A lendária expressão David contra Golias pairou sobre a 3ª edição do Campeonato de Portugal, disputado na temporada de 1923/24. E tal como na mitológica lenda o pequeno David venceu o gigante Golias, nascendo aqui uma tradição que teria muitos outros capítulos tanto no Campeonato de Portugal como na prova que lhe viria a suceder, a Taça de Portugal, onde as vitórias dos pequenos sobre os grandes clubes eram - e continua a ser - rotuladas de um triunfo de David contra Golias.
E o primeiro David do futebol lusitano veio do Algarve, mais precisamente da cidade de Olhão, o berço do popular Olhanense, que nessa longínqua primavera de 24 alcançou o maior feito dos seus 100 anos de vida - festejados precisamente neste ano de 2012 -, o título de campeão de Portugal.
Na edição de 1923/24 do Campeonato de Portugal ficou bem patente a descentralização do futebol português, isto é, mais associações - Porto e Lisboa eram as associações de maior peso - envolveram-se na luta pela conquista do ceptro futebolístico de maior prestígio do país. Entre as associações que faziam a sua estreia estavam as de Santarém, Portalegre, e Viana do Castelo, cujos campeões regionais, respetivamente, Sporting de Tomar, União Portalegrense, e Vianense, se juntavam aos campeões do Porto (FC Porto), Lisboa (Vitória de Setúbal), Coimbra (Académica), Algarve (Olhanense), Funchal (Marítimo), e Braga (Sporting de Braga). Favorito a alcançar a glória? Talvez o FC Porto, poderoso emblema nortenho, recheado de algumas das maiores vedetas do futebol lusitano da época, casos de Tavares Bastos, Norman Hall, Velez Carneiro, Alexandre Cal, entre outros, que dois anos antes haviam ajudado o clube da Cidade Invicta a inaugurar a lista de campeões da jovem competição nacional.
E os portistas confirmariam logo na 1ª eliminatória o teórico favoritismo que sobre si recaía. No tarde de 18 de maio de 1924 o Campo da Constituição, no Porto, encheu-se para presenciar a vitória curta mas justa dos azuis e brancos sobre os estudantes da Académica de Coimbra, por 3-2. Noram Hall e Floreano Ferreira - este último por duas ocasiões - foram os heróis dessa tarde, ao apontar os golos da equipa do norte, que não ganhou para o susto a meio do duelo, altura em que um auto golo de José Mota colocou os academistas a vencer por 2-1. Contudo, o talento dos portistas acabaria por vir ao cima nos instantes finais.
Mais a norte, em Viana do Castelo, houve dérbi minhoto, entre o Vianense e o Braga. Gama seria a grande figura da tarde, já que da sua autoria seriam os dois únicos golos de um encontro que seria ganho pelos vianenses.
O resultado mais desnivelado desta eliminatória inicial seria protagonizado entre duas equipas estreantes. O Sporting de Tomar esmagava em Portalegre o União local por 9-0!
E no derradeiro duelo desta ronda inicial assistiu-se ao início da caminhada triunfal do campeão do Algarve, o Olhanense, neste Campeonato de Portugal de 1923/24. Reunindo um naipe de talentosos jogadores, onde se destacava - claramente - o centro campista Raul Tamanqueiro, os jogadores de Olhão venceram no seu Campo da Padinha o Vitória de Setúbal, o surpreendente campeão de Lisboa - deixando pelo caminho os gigantes do futebol lisboeta Sporting, Benfica e Belenenses -, por 1-0, graças a um tento do capitão Júlio Costa.
Lisboa rendida a Olhão
De forma estranha a União Portuguesa de Futebol decidiu que o embate das meias finais entre Olhanense e Sporting de Tomar haveria de ser disputado em Lisboa, e não na localidade de origem das duas equipas em questão! Tal decisão parece não ter afetado os rapazes de Olhão, que numa autêntica tarde de glória despachariam os seus homólogos de Tomar por expressivos 6-0 (!), deixando rendido ao seu futebol o muito público lisboeta que se deslocou ao Campo Grande para assistir à partida. Belo e Gralho, com três golos cada um na sua conta pessoal, foram os responsáveis da robusta vitória algarvia.
E em Viana do Castelo o FC Porto não ganhou - novamente - para o susto. José Barbosa fez explodir de alegria o Campo de Monserrate, quando colocou o Sport Clube Vianense em vantagem num jogo arbitrado pelo mestre Cândido de Oliveira, que na altura representava, enquanto jogador as cores do Casa Pia. Augusto Freire, verdadeiramente endiabrado, tratou de remar contra a maré, e por duas ocasiões bateu o guardião local Ramiro Pinto, dando assim a volta a um marcador que ficaria selado com o último golo portista, da autoria do luso-inglês Norman Hall.
Marítimo impotente para travar avalanche olhanense
Por caprichos do sorteio o Futebol Clube do Porto apurou-se automaticamente para a final do campeonato após o suado triunfo de Viana do Castelo, sendo que a outra vaga iria ser disputada numa espécie de play-off entre o Olhanense e o campeão da Madeira, o Marítimo, que ficara isento da 1ª eliminatória e da meia final.
Novamente no Campo Grande de Lisboa os campeões da Associação de Futebol do Algarve deram uma nova lição de futebol, de bem jogar, claro está. A sua equipa homogénea e coesa voltou a encantar a multidão, que começava a ficar rendida ao futebol tecnicamente requintado da estrela maior olhanense, Raul Tamanqueiro. Gralho, em duas ocasiões, Belo, Cassiano, e Falcate foram os marcadores dos tentos dos algarvios, que avançavam assim para a grande final, a qual iria ter novamente lugar no anfiteatro do Campo Grande, fazendo com que desta forma a capital portuguesa recebesse pela primeira vez a decisão de um Campeonato de Portugal.
Olhanense confirma favoritismo no encontro final
E eis que chegavámos à célebre tarde de 8 de junho de 1924. O dia da grande final. Uma partida que teve a particularidade de ser presenciada pelo chefe de Estado, o mesmo é dizer o Presidente da República, na época Teixeira Gomes, um algarvio nascido em Portimão amante do desporto - na sua juventude chegou a ser atleta - que "inaugurava" então uma prática que viria a ser comum nas grandes finais do futebol português dos anos e décadas seguintes: a presença da mais alta individualidade da nação no jogo final.
Com as bancadas do Campo Grande bem compostas não foi de admirar que a esmagadora maioria dos adeptos (lisboetas) tomasse partido das cores algarvias, não só pelo encantador futebol que o emblema de Olhão havia praticado ao longo da caminhada até à final, mas sobretudo porque do outro lado estava o rival - para os clubes da capital - do norte, o todo poderoso FC Porto. Portistas que apesar de todo o seu poderio nem eram considerados favoritos a vencer esta final! Como já dissemos, o futebol olhanense maravilhou os críticos da modalidade, que a julgar pelo que haviam visto não tinham dúvidas de que na teoria a balança (da vitória) pendia para os futebolistas algarvios. Teoria que conformaria a prática, pese embora este tenha sido um triunfo de David sobre Golias, pois não podemos sequer comparar a dimensão - e consequente palmarés - que separava os dois clubes.
Arbitrada por Germano de Vasconcelos, de Braga, a final começou da melhor maneira para o "onze" algarvio, que por intermédio de Delfino Graça - outros dos virtuosos jogadores orientados pelo jogador/treinador Júlio Costa - inauguraria o marcador. Emoção e bom futebol de parte a parte foram ingredientes verificados desde o apito incial, e ao quarto de hora os portistas chegariam à igualdade por um dos seus grandes artistas da época, Norman Hall.
Nem dois minutos volvidos e o árbitro bracarense assinalava grande penalidade a favor do FC Porto, a qual seria convertida em golo por Tavares Bastos.
Contudo, estavamos ainda muito longe do términus do encontro, e muita água ainda havia de rolar debaixo da ponte, ou melhor, a magia dos jogadores de Olhão ainda estava por aparecer. Colocada em campo essa magia havia de dar frutos ainda antes do intervalo quando Raul Tamanqueiro converte uma grande penalidade e coloca novamente tudo em pé de igualdade. Este seria o único golo apontado por Tamanqueiro durante esta campanha vitoriosa, um tento que premiava a fenomenal performance ao longo de toda a prova da estrela de Olhão, que para não variar foi o melhor jogador em campo na final do Campo Grande.
E após o intervalo só deu Olhanense. A superioridade dos algarvios foi por demais evidente, controlando de fio a pavio o encontro. Com naturalidade surgiu o 3-2 (da autoria de Gralho, que desta forma se tornava no melhor marcador da equipa, com seis golos), e o 4-2 (por intermédio de Belo). E mais poderiam ter sido, não fosse a excelente exibição do guarda redes portista Borges Avelar.
Após o apito final de Germano de Vasconcelos a festa estalou, do relvado às bancadas a alegria era imensa, o Olhanense acabava de se sagrar campeão de Portugal, David tinha vencido Golias.
Depois do encontro o Presidente da República mandou chamar ao seu camarote todos os jogadores e os árbitros, a todos apertando a mão, ao mesmo tempo que os felicitava, em especial ao astro Raul Tamanqueiro, a quem dirigiu palavras particulares de felicitação.
A figura: Raul Tamanqueiro
Ele foi um dos primeiros génios do então jovem futebol lusitano. Virtuoso médio, com uma genialidade criativa e uma rapidez fora do comum (dizem que era capaz de fintar a própria sombra) ele foi a figura principal do título olhanense de 1924. Raul Soares Figueiredo, o seu nome de batismo, Tamanqueiro (a alcunha que derivava do facto do seu pai trabalhar o ofício de sapateiro) se imortalizou nos campos de futebol que pisou.
Nasceu em 22 de janeiro de 1903, em Lisboa, no bairro de Campo de Ourique. No entanto, seria em terras setubalenses que daria os primeiros pontapés na bola, chamando de imediato à atenção de diversas figuras ligadas ao futebol daquela época. Uma dessas figuras foi Cândido Ventura, mítico presidente do Olhanense, que não sossegou enquanto não levou aquela "pérola" para o seu clube. Fez a estreia pelo emblema de Olhão a 16 de agosto de 1922, diante do Lusitano de Vila Real de Santo António, num encontro a contar para a Taça Nossa Senhora dos Mártires, em Castro Marim. Diz quem o viu jogar que era um jogador versátil e bastante ágil, e que mesmo sendo de estatura baixa era um excelente cabeceador.
Num tempo em que o futebol não era profissional, pelo menos oficialmente, pois muitos dos jogadores da época recebiam, às escondidas, claro está, ordenados para defender as cores "desde" ou "daquele" clube, Raul Tamanqueiro ganhava a vida como vendedor de peixe nas ruas de Olhão. No Olhanense esteve durante quatro temporadas, e além do Campeonato de Portugal de 1924 venceu ainda dois campeonatos regionais do Algarve, em 23/24, e 25/26.
A sua inolvidável performance no Campeonato de Portugal de 1924 fizeram-no chegar à seleção nacional no ano seguinte, tendo vestido pela primeira vez a camisola das quinas a 17 de maio desse ano, num jogo realizado em Lisboa ante a Espanha (derrota por 0-2).
A sua condição de grande artista da bola em meados dos anos 20 fizeram o Benfica assegurar no verão desse ano de 1925 a sua contratação. Em Lisboa, Tamanqueiro esteve três temporadas, recebendo secretamente dinheiro para jogar, ao mesmo tempo em que era... taxista. E seria no final da terceira temporada - 1927/28 - ao serviço do clube lisboeta que Raul Tamanqueiro iria viver um dos momentos mais importantes e marcantes da sua carreira. O selecionador nacional da altura, o mestre Cândido de Oliveira, chamou-o para representar Portugal no torneio mais importante do Mundo da época, os Jogos Olímpicos. Em Amesterdão, ao lado de lendas como Pepe, Jorge Vieira, Carlos Alves, Vítor Silva, Valdemar Mota, ou António Roquete, seria um dos responsáveis pela magnífica campanha lusitana, que terminou de forma inglória nos quartos de final aos pés do Egito.
Tamanqueiro vestiu por 17 ocasiões a camisola da seleção portuguesa, fazendo-o pela última vez a 23 de fevereiro no Porto, numa vitória (2-0) diante da França.
As saudades do Algarve fizeram-no nesse memorável ano de 1928 voltar para o Olhanense, clube onde jogaria até 1933. Pelo meio ainda deu um salto a Espanha, a Huelva mais precisamente, onde atuou como jogador/treinador do Recreativo. Pendurou as chuteiras em 1933/34, época em que se mudou para o Porto, onde viria a representar o Académico. Depois disso ainda foi treinador de Braga, e de União de Coimbra.
Morreu prematuramente aos 38 anos, de doença incurável, dizem.
O seu filho, Raul Figueiredo, seguiu-lhe as pisadas, chegando a internacional quando defendia as cores do Belenenses, facto que fez com que estes dois homens fossem os primeiros pai e filho a representar a seleção nacional de futebol.
Nomes e números do Campeonato de Portugal de 1923/24:
1ª eliminatória
Vianense - Braga: 2-0
FC Porto - Académica: 3-2
União Portalegrense - Sporting de Tomar: 0-9
Olhanense - Vitória Setúbal: 1-0
Meias finais
Olhanense - Sporting de Tomar: 6-0
Vianense - FC Porto: 1-3
Play-off de apuramento para a final
Olhanense - Marítimo: 5-1
Final
Olhanense - FC Porto: 4-2
Data: 8 de junho de 1924
Estádio: Campo Grande, em Lisboa
Árbitro: Germano de Vasconcelos (Braga)
Olhanense: Carlos Martins; Américo Martins e Falcate; Fausto Peres, Raul Tamanqueiro e Francisco Montenegro; Cassiano, Belo, José Gralho, Delfino Graça e Júlio Costa. Treinador: Júlio Costa
FC Porto: Borges Avelar; Álvaro Coelho e Tavares Bastos; Coelho da Costa, Velez Carneiro e Floreano Pereira; Alexandre Cal, Augusto Freire, Norman Hall, Augusto Ferreira “Simplício” e João Nunes. Treinador: Akos Tezler
Golos: 1-0 (Delfino Graça, aos 3m), 1-1 (Hall, aos 15m), 1-2 (Tavares Bastos, aos 17m), 2-2 (Tamanqueiro, aos 40m), 3-2 (Gralho, aos 67m), 4-2 (Belo, aos 85m)
Legenda das fotografias:
1-Equipa do Olhanense, campeã de Portugal em 1924
2-José Belo em ação, um dos artistas de Olhão
3-Tamanqueiro a cabecear o esférico
4-Noram Hall, um dos grandes jogadores do FC Porto da década de 20
5-A estrela Raul Tamanqueiro
6-A equipa do Sporting de Tomar, que alcançou o resultado mais expressivo da época de 1923/24
E o primeiro David do futebol lusitano veio do Algarve, mais precisamente da cidade de Olhão, o berço do popular Olhanense, que nessa longínqua primavera de 24 alcançou o maior feito dos seus 100 anos de vida - festejados precisamente neste ano de 2012 -, o título de campeão de Portugal.
Na edição de 1923/24 do Campeonato de Portugal ficou bem patente a descentralização do futebol português, isto é, mais associações - Porto e Lisboa eram as associações de maior peso - envolveram-se na luta pela conquista do ceptro futebolístico de maior prestígio do país. Entre as associações que faziam a sua estreia estavam as de Santarém, Portalegre, e Viana do Castelo, cujos campeões regionais, respetivamente, Sporting de Tomar, União Portalegrense, e Vianense, se juntavam aos campeões do Porto (FC Porto), Lisboa (Vitória de Setúbal), Coimbra (Académica), Algarve (Olhanense), Funchal (Marítimo), e Braga (Sporting de Braga). Favorito a alcançar a glória? Talvez o FC Porto, poderoso emblema nortenho, recheado de algumas das maiores vedetas do futebol lusitano da época, casos de Tavares Bastos, Norman Hall, Velez Carneiro, Alexandre Cal, entre outros, que dois anos antes haviam ajudado o clube da Cidade Invicta a inaugurar a lista de campeões da jovem competição nacional.
E os portistas confirmariam logo na 1ª eliminatória o teórico favoritismo que sobre si recaía. No tarde de 18 de maio de 1924 o Campo da Constituição, no Porto, encheu-se para presenciar a vitória curta mas justa dos azuis e brancos sobre os estudantes da Académica de Coimbra, por 3-2. Noram Hall e Floreano Ferreira - este último por duas ocasiões - foram os heróis dessa tarde, ao apontar os golos da equipa do norte, que não ganhou para o susto a meio do duelo, altura em que um auto golo de José Mota colocou os academistas a vencer por 2-1. Contudo, o talento dos portistas acabaria por vir ao cima nos instantes finais.
Mais a norte, em Viana do Castelo, houve dérbi minhoto, entre o Vianense e o Braga. Gama seria a grande figura da tarde, já que da sua autoria seriam os dois únicos golos de um encontro que seria ganho pelos vianenses.
O resultado mais desnivelado desta eliminatória inicial seria protagonizado entre duas equipas estreantes. O Sporting de Tomar esmagava em Portalegre o União local por 9-0!
E no derradeiro duelo desta ronda inicial assistiu-se ao início da caminhada triunfal do campeão do Algarve, o Olhanense, neste Campeonato de Portugal de 1923/24. Reunindo um naipe de talentosos jogadores, onde se destacava - claramente - o centro campista Raul Tamanqueiro, os jogadores de Olhão venceram no seu Campo da Padinha o Vitória de Setúbal, o surpreendente campeão de Lisboa - deixando pelo caminho os gigantes do futebol lisboeta Sporting, Benfica e Belenenses -, por 1-0, graças a um tento do capitão Júlio Costa.
Lisboa rendida a Olhão
De forma estranha a União Portuguesa de Futebol decidiu que o embate das meias finais entre Olhanense e Sporting de Tomar haveria de ser disputado em Lisboa, e não na localidade de origem das duas equipas em questão! Tal decisão parece não ter afetado os rapazes de Olhão, que numa autêntica tarde de glória despachariam os seus homólogos de Tomar por expressivos 6-0 (!), deixando rendido ao seu futebol o muito público lisboeta que se deslocou ao Campo Grande para assistir à partida. Belo e Gralho, com três golos cada um na sua conta pessoal, foram os responsáveis da robusta vitória algarvia.
E em Viana do Castelo o FC Porto não ganhou - novamente - para o susto. José Barbosa fez explodir de alegria o Campo de Monserrate, quando colocou o Sport Clube Vianense em vantagem num jogo arbitrado pelo mestre Cândido de Oliveira, que na altura representava, enquanto jogador as cores do Casa Pia. Augusto Freire, verdadeiramente endiabrado, tratou de remar contra a maré, e por duas ocasiões bateu o guardião local Ramiro Pinto, dando assim a volta a um marcador que ficaria selado com o último golo portista, da autoria do luso-inglês Norman Hall.
Marítimo impotente para travar avalanche olhanense
Por caprichos do sorteio o Futebol Clube do Porto apurou-se automaticamente para a final do campeonato após o suado triunfo de Viana do Castelo, sendo que a outra vaga iria ser disputada numa espécie de play-off entre o Olhanense e o campeão da Madeira, o Marítimo, que ficara isento da 1ª eliminatória e da meia final.
Novamente no Campo Grande de Lisboa os campeões da Associação de Futebol do Algarve deram uma nova lição de futebol, de bem jogar, claro está. A sua equipa homogénea e coesa voltou a encantar a multidão, que começava a ficar rendida ao futebol tecnicamente requintado da estrela maior olhanense, Raul Tamanqueiro. Gralho, em duas ocasiões, Belo, Cassiano, e Falcate foram os marcadores dos tentos dos algarvios, que avançavam assim para a grande final, a qual iria ter novamente lugar no anfiteatro do Campo Grande, fazendo com que desta forma a capital portuguesa recebesse pela primeira vez a decisão de um Campeonato de Portugal.
Olhanense confirma favoritismo no encontro final
E eis que chegavámos à célebre tarde de 8 de junho de 1924. O dia da grande final. Uma partida que teve a particularidade de ser presenciada pelo chefe de Estado, o mesmo é dizer o Presidente da República, na época Teixeira Gomes, um algarvio nascido em Portimão amante do desporto - na sua juventude chegou a ser atleta - que "inaugurava" então uma prática que viria a ser comum nas grandes finais do futebol português dos anos e décadas seguintes: a presença da mais alta individualidade da nação no jogo final.
Com as bancadas do Campo Grande bem compostas não foi de admirar que a esmagadora maioria dos adeptos (lisboetas) tomasse partido das cores algarvias, não só pelo encantador futebol que o emblema de Olhão havia praticado ao longo da caminhada até à final, mas sobretudo porque do outro lado estava o rival - para os clubes da capital - do norte, o todo poderoso FC Porto. Portistas que apesar de todo o seu poderio nem eram considerados favoritos a vencer esta final! Como já dissemos, o futebol olhanense maravilhou os críticos da modalidade, que a julgar pelo que haviam visto não tinham dúvidas de que na teoria a balança (da vitória) pendia para os futebolistas algarvios. Teoria que conformaria a prática, pese embora este tenha sido um triunfo de David sobre Golias, pois não podemos sequer comparar a dimensão - e consequente palmarés - que separava os dois clubes.
Arbitrada por Germano de Vasconcelos, de Braga, a final começou da melhor maneira para o "onze" algarvio, que por intermédio de Delfino Graça - outros dos virtuosos jogadores orientados pelo jogador/treinador Júlio Costa - inauguraria o marcador. Emoção e bom futebol de parte a parte foram ingredientes verificados desde o apito incial, e ao quarto de hora os portistas chegariam à igualdade por um dos seus grandes artistas da época, Norman Hall.
Nem dois minutos volvidos e o árbitro bracarense assinalava grande penalidade a favor do FC Porto, a qual seria convertida em golo por Tavares Bastos.
Contudo, estavamos ainda muito longe do términus do encontro, e muita água ainda havia de rolar debaixo da ponte, ou melhor, a magia dos jogadores de Olhão ainda estava por aparecer. Colocada em campo essa magia havia de dar frutos ainda antes do intervalo quando Raul Tamanqueiro converte uma grande penalidade e coloca novamente tudo em pé de igualdade. Este seria o único golo apontado por Tamanqueiro durante esta campanha vitoriosa, um tento que premiava a fenomenal performance ao longo de toda a prova da estrela de Olhão, que para não variar foi o melhor jogador em campo na final do Campo Grande.
E após o intervalo só deu Olhanense. A superioridade dos algarvios foi por demais evidente, controlando de fio a pavio o encontro. Com naturalidade surgiu o 3-2 (da autoria de Gralho, que desta forma se tornava no melhor marcador da equipa, com seis golos), e o 4-2 (por intermédio de Belo). E mais poderiam ter sido, não fosse a excelente exibição do guarda redes portista Borges Avelar.
Após o apito final de Germano de Vasconcelos a festa estalou, do relvado às bancadas a alegria era imensa, o Olhanense acabava de se sagrar campeão de Portugal, David tinha vencido Golias.
Depois do encontro o Presidente da República mandou chamar ao seu camarote todos os jogadores e os árbitros, a todos apertando a mão, ao mesmo tempo que os felicitava, em especial ao astro Raul Tamanqueiro, a quem dirigiu palavras particulares de felicitação.
A figura: Raul Tamanqueiro
Ele foi um dos primeiros génios do então jovem futebol lusitano. Virtuoso médio, com uma genialidade criativa e uma rapidez fora do comum (dizem que era capaz de fintar a própria sombra) ele foi a figura principal do título olhanense de 1924. Raul Soares Figueiredo, o seu nome de batismo, Tamanqueiro (a alcunha que derivava do facto do seu pai trabalhar o ofício de sapateiro) se imortalizou nos campos de futebol que pisou.
Nasceu em 22 de janeiro de 1903, em Lisboa, no bairro de Campo de Ourique. No entanto, seria em terras setubalenses que daria os primeiros pontapés na bola, chamando de imediato à atenção de diversas figuras ligadas ao futebol daquela época. Uma dessas figuras foi Cândido Ventura, mítico presidente do Olhanense, que não sossegou enquanto não levou aquela "pérola" para o seu clube. Fez a estreia pelo emblema de Olhão a 16 de agosto de 1922, diante do Lusitano de Vila Real de Santo António, num encontro a contar para a Taça Nossa Senhora dos Mártires, em Castro Marim. Diz quem o viu jogar que era um jogador versátil e bastante ágil, e que mesmo sendo de estatura baixa era um excelente cabeceador.
Num tempo em que o futebol não era profissional, pelo menos oficialmente, pois muitos dos jogadores da época recebiam, às escondidas, claro está, ordenados para defender as cores "desde" ou "daquele" clube, Raul Tamanqueiro ganhava a vida como vendedor de peixe nas ruas de Olhão. No Olhanense esteve durante quatro temporadas, e além do Campeonato de Portugal de 1924 venceu ainda dois campeonatos regionais do Algarve, em 23/24, e 25/26.
A sua inolvidável performance no Campeonato de Portugal de 1924 fizeram-no chegar à seleção nacional no ano seguinte, tendo vestido pela primeira vez a camisola das quinas a 17 de maio desse ano, num jogo realizado em Lisboa ante a Espanha (derrota por 0-2).
A sua condição de grande artista da bola em meados dos anos 20 fizeram o Benfica assegurar no verão desse ano de 1925 a sua contratação. Em Lisboa, Tamanqueiro esteve três temporadas, recebendo secretamente dinheiro para jogar, ao mesmo tempo em que era... taxista. E seria no final da terceira temporada - 1927/28 - ao serviço do clube lisboeta que Raul Tamanqueiro iria viver um dos momentos mais importantes e marcantes da sua carreira. O selecionador nacional da altura, o mestre Cândido de Oliveira, chamou-o para representar Portugal no torneio mais importante do Mundo da época, os Jogos Olímpicos. Em Amesterdão, ao lado de lendas como Pepe, Jorge Vieira, Carlos Alves, Vítor Silva, Valdemar Mota, ou António Roquete, seria um dos responsáveis pela magnífica campanha lusitana, que terminou de forma inglória nos quartos de final aos pés do Egito.
Tamanqueiro vestiu por 17 ocasiões a camisola da seleção portuguesa, fazendo-o pela última vez a 23 de fevereiro no Porto, numa vitória (2-0) diante da França.
As saudades do Algarve fizeram-no nesse memorável ano de 1928 voltar para o Olhanense, clube onde jogaria até 1933. Pelo meio ainda deu um salto a Espanha, a Huelva mais precisamente, onde atuou como jogador/treinador do Recreativo. Pendurou as chuteiras em 1933/34, época em que se mudou para o Porto, onde viria a representar o Académico. Depois disso ainda foi treinador de Braga, e de União de Coimbra.
Morreu prematuramente aos 38 anos, de doença incurável, dizem.
O seu filho, Raul Figueiredo, seguiu-lhe as pisadas, chegando a internacional quando defendia as cores do Belenenses, facto que fez com que estes dois homens fossem os primeiros pai e filho a representar a seleção nacional de futebol.
Nomes e números do Campeonato de Portugal de 1923/24:
1ª eliminatória
Vianense - Braga: 2-0
FC Porto - Académica: 3-2
União Portalegrense - Sporting de Tomar: 0-9
Olhanense - Vitória Setúbal: 1-0
Meias finais
Olhanense - Sporting de Tomar: 6-0
Vianense - FC Porto: 1-3
Play-off de apuramento para a final
Olhanense - Marítimo: 5-1
Final
Olhanense - FC Porto: 4-2
Data: 8 de junho de 1924
Estádio: Campo Grande, em Lisboa
Árbitro: Germano de Vasconcelos (Braga)
Olhanense: Carlos Martins; Américo Martins e Falcate; Fausto Peres, Raul Tamanqueiro e Francisco Montenegro; Cassiano, Belo, José Gralho, Delfino Graça e Júlio Costa. Treinador: Júlio Costa
FC Porto: Borges Avelar; Álvaro Coelho e Tavares Bastos; Coelho da Costa, Velez Carneiro e Floreano Pereira; Alexandre Cal, Augusto Freire, Norman Hall, Augusto Ferreira “Simplício” e João Nunes. Treinador: Akos Tezler
Golos: 1-0 (Delfino Graça, aos 3m), 1-1 (Hall, aos 15m), 1-2 (Tavares Bastos, aos 17m), 2-2 (Tamanqueiro, aos 40m), 3-2 (Gralho, aos 67m), 4-2 (Belo, aos 85m)
Legenda das fotografias:
1-Equipa do Olhanense, campeã de Portugal em 1924
2-José Belo em ação, um dos artistas de Olhão
3-Tamanqueiro a cabecear o esférico
4-Noram Hall, um dos grandes jogadores do FC Porto da década de 20
5-A estrela Raul Tamanqueiro
6-A equipa do Sporting de Tomar, que alcançou o resultado mais expressivo da época de 1923/24
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