quinta-feira, novembro 29, 2012

Catedrais Históricas (12)... Campo de Pocitos

Se hoje existisse seria sem margem para dúvidas um local sagrado para os devotos do belo jogo. Porém, não passa de um fantasma, de uma longínqua e eterna recordação. Viajamos até Montevideo, capital do Uruguai, um dos poucos locais à face da terra onde se encontram guardadas algumas das mais valiosas relíquias da era  romântica do futebol. Uma dessas relíquias é o Campo de Pocitos, ou melhor, era, já que hoje o local onde outrora foi erguido o mítico anfiteatro desportivo não é mais do que uma nobre e tranquila zona residencial da principal cidade uruguaia. E porque é que Pocitos é - ou foi - um local sagrado? Porque no seu elegante tapete verde marcou-se o PRIMEIRO GOLO DA HISTÓRIA DOS CAMPEONATOS DO MUNDO. Corria o ano de 1930, ano que o sonho de Jules Rimet (na época presidente da FIFA) era tornado realidade: nascia o Mundial de futebol. Histórico e inolvidável momento já por diversas ocasiões admirado nos corredores virtuais deste museu, e também já evocado noutras viagens ao passado o homem que se tornou imortal depois de apontar o primeiro golo desse histórico Campeonato do Mundo, ou melhor, o primeiro golo da história dos Mundiais, Lucien Laurent, de seu nome.
Laurent e Pocitos são duas lendas que já não se encontram no mundo dos vivos, o primeiro - cuja figura é guardada reliogiosamente no Museu Virtual de Futebol na vitrina destinada às estrelas cintilantes - deixou-nos em 2005 ao passo que o desparecimento do segundo é bem mais antigo, remontando a 1940 o ato da sua demolição.
Teve uma vida curta, apenas 19 anos de vida, mas os suficientes para ter o privilégio de ser palco de alguns dos mais célebres bailados futebolísticos nacionais e internacionais, algo que muitos templos centenários da bola nunca vivenciaram.
O Campo de Pocitos, assim se chamava, por se localizar no bairro de Pocitos, foi inaugurado a 6 de novembro de 1921, e logo com um embate bélico entre dois dos mais poderosos exércitos sul americanos da época, Peñarol (do Uruguai) e River Plate (da Argentina), que nesse dia festivo empataram a uma bola perante os olhares de 15 000 espetadores.
Pocitos foi desde esse dia até 1933 a casa do Peñarol, ano em que o popular emblema de Montevideo se mudou para o gigante (estádio) Centenário. A história destes dois recintos cruza-se três anos antes, em 1930, altura em que a FIFA deu ao Uruguai o privilégio de sediar o primeiro Campeonato do Mundo da história. Privilégio que foi concedido um pouco em cima da hora, isto é, em 1929, pelo que os uruguaios tiveram de deitar de imediato mãos à obra para erguer um estádio capaz de receber uma competição que desde a sua génese se afigurava tão majestosa. Foi então idealizado o Centenário, estádio previamente batizado - ainda antes de ver oficialmente a luz do dia - pelo facto de naquele ano de 1930 se assinalar precisamente o centenário da independência do pequeno Uruguai.
Erguer o Estádio Centenário foi uma autêntica luta contra o relógio. Milhares de trabalhadores laboraram noite e dia para que o anfiteatro estivesse pronto a tempo do início do Mundial. Não o conseguiram, por muito pouco, é certo, muito por culpa do chuvoso outono de 1929, que obrigou a que os trabalhos de construção fossem parados. Percebendo que a sua jóia não estaria concluida no dia em que seria dado o pontapé de saída do certame global a organização viu-se na necessidade de recorrer a dois outros estádios da capital uruguaia para realizar os primeiros encontros da Copa de 30. Eram eles o Parque Central (onde jogava o clube que a par do Peñarol divide o coração do povo de Montevideo, o Nacional), e o Campo de Pocitos.
E no dia 13 de julho de 1930 é oficialmente aberto o 1º Campeonato do Mundo, jogando-se à mesma hora (15h00) no Parque Central o Estados Unidos da América - Bélgica (a contar para o Grupo 4) e em Pocitos o França - México (do Grupo 1). Reza a lenda que em Pocitos estiveram pouco mais de 1000 pessoas a assistir ao duelo entre franceses e mexicanos, duelo que haveria de ter contornos históricos, já que daqui resultou então o primeiro golo de um Campeonato do Mundo. Corria o minuto 19 quando um cruzamento de Ernest Liberati foi aproveitado da melhor maneira por Lucien Laurent para fazer balançar as redes pela primeira vez naqueles primeiros minutos de vida do Campeonato do Mundo. No final 4-1 para a França. As luzes da ribalta viraram-se para Pocitos uma vez mais nesse épico Mundial, quando no dia 14 de julho a Roménia ali venceu o Perú por 3-1, em partida do Grupo 3. Depois disso o deslumbrante Centenário viu finalmente a luz do dia com a ocorrência do encontro entre Uruguai e Perú (1-0 para a equipa da casa), disputado no dia 18, tendo a partir de então o novo estádio relegado para segundo plano Pocitos e Parque Central, que até final da Copa de 30 não mais iriam ver os seus relvados ser pisados pelas estrelas do futebol de então.
Ponto final do Mundial de 1930 e a cidade de Montevideo começou a crescer e Pocitos foi engolido por ruas e casas que o fizeram desaparecer em difinitivo em 1940. Largas artérias e zonas residenciais da classe média-alta da capital uruguaia tomaram o lugar do célebre estádio. Durante anos o Campo de Pocitos foi esquecido, ou melhor, a sua história foi esquecida, pois para os que nasceram na segunda metade do século XX era inimaginável que no bairro de Pocitos, agora povoado por vivendas e ruas, tivesse sido escrita uma das páginas mais importantes da história do futebol internacional. Só nos inícios do século XXI, mais concretamente entre 2002 e 2006, o arquiteto Héctor Enrique Benech colocou mãos à obra na tentativa de descobrir o local exato onde havia sido marcado o tal golo de Lucien Laurent. Registos documentais praticamente não existiam (!), a não ser uma rara fotografia aérea do recinto datada de 1926, insuficiente, no entanto, para se (re)descobrir os local onde o francês havia feito o primeiro golo da história dos Mundiais.
Foi então feito um apelo nacional. Procurava-se alguém que tivesse assistido ao Mundial de 30 e que mais do que isso tivesse presenciado um dos jogos inaugurais do certame, neste caso o França - México, jogado em Pocitos. Uma tarefa árdua, pois não podemos esquecer que este apelo foi lançado em pleno século XXI, mais de 70 anos depois da ocorrência da Copa de 30, pelo que encontrar alguém vivo e de boa saúde era como encontrar uma agulha num palheiro. Mas por vezes o impossível torna-se possível, e um homem na casa dos 80 e muitos anos apareceu com uma verdadeira relíquia na mão: uma fotografia do célebre jogo França - México, onde aparecia a baliza... em que Laurent tinha feito o primeiro golo. Investigadores descobriram então o preciso local onde não só aconteceu esse momento histórico, como também o local onde estava desenhado o circulo central do relvado (!), um verdadeiro tesouro arqueológico, que hoje não é mais do que a esquina da Calle Charrua com a Calle Coronel Alegre, bem em frente a uma vulgar lavandaria (!), local onde foi erguida uma pequena escultura que eterniza o sagrado local. Uns metros mais à frente, encontramos uma outra estrutura metálica, esquesita à primeira vista, mas que depois de muito observada leva-nos à imagem de... um poste e parte da barra de uma baliza!!! Pois é, naquele preciso local estava a baliza onde Laurent fez o... tal golo.

Legenda das fotografias:
1-Uma imagem rara do Campo de Pocitos
2-A escultura situada na esquina das ruas Charrua e Coronel Alegre (em frente a uma lavandaria) onde se localizava o centro do terreno do desaparecido estádio
3-E a escultura que faz referência ao local exato onde estava erguida a baliza em que foi marcado o primeiro golo dos Mundiais. Nela podemos ver inscrita a seguinte frase: «Aqui foi feito o primeiro golo da história dos Campeonatos dos Mundo»

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