14 grupos espalhados um pouco por todo o país, sendo que os vencedores desses grupos iriam juntar-se a 15 clubes isentos - isenção que era concedida em face da classificação obtida por esses clubes no seio das respetivas associações distritais - e com lugar desde logo garantido na 6ª edição do Campeonato de Portugal. Nestes moldes um dado estava desde logo garantido: a prova nacional iria ter mais jogos, mais cidades envolvidas, e desde logo mais emoção. E assim foi.
A Federação Portuguesa de Futebol (FPF) - que assim passou a chamar-se desde 28 de maio de 1926, deixando para trás a designação de União Portuguesa de Futebol - deu luz verde à ideia dos três jornalistas/dirigentes desportivos e o campeonato arrancou a 6 de março de 1927.
Porém, falar do certame ganho pelo Belenenses obriga também a evocar a palavra polémica. Mais uma vez assistiu-se a uma dura batalha da guerra norte-sul... como iremos recordar lá mais para a frente desta viagem ao passado.

Sob a arbitragem de José Simões, os lisboetas do Império - estreantes na competição, fruto de terem sido um dos 14 vencedores dos grupos do Torneio de Classificação - esmagaram diante do seu público os alentejanos do Luso Beja, por 4-0. Este encontro foi disputado no Campo da Palhavã, recinto que neste mesmo dia assistiu a uma segunda partida da 1ª eliminatória do Campeonato de Portugal de 1927, entre o estreante Barreirense e o campeão de Portugal de 1924, o Olhanense. Barreirenses que foram uma das grandes surpresas do certame, ao apresentarem um futebol alegre e vistoso ministrado por um mestre da tática que havia feito furor num passado recente nos então retângulos lusos de terra batida. Augusto Sabbo, engenheiro luso-alemão profundo entendido dos meandros do belo jogo que em 1923 havia conduzido o Sporting à vitória final do Campeonato de Portugal, mas que problemas financeiros leoninos desviaram em meados de 1926 para o Barreiro, onde reunindo um grupo de operários construiu uma das mais belas equipas da história do emblema da margem sul do Tejo.

Voltando ao duelo entre Barreirense e Olhanense o que se assistiu na Palhavã foi um verdadeiro espetáculo de futebol ofensivo, de parte a parte, com os pupilos de Sabbo a levarem a melhor por 9-4! No plano individual deste hino de ataque às balizas destaque para o olhanense José Belo - um dos artistas do título nacional de 24 - que à sua conta apontou os quatro tentos da sua equipa, e para os operários do Barreiro José Correia, e João Pireza, respetivamente autores de quatro e três dos nove tentos barreirenses.
Mais a norte, em Viana do Castelo, o Campo de Monserrate chorou ao ver os portuenses do Progresso saírem da Princesa do Lima com um magro triunfo de 1-0 no bolso sobre o combinado local, o experiente - nestas andanças - Vianense.
Em Braga, no Campo do Raio, dois estreantes mediram forças, o Boavista e o Clube Galitos (de Aveiro). Fizeram a festa os portuenses graças a um triunfo por três golos sem resposta, com José Rodrigues Chelas a vestir o fato de herói após apontar dois tentos.
Outro histórico emblema da cidade do Porto participou pela primeira vez na mais popular competição nacional, de seu nome Sport Comércio e Salgueiros. A jogar em casa (Campo do Covelo) os salgueiristas golearam o representante da Associação de Vila Real, o Sport Clube Vila Real, por 4-0. Arbitrado pelo guarda-redes do Boavista (!), Manuel Sousa, conhecido no planeta da bola por Casoto, o Salgueiros entrou praticamente a vencer no encontro, quando à passagem do minuto três Fontes deu colorido ao marcador. Na segunda parte brilhou a grande altura Reis, autor dos restantes três golos da tarde (aos 55, 60, e 90m).
No Campo da Quinta Agrícola, em Coimbra, a Briosa - popular alcunha pela qual é conhecida a Académica coimbrã - despachou o Sporting de Espinho por 3-1, com a particularidade de dois dos três tentos academistas terem sido apontados por Albano Paulo, o homem que em 1939 iria conduzir - na condição de treinador - a Académica à vitória na edição de estreia da prova sucessora deste Campeonato de Portugal, a Taça de Portugal.

Pior sorte teve a outra equipa de Coimbra, o União, que em Lisboa saiu da prova vergado a uma pesada derrota aos pés do Casa Pia, por 5-0, tendo Gustavo Teixeira apontado quatro golos! E no Porto o popular Leixões também dava os primeiros passos no Campeonato de Portugal. No (campo do) Covelo os matosinhenses enfrentavam o Sporting de Braga, um habitual combatente nestas frentes, conjunto que levaria para a capital minhota um saboroso triunfo por 3-0, construido durante a etapa inicial, com golos de Cruz (aos cinco minutos) e Gumercindo (aos 20 e aos 42m). E por falar nas cidades de Braga e do Porto dois outros combinados oriundos destas urbes mediram forças entre si nesta ronda inicial. FC Porto e Estrela de Braga, assim se chamavam, tendo os portistas vencido com naturalidade os bracarenses por 11-0! Naturalidade porque a diferença - a diversos níveis - entre ambos os conjuntos era abismal.

No entanto a goleada mais dilatada desta 1ª eliminatória foi alcançada por outra das equipas sensação da prova, o Vitória de Setúbal, o surpreendente campeão regional de Lisboa (!) deste ano de 1927. No Campo dos Arcos (em Setúbal) os sadinos afastaram o Despertar Sport Clube de Beja por expressivos 12-0 (!), sim, uma dúzia de golos, cinco deles apontados por uma das estrelas do combinado orientado pelo inglês Arthur John, de sua graça Octávio Cambalacho.
E em Portalegre entrava em campo um leão financeiramente... moribundo. O gigante Sporting Clube de Portugal passava por uma crise financeira aguda, que - entre outros aspetos - levou à saída do treinador campeão Augusto Sabbo rumo ao Barreirense. A razão desta surpreendente dispensa alude ao elevado ordenado que Sabbo usufruia em Lisboa, 12 contos, que segundo a Direção leonina era incompatível com as finanças de um clube cujo orçamento era de 29 contos. Mesmo debilitado financeiramente o leão - agora treinado pelo seu carismático capitão Jorge Vieira - era ainda aguerrido no plano desportivo, conforme explica o resultado de 7-1 a seu favor sobre o SC Portalegre.
No derradeiro encontro desta eliminatória o futuro campeão entrou em campo. E fê-lo em Santarém, diante dos Leões locais, que por sua vez não tiveram armas para contrariar a superioridade da equipa-maravilha criada por Artur José Pereira, o fundador do clube e agora seu treinador, e onde pontificavam lendas como Eduardo Azevedo, César Matos, Augusto Silva, e um tal de Pepe. No Campo de São Lázaro um festival de futebol de ataque originou um triunfo merecido dos rapazes de Belém, por 9-1. Estava dado o primeiro passo de uma caminhada que iria ser triunfal.

Estreia do Benfica

Concluída a 1ª eliminatória a prova rumou aos oitavos-de-final, que tiveram a sua entrada em cena a 3 de abril. Dia em que entrou em ação o popular Benfica, um dos clubes mais afamados da capital, que fazia a sua estreia na competição. Treinados pelo lendário Ribeiro dos Reis - homem dos 7 ofícios dentro do futebol - os benfiquistas reuniram um bom grupo para atacar o campeonato, e levar o troféu de campeão para o... Montepio Geral! É verdade. Não tendo ainda um espaço para guardar os troféus conquistados os benfiquistas guardavam as suas relíquias no banco Montepio Geral! Outros tempos. No que concerne a nomes sonantes o Benfica de 1927 tinha vários, desde Mário Carvalho, passando por Ralph Bailão, até Raul Tamanqueiro, a grande estrela do Olhanense campeão de Portugal em 1924. No Campo do Raio, em Braga, o Benfica de Tamanqueiro e companhia sofreu a bom sofrer para vencer o Sporting local por 4-3, com os tentos benfiquistas a pertencerem a Pereira Nunes, António Gonçalves, Vítor Hugo, e José Simões.

E foi precisamente nos oitavos-de-final que a polémica vistou o Campeonato de Portugal, envolvendo, curiosamente, dois clubes da cidade do Porto. O primeiro caso aconteceu no Covelo, onde o Salgueiros bateu com a porta após graves erros do árbitro Ramon Folch (de Viana do Castelo) no encontro diante do Vitória de Setúbal. O duelo terminou com o triunfo sadino por 2-0 - golos de Octávio Cambalacho e Soares - mas iria ser mandado repetir após ter-se concluído que o árbitro prejudicou seriamente os salgueiristas. Estes, em forma de protesto, decidiram não comparecer no segundo encontro, pelo que a FPF não teve outro remédio senão atribuir a passagem de eliminatória ao Vitória. A guerra norte-sul, que havia despoletado logo na primeira edição da prova, conhecia aqui mais uma ardente batalha, com os nortenhos a queixarem-se de descriminação em relação aos sulistas.
Mas os combates entre o norte e o sul não se resumiram ao Salgueiros - Vitória de Setúbal. Muito longe disso. A grande polémica do campeonato envolveu o FC Porto e o Belenenses, equipas que se defrontaram no Campo da Palhavã nesta eliminatória, um jogo que para muitos era digno de uma final antecipada. Arbitrado pelo juíz da Associação de Futebol de Beja Doroteo Flecha Rodrigues, o jogo começou de feição aos portistas, que sem se deixarem impressionar pelo ambiente - mais uma vez - hostil que encontraram na capital rapidamente chegaram ao 2-0, com golos de Acácio Mesquita e de um tal de Fridolf Resberg. Último jogador este de nacionalidade norueguesa, e que viera para Portugal para abraçar a carreira de diplomata no Consulado da Noruega no Porto. Reza a lenda que Resberg certo dia passou pelo Campo da Constituição, apresentou-se ao treinador Akos Teszler e pediu para treinar com o clube. Pedido aceite Resberg convenceu os responsáveis azuis-e-brancos, que rapidamente o colocaram na frente de ataque da sua equipa principal, onde fez furor durante algum tempo, até ser chamado de volta para a sua longínqua e gélida Noruega.


Mas voltando aos (tristes) acontecimentos da Palhavã o diabólico Pepe pôs a cabeça em água aos defesas portistas, ao fazer dois golos. Um deles deu mesmo o triunfo ao Belenenses (3-2), uma vitória muito protestada pelos portistas que se queixaram da atuação tendenciosa do árbitro alentejano. Triunfo belenense que só foi alcançado no prolongamento depois de um 2-2 no final do tempo regulamentar. Tento do empate dos rapazes de Belém que surgiu em cima do minuto 90... em claro fora de jogo. Assim evocaram os responsáveis do FC Porto. O árbitro fez vista grossa e surgiu a necessidade de mais 30 minutos de batalha. Não satisfeito com esta pequena ajuda - na voz dos portistas - o árbitro decidiu aplicar o mesmo critério no golo da vitória lisboeta, apontado por Pepe... mais uma vez em nítido fora de jogo. Doroteo Flecha Rodrigues admitiu no final da partida ter errado a favor dos azuis de Belém no que diz respeito a este último tento!
Porém, em resposta às críticas do Porto as gentes de Lisboa - com FPF à cabeça - acusaram o clube nortenho de não cumprir os regulamentos, já que se havia apresentado em campo com três atletas estrangeiros (Mihaly Siska, Norman Hall, e Fridolf Resberg) quando a lei dizia que apenas podiam ser utilizados dois.

Os portistas não calaram a sua revolta e logo após a eliminação tornavam pública carta feroz, a qual dizia o seguinte: «Este campeonato serviu apenas para demonstrar as competências tacanhas a quem o futebol português está entregue. Segundo o seu regulamento nenhum grupo pode alinhar com mais de dois jogadores estrangeiros, mas como entendêssemos que o senhor Norman Hall é moralmente um jogador português, fizemos por intermédio da nossa associação uma exposição à FPF, citando que Norman Hall há 15 anos vem disputando pelo nosso clube os campeonatos do norte e tem sido incluído no grupo representativo da cidade desde 1918, isto é, muito antes da formação da FPF, acrescendo ainda a circunstância de residir em Portugal desde a idade de oito anos. Esta exposição, apreciada e discutida numa reunião do Comité Executivo do Campeonato de Portugal, teve resolução favorável, sendo qualificado o referido senhor Norman Hall como jogador português. Depois de termos jogado e vencido o Estrela de Braga, fomos indicados adversários do Belenenses, para os oitavos-de-final, a realizar em Lisboa. Alinhámos com Norman Hall e depois de uma exibição superior ao nosso adversário e em que o resultado deveria ser de dois golos a um, a nosso favor, o árbitro. senhor Flecha, de Beja, conseguiu, no final do tempo regulamentar, um empate a 2-2. Jogada a meia hora do desempate, fomos mais uma vez prejudicados com uma bola "off-side", que deu o resultado de 3-2 a favor do Belenenses. A arbitragem deste desafio levou-nos a um protesto junto da FPF, protesto que foi acompanhado de 500 escudos e sobre o qual a mesma federação até hoje nenhuma resposta deu, parecendo-nos que nenhuma resolução tomou, visto reconhecer que teria de anular o jogo, em face das declarações do árbitro, que involuntariamente nos tinha tirado uma vitória bem justa». 
Da FPF veio resposta a dizer simplesmente que o FC Porto não havia cumprido a lei ao alinhar com três estrangeiros. Sobre os 500 escudos nem uma palavra!!! E ponto final.

Alguns quarteirões mais à frente, isto é, no Campo Grande, o Sporting Clube de Portugal, do jogador/treinador Jorge Vieira, humilhava a Académica de Coimbra por 9-1, com destaque para os cinco golos de Filipe dos Santos. Mais a norte, no Porto, o Barreirense de Augusto Sabbo continuava a sua caminhada triunfal, sendo que desta feita a vítima deu pelo nome de Boavista Futebol Clube, clube este que no seu reduto - Campo do Bessa - perdeu por 0-2.
A 24 de abril disputou-se no Campo Grande o derradeiro desafio destes oitavos-de-final, o qual colocou frente a frente o Carcavelinhos ao Casa Pia, tendo vencido os primeiros por 3-1. Isento desta eliminatória ficou o detentor do título de campeão de Portugal e crónico campeão da Madeira, o Clube Sport Marítimo.

Campeões em título provam do próprio veneno


E por falar em Marítimo quis o destino que a defesa do título tivesse início com uma reedição da final do ano anterior, ante o Belenenses, que recorde-se, havia sido derrotado pelos madeirenses no Campo do Ameal por 0-2. Este reencontro foi digamos que uma vingança dos pupilos de Artur José Pereira, que diante do seu público, que lotou por completo o Campo do Lumiar, esmagou os campeões da Madeira e de Portugal por claros 8-1! Deram cor à goleada azul Silva Marques (3 golos), Pepe (2), Alfredo Ramos (2), e Augusto Silva. Este jogo fez ainda com que o Marítimo provasse do próprio veneno dado ao FC Porto um ano antes, quando nas meias-finais humilhou os portistas por 7-1. Desta feita foram os madeirenses a saborear uma amarga e pesada derrota!
Nas Amoreiras o Vitória de Setúbal ultrapassava mais um duro obstáculo rumo à final que iria alcançar muito justamente. O Sporting foi um osso duro de roer, mas Octávio Cambalacho, mais uma vez, fez estoirar a festa à beira do (rio) Sado graças a um único golo que derrotou os aparentemente falidos mas aguerridos leões.
Quanto ao eterno rival do Sporting, o Benfica, beneficiou de uma tarde verdadeiramente inspirada do seu avançado Jorge Tavares, autor de três dos cinco golos com que os pupilos de Ribeiro dos Reis afastaram os operários do Carcavelinhos. Por último, o Barreirense, que afastou o Império por 3-1.


Nova polémica nas meias-finais!

Como não há duas sem três polémica voltou a gritar-se a viva voz nas meias-finais do campeonato, disputadas no dia 15 de maio. Ambos os jogos realizaram-se no Campo do Lumiar, em Lisboa, sendo que no primeiro confronto o Vitória de Setubal garantiu o passaporte para a final num encontro que só durou 44 minutos! Aníbal José fez o único golo do jogo a favor dos sadinos, que na voz do treinador barreirense, Augusto Sabbo, usaram e abusaram das entradas duras. Comportamento violento a juntar ao aparente golo irregular dos setubalenses ao cair do pano sobre a primeira parte que fez com que Sabbo ao minuto 44 ordenasse que os seus pupilos abandonassem o terreno de jogo em sinal de protesto, pelo que o árbitro lisboeta Ilídio Nogueira não teve outra hipótese senão dar por terminada a partida nomear os sadinos como os primeiros finalistas do campeonato. Horas mais tarde foi a vez do Belenenses assegurar a presença no jogo mais desejado do ano. No entanto, para o conseguir os pupilos de Artur José Pereira tiveram de sofrer a bom sofrer para eliminar um combativo Benfica. Com uma igualdade a zero golos no final dos 90 minutos o árbitro Silvestre Rosmaninho viu-se na necessidade de indicar mais 30 minutos de prolongamento, sendo que aqui, os azuis de Belém levariam a melhor, com golos de Silva Marques (minuto 102) e Pepe (minuto 115). 

Belenenses é o novo rei do futebol português em véspera de Santo António!


E foi precisamente no Lumiar que praticamente um mês depois foi disputada a grande final. Jogo decisivo que foi realizado a 12 de junho, a véspera da mais importante festa popular da capital portuguesa, Santo António, a quem - por certo - ambos os intervenientes terão solicitado ajuda divina na entrada para o retângulo de jogo. Tarde ventosa brindava a capital em dia de festa, e seria precisamente o vento um aliado - e um inimigo também - para os dois conjuntos envolvidos na final. Durante o primeiro tempo foi o Vitória de Setúbal a beneficiar da ajuda do vento, embora sem tirar proveito desse fator. Com um futebol apoiado, de passes curtos e desmarcações rápidas, os sadinos foram uma dor de cabeça para o guarda-redes belenense Francisco Assis na etapa inicial. João Santos foi o principal protagonista dos assaltos à baliza azul, desperdiçando de forma incrível - dizem as crónicas da época - um golo feito aos 27 minutos. E como quem não marca por norma sofre o Belenenses - agora jogando com o vento a seu favor - dominou por completo a segunda parte, domínio esse traduzido em golos. O primeiro surgiu por Augusto Silva, aos 63 minutos, a aproveitar da melhor maneira um cruzamento de César Matos, sendo que a machadada final foi dada na entrada para os derradeiros cinco minutos da contenda, graças a um bis de Silva Marques (aos 86 e aos 89 minutos).
O futebol cintilante do Belenenses era assim premiado com o ambicionado título de campeão de Portugal. Era caso para dizer que essa noite de Santo António iria ser duplamente festejada pelos apaixonados adeptos belenenses que na tarde de 12 de junho de 1927 lotaram por completo o Lumiar.

A figura: Pepe


Se tivessemos de escolher os 10 melhores futebolistas portugueses da primeira metade do século XX o seu nome inevitavelmente estaria lá. José Manuel Soares, eternizado no planeta da bola como Pepe, foi a grande figura do Campeonato de Portugal de 1927. A sua genialidade criativa e técnica ficaram bem patentes na caminhada triunfal do Belenenses. Sobre ele já traçámos noutras viagens ao passado longas linhas, e a sua memória repousa na vitrina das lendas deste Museu Virtual do Futebol. Aproveitando a vitória do Clube de Futebol "Os Belenenses" na principal prova portuguesa repescamos para este texto algumas das linhas biográficas por nós desenhadas aquando dessa visita a um menino que morreu cedo demais!
Ele foi um dos primeiros génios do futebol português como consequência natural da sua veia artística com a bola. Cedo se tornou num ídolo para a massa adepta lusitana que ia tendo o primeiro contacto com o belo jogo. Com dribles diabolicamente desconcertantes, com passes magistrais, ou com golos inimagináveis ele ganhou por direito próprio um lugar no Olimpo dos Deuses do futebol. A 30 de janeiro de 1908 no seio de uma família pobre de Belém (Lisboa) nasce aquele que viria a ser um dos maiores ídolos do futebol português na década de 20 do século passado.

A infância de José Manuel Soares foi pois de profunda miséria, sendo que a única alegria dos meninos daquele tempo era única e simplesmente a bola de futebol. E foi a jogar futebol na rua com uma bola de trapos que Pepe – alcunha que surgiu numa época em que a sua condição no desporto rei era já a de um talento confirmado – descobriu a sua vocação. Como tal ainda com tenra idade ingressa no clube da sua zona, o Belenenses, o emblema gravado no seu coração, sendo que com apenas 15 anos (!) é inscrito no Campeonato de Lisboa.
Não demoraria muito a sua ascensão até à equipa principal, a qual se daria um ano depois (1926) num confronto ante o Benfica no Campo das Amoreiras, duelo que terminaria 5-4 a favor do Belenenses, tendo Pepe apontado o golo do triunfo do seu clube. A sua exímia técnica aliada à sua velocidade estonteante e ao seu poderoso remate patenteados dali em diante fizeram com que fosse aclamado como o rei do futebol português.

De um dia para o outro Pepe tornou-se na alegria do povo. Em Belém, a zona onde continuava a residir numa pobre casa situada na Rua do Embaixador, não havia um único dia em que o seu nome fosse pronunciado com entusismo e vaidade. Mesmo sendo por aquela altura o habitante mais famoso de Belém o menino Pepe continuava humilde e... pobre, sim, porque o futebol não passava de uma brincadeira. Para ajudar a sua família foi trabalhar ainda moço para uma oficina de torneiro, para mais tarde passar a laborar no Centro de Aviação Naval. De aspecto franzino o menino que todos os dias levava para o emprego um triste caldo para retemperar forças fazia magia nos campos de futebol em cada fim-de-semana com as cores do seu Belenenses. Carregou os azuis de Lisboa às costas nas conquistas dos campeonatos de Portugal de 1927 e 1929, bem como noutros tantos campeonatos de Lisboa. Entre 1928 e 1931 sagra-se naturalmente o melhor marcador do campeonato lisboeta, sendo que na temporada de 30/31 estabelece um recorde de 36 golos apontados em 14 encontros disputados! Para a história, nessa mesma época, faz 10 dos 12 golos com que o Belenenses bate o Bom Sucesso.



Ele foi um dos notáveis que integrou o selecionado português na primeira grande aparição deste numa competição à escala mundial: os Jogos Olímpicos. 1928 é o ano que assinala esse feito, ano em que Portugal fica às portas de uma medalha nas Olímpiadas de Amesterdão.
Mas nem só o Belenenses tirou partido do génio de Pepe, a própria seleção nacional também lhe fica a dever muitas vitórias e momentos inolvidáveis. Por 12 ocasiões ele vestiu a camisola das quinas, tendo com ela apontado sete golos.

Consagrado a nível nacional e internacional a estrela de Pepe deixou de brilhar cedo, cedo demais, diria mesmo. Num dia como tantos outros o astro de Belém carrega na fria manhã de 24 de outubro de 1931 o almoço preparado por sua mãe. Almoço é maneira de dizer, pois no bolso levava somente uma triste sande de chouriço que tinha sobrado do jantar da véspera. Chegada a pausa para o repasto Pepe leva o alimento à boca e horas depois é dado como morto no Hospital da Marinha, local para onde foi transportado assim que começou a sentir violentas dores abdominais e a ter hemorragias. Morreria às 10h30 da manhã, com apenas 23 anos... e um futuro – com toda a certeza – risonho ficou por percorrer.

As causas da morte muita tinta fizeram correr nos dias seguintes. Houve quem tivesse apontado ao assassinato... por invejosos do seu valor e popularidade. O envenenamento contudo não ficou senão a dever-se a um lapso – fatal – de sua mãe, a qual em vez de colocar bicarbonato de sódio na refeição colocou potassa, substância que iria destruir por completo o estômago do atleta. Mãe e irmãs de Pepe que também haviam ingerido igual refeição, no entanto conseguiram escapar com vida, aparentemente por terem ingerido uma menor quantidade.
Pepe morreu e o país chorou dias a fio. O seu funeral foi uma prova colossal do carinho que o povo tinha por ele... 30.000 pessoas prestare-lhe uma última homenagem.

Nomes e números do Campeonato de Portugal de 1927

1ª eliminatória

Império - Luso Beja: 4-0

Vianense - Progresso: 0-1

Barreirense - Olhanense: 9-4

Boavista - Galitos: 3-0

Salgueiros - Vila Real: 4-0

Vitória de Setúbal - Despertar: 12-0

Académica - Sp. Espinho: 3-1

SC Portalegre - Sporting: 1-7

Leixões - Braga: 0-3

Casa Pia - União de Coimbra: 5-0

Leões de Santarém - Belenenses: 1-9

Estrela de Braga - FC Porto: 0-11

Oitavos-de-final

Império - Progresso: 7-0

Boavista - Barreirense: 0-2

Salgueiros - Vitória de Setúbal: 0-2

Sporting - Académica: 9-1

Braga - Benfica: 3-4

Carcavelinhos - Casa Pia: 3-1

Belenenses - FC Porto: 3-2

Quartos-de-final

Barreirense - Império: 3-1

Vitória de Setúbal - Sporting: 1-0

Benfica - Carcavelinhos: 5-0

Belenenses - Marítimo: 8-1

Meias-finais

Vitória de Setúbal - Barreirense: 1-0

Belenenses - Benfica: 2-0

Final

Belenenses - Vitória de Setúbal: 3-0

Data: 12 de junho de 1927

Estádio: Campo do Lumiar, em Lisboa

Árbitro: João dos Santos Júnior (lLisboa)

Belenenses: Assis, Eduardo Azevedo, Júlio Marques, Joaquim Almeida, Augusto Silva, César Matos, Fernando António, Alfredo Ramos, Silva Marques, Pepe, e José Luís. Treinador: Artur José Pereira

Vitória de Setúbal: Artur Augusto, Francisco Silva, Isidoro Rufino, Augusto José, Aníbal José, Matias Carlos, Eduardo Augusto, João dos Santos, Octávio Cambalacho, Armando Martins, e Nazaré. Treinador: Arthur John

Golos: 1-0 (Augusto Silva, aos 63m), 2-0 (Silva Marques, aos 86m), 3-0 (Silva Marques, aos 89m)

Legenda das fotografias:
1-Belenenses, o campeão de Portugal em 1927
2-Lance do jogo entre Barreirense e Olhanense
3-João Pireza, uma das estrelas do Barreiro
4-Sporting de Braga
5-Octávio Cambalacho, o goleador do Vitória de Setúbal em 1927
6-Equipa do Benfica, que fez a estreia no Campeonato de Portugal
7-O norueguês do FC Porto, Fridolf Resberg
8-Pepe tenta bater o guarda-redes portista Siska
9-Norman Hall, o seu nome haveria de causar polémica neste campeonato
10-O treinador Augusto Sabbo
11-Fase do jogo entre Vitória de Setúbal e Sporting
12-Artur José Pereira
13-Primeira página do Eco dos Sports a noticiar o triunfo belenense na final
14-Pepe, a estrela de Belém...
15-...em ação...
16... e levado em ombros pela multidão