sexta-feira, outubro 12, 2012

Histórias do Futebol em Portugal (8)... O primeiro rugido do leão!

O sucesso angariado pela 1ª edição do Campeonato de Portugal (21/22) fez com que na temporada seguinte o certame fosse desejado por mais associações regionais, as quais pretendiam ver os seus respetivos campeões lutar pela coroa de rei do futebol português. E em 1922/23 foram 6 as associações inscritas no Campeonato de Portugal dessa temporada, nomeadamente as do Porto, Lisboa, Braga, Coimbra, Funchal, e Algarve. Recorde-se que na edição de estreia da competição apenas Lisboa e Porto aceitaram o desafio da União Portuguesa de Futebol (UPF) para dar o pontapé de saída no Campeonato de Portugal, o qual viria a ser arrecadado pelo FC Porto... à custa de um Sporting que em 22/23 viria a conhecer o seu primeiro momento de glória nesta prova. Mas já lá vamos.
Contrariamente ao sucedido em 21/22, em que apenas foi disputada a final entre os campeões regionais de Lisboa e Porto, respetivamente, Sporting e FC Porto, o Campeonato de Portugal de 22/23 conheceu pela primeira vez na sua então curta história de vida algumas eliminatórias antes do desafio final, devido, claro está, ao aumento do número de participantes. Coincidências ou não o que é certo é que os dois finalistas da temporada anterior, e principais favoritos à conquista do ceptro, foram poupados às eliminatórias iniciais!
Sporting de Braga e Académica de Coimbra, respetivamente os campeões das associações de Braga e de Coimbra, mediram forças no Campo do Bessa, no Porto, a 3 de junho de 1923, em jogo alusivo à 1ª eliminatória, tendo os estudantes levado a melhor sobre os seus oponentes, conforme comprova o resultado de 2-1 a seu favor.
Triunfo que permitiu à Académica subir mais um degrau na competição, enquanto que os bracarenses diziam adeus ao sonho de vencer o título. Na ronda seguinte os campeões de Coimbra enfrentaram os campeões do Algarve, o Lusitano de Vila Real de Santo António, um duelo que iria definir o quarto e último semi-finalista da competição, fase onde por isenção já estavam classificados FC Porto, Marítimo, e Sporting. E novamente pela margem mínima - desta feita por 3-2 - os academistas voltariam a fazer mais uma vez a festa, desta vez no Campo Grande, em Lisboa, já que por decisão da UPF todas as eliminatórias da 2ª edição do Campeonato de Portugal - incluindo a final - seriam discutidas num único jogo, realizado em campo neutro. E chegavamos assim às meias-finais, já com os peso pesados do futebol lusitano em ação.

Casapiano Cândido de Oliveira torna-se leão na final antecipada

Fase essa onde os caprichos do sorteio ditaram um confronto entre os dois finalistas da temporada anterior, FC Porto e Sporting, duelo que desde logo seria rotulado como a final antecipada da competição. Coimbra seria então o palco escolhido para acolher o desafio marcado para o dia 17 de junho desse longínquo ano de 1923. As equipas foram recebidas em ambiente de festa, ou não estivessem numa localidade que vivia - e vive - permanentemente numa atmosfera festiva, graças aos rituais estudantis que dão um colorido diferente à bela cidade beijada pelo (rio) Mondego.
Sob os comandos técnicos do engenheiro luso-alemão Augusto Sabbo o Sporting chegava a esta meia final empolgado com a recente vitória obtida no Campeonato Regional de Lisboa sobre o Casa Pia, por 2-0. Pintada em tons de verde e azul Coimbra foi invadida por largas centenas de adeptos das duas equipas, que lotavam as ruas e cafés da cidade nas horas que antecederam o esperado duelo. Leões que para esta meia final receberam o apoio de alguém que naquela época era já uma pessoa muito especial no futebol português, nada mais nada menos do que Cândido de Oliveira, um dos grandes - senão mesmo o principal - impulsionadores da modalidade em solo lusitano, e que na altura desempenhava as funções de capitão do Casa Pia, o emblema derrotado pelo Sporting na final do Campeonato de Lisboa. Cândido de Oliveira demonstrou não só todo o seu apoio aos vizinhos lisboetas rumo à conquista do Campeonato de Portugal de 1923, como também se disponibilizou para servir de massagista aos jogadores leoninos na meia final diante do campeão da Associação de Futebol do Porto. Solidariedade de vizinhos, por certo! Massajados por Cândido os sportinguistas entraram no Campo dos Bentos dispostos a vingar a derrota da época anterior, e cedo deram mostras disso, na sequência de inúmeras incursões à baliza do portista Lino Moreira. Encostados às cordas os jogadores do FC Porto pouco mais faziam do que ver o seu adversário interpretar de forma magistral o jogo, acabando o minuto 23 por trazer justiça ao que vinha acontecendo no campo de batalha, altura em que João Francisco colocou os leões na frente. Na 2ª parte houve mais do mesmo, o Sporting continuou a dominar o inofensivo rival do norte, e coroando uma exibição soberba o capitão leonino, Francisco Stromp, marcou por duas vezes (aos minutos 56 e 72) e selou o resultado final em 3-0. Score expressivo que até poderia ter sido maior, segundo rezam as crónicas da época, uma vez que o árbitro do encontro, o inglês Rudolf Todd, poupou os portistas de uma humilhação bem maior, ao invalidar dois golos limpos aos sportinguistas por alegados fora de jogo, e perdoando duas grandes penalidades aos campeões da Invicta, sendo que numa delas chamou mesmo o capitão azul e branco, Alexandre Call, aconselhando-o a dizer aos seus companheiros que não cometessem... mais grandes penalidades. Ribeiro dos Reis, outro nome grande do futebol português, que esteve presente no encontro de Coimbra na qualidade de representante da UPF, confessou que ouviu posteriormente o árbitro dizer que perdoou duas grandes penalidades nítidas contra o FC Porto, castigos esses que não havia assinalado porque... era mais bonito ganhar assim!
Na outra meia final a Académica continuava a sua marcha triunfal na prova, e de novo em Lisboa, nesta ocasião no Campo da Palhavã, derrotou o Marítimo por 2-1, graças a dois remates vitoriosos de José Afonso e José Neto.

Viagem caricata termina com o título de campeão em dia de S. João

Sporting e Académica, os guerreiros que iriam lutar entre si pelo título de campeão de Portugal, cuja grande final seria agendada para Faro, localidade situada bem no sul do país... e de difícil alcance! Eram evidentes as lacunas ao nível das vias de comunicação que Portugal possuía por aqueles dias, e chegar desde os grandes centros urbanos situados no litoral até locais como Faro era o "cabo dos trabalhos", uma verdadeira aventura, como comprovam as viagens efetuadas pelas comitivas da Académica e do Sporting. A deslocação dos leões demorou 12 horas!!! Uma eternidade, de facto. Em crónica da época Júlio de Araújo conta os detalhes da caricata e longa viagem do Sporting desde Lisboa até Faro. «No barreiro tomamos a zorra (comboio) do Algarve, que se permite o luxo de carruagens de 1ª classe, sem luz e com insectos vários, cuja presença nos esperta de quando em vez para não esmorecer a cavaqueira. A União (Portuguesa de Futebol), numa possível boa intenção, marcou lugares à razão de 1$80, marcação que um amável revisor informou não ter importância de maior, quando outros sem terem pago os tais 1$80 se apossam dos lugares. A nossa carruagem foi finalmente invadida pelos malteses (adeptos), que de armas, bagagens, cestos e cestinhos sem instalaram tão comodamente, que receámos a morte por asfixia, cheiro a próximo e a queijos quem um deles transportava num cesto». Aventuras e desventuras vividas ao longo de 12 horas, como já foi dito, acabando - por fim - a comitiva leonina por chegar a Faro ao som de morteiros e foguetes - era dia de S. João - com 4 horas de atraso. A comitiva da Académica viveu situação idêntica, acabando por chegar à capital do Algarve quando faltavam apenas 6 horas para o início da grande final. Isto porque era dia de S. João, e foliões como eram, os jogadores estudantes da Académica aproveitavam as longas paragens do comboio nas estações para dar um pézinho de dança nos bailes que "aqui e ali" se desenrolavam! Folia academista que se resumiu apenas aos bailaricos, pois no campo de batalha, isto é, no retângulo de jogo, quem dançou e fez a festa foram os jogadores do Sporting. Sob a arbitragem do farense Eduardo Vieira os sportinguistas venceram com relativa facilidade uma Académica que mesmo tendo dado uma boa réplica não teve armas suficientes para contrariar a supremacia da equipa lisboeta, a qual com 25 minutos de jogo vencia já por 2-0. O primeiro tento surgiu aos 12 minutos, por intermédio do capitão Francisco Stromp, num pontapé forte após passe de Carlos Fernandes. Isto, depois do guarda redes academista, João Ferreira, ter efetuado um bom naipe de espantosas defesas que evitaram que o marcador tivesse sido inaugurado mais cedo. Seis minutos volvidos, na conversão de uma grande penalidade, Joaquim Ferreira faria o 2-0 com que se atingiu o intervalo. Antes da saída para o descanso os leões viram o azar bater-lhes à porta, quando à passagem da meia hora Francisco Stromp abandonou forçosamente o recinto de jogo devido a uma lesão. Na segunda etapa o encontro arrefeceu, poucas ocasiões dignas de sublinhado foram registadas, sendo a exceção o terceiro golo do Sporting, da autoria de Carlos Fernandes, quando estavam decorridos 53 minutos, e de novo na sequência de uma grande penalidade. 3-0, resultado final de uma partida dominada por completo por um enorme Sporting, que até podia ter saído de Faro com uma vitória mais gorda, não fosse a tarde de desatino de Jaime Gonçalves, que desperdiçaria uma série de golos... feitos. Mas pouco interessava, o Sporting havia vencido, e desta forma conquistado o seu primeiro título de campeão de Portugal, o primeiro título nacional conquistado pelos leões, que até então registavam no seu palmarés 4 títulos de campeões regionais de Lisboa.
Naturalmente que depois do jogo houve festa. O jantar juntaria as comitivas das dois clubes finalistas, num espírito de salutar convívio e camaradagem. Os leões ofereceriam uma taça de champanhe aos atletas vencidos, e na resposta o capitão da Académica, Ribeiro da Costa, faria um brinde aos novos campeões de Portugal, felicitando-os pelo triunfo, lembrando depois que o seu clube não se dedicava única e exclusivamente à prática do desporto, apontando a leitura e a adoração ao Deus Baco eram as prioridades dos estudantes de Coimbra! Francisco Stromp agradeceu e em seguida abriu uma sessão de desgarrada que se iria prolongar pela noite dentro.

A figura: Jorge Vieira

É profundamente discutível opinar sobre quem terá sido a grande figura do primeiro título nacional obtido pelo Sporting. Os leões possuíam no seu grupo atletas de notável qualidade, casos do guarda-redes Cipriano dos Santos, Joaquim Ferreira, Portela, João Francisco, Jorge Vieira, ou o lendário capitão Francisco Stromp, jogadores que formavam um grupo muito forte e coeso, como se verificou no trajeto vitorioso leonino neste Campeonato de Portugal de 22/23. O grupo foi mesmo a chave do sucesso, podemos dizer. Mas dentro deste grupo existia quanto a nós um homem que se impunha não só pela sua habilidade na condução do esférico mas sobretudo pelo carisma, e pela forma com que cedo se implantou na equipa principal do Sporting. Falamos de Jorge Vieira, o defesa esquerdo daquele célebre grupo, uma figura nascida em Lisboa nos finais do século XIX (1898) e que aos 16 anos era já titular absoluto da primeira equipa dos leões! O amor pelo Sporting teve início bem cedo, quando aos 9 anos de idade, e pela mão do seu irmão, se deslocou a pé desde Dafundo (zona de Lisboa onde vivia) até ao Campo da Quinta Nova para assistir a um pomposo Sporting - Sport Lisboa (um dos clubes que mais tarde daria origem ao Sport Lisboa e Benfica).
Em 1911 Jorge Vieira vestiu pela primeira vez a camisola do seu amado clube, num encontro de terceiras categorias. O estalar da I Guerra Mundial abriu-lhe as portas da primeira equipa, quando foi chamado a substituir o titular do lugar de defesa esquerdo, o inglês Sander, um engenheiro de telecomunicações que foi forçado a abandonar o Sporting para integrar o exercito do seu país no citado conflito bélico. Com apenas 16 anos Jorge Vieira agarrou o lugar, não mais o largando nos 17 anos seguintes! Fez a sua estreia na primeira equipa a 28 de março de 1915, e logo com uma prova de fogo pela frente, já que nesse dia o Sporting enfrentava o Benfica para a decisão final do Campeonato de Lisboa desse ano. 3-1, vitória dos leões, e Jorge Vieira sentia pela primeira vez o gosto de um título conquistado ao serviço do clube do seu coração. Colecionaria mais 6 títulos de campeão regional de Lisboa (em 18/19, 21/22, 22/23, 24/25, 27/28, e 30/31), além do ceptro de campeão de Portugal em 22/23. Fez cerca de 200 jogos com a camisola listada de verde e branco, terminando a sua carreira em 1932.
Mas não só no Sporting a estrela de Jorge Vieira brilhou. A seleção nacional de Portugal também usufruiu do talento do jogador. Ele foi um dos históricos atletas que participou no primeiro jogo internacional da seleção portuguesa, facto (já evocado pelo Museu Virtual do Futebol noutras viagens ao passado) ocorrido a 18 de dezembro de 1921, em Madrid, diante da Espanha, tendo integrado também a equipa nacional que diante da Itália, a 28 de junho de 1925, obteve a primeira vitória para as cores lusitanas, episódio este também já aqui por nós foi recordado. O ponto alto da carreira internacional da carreira de Jorge Vieira aconteceu em 1928, ano em que defendeu as cores de Portugal no torneio de futebol dos Jogos Olímpicos de Amesterdão, na época a prova futebolística mais importante do planeta ao nível de seleções nacionais.
O conhecimento de Jorge Vieira sobre o jogo era tão vasto que até árbitro de futebol ele foi! E neste campo também a nível internacional ele viveu momentos importantes, como o ocorrido, por exemplo, em outubro de 1921, quando a União Espanhola de Futebol solicita à sua congénere portuguesa a nomeação de um árbitro para dirigir um escaldante Espanha - Bélgica, uma reedição do confronto decorrido um ano antes nos Jogos Olímpicos de Antuérpia, onde os belgas haviam alcançado o título de campeões olímpicos. A UPF aconselhou Jorge Vieira, o qual de pronto aceitou o convite, tendo posteriormente realizado uma exibição condizente com o grau de exigência deste duelo, o mesmo é dizer, que esteve impecável, e a prova disso é que no final do jogo realizado em Bilbao espanhóis e belgas enalteceram a atuação do português, que desta forma se tornava no primeiro árbitro luso internacional. Jorge Vieira viria a falecer a 6 de agosto de 1986.

Nomes e números do Campeonato de Portugal de 1922/23:

1ª eliminatória

Académica - Braga: 2-1

2ª eliminatória

Académica - Lusitano VRSA: 3-2

Meias-finais

Sporting - FC Porto: 3-0

Académica - Marítimo: 2-1

Final

Sporting - Académica: 3-0

24-6-1923, Faro (Santo Estádio)
Árbitro: Eduardo Vieira (Faro)
Marcadores: 1-0 Stromp (12m), 2-0 Ferreira (18m g.p.), 3-0 Ferreira (53m g.p.)
Sporting – Cipriano Nunes; Joaquim Ferreira e Jorge Vieira; José Leandro, Filipe dos Santos e Henrique Portela; Torres Pereira, Jaime Gonçalves, Francisco Stromp cap, João Francisco e Carlos Fernandes. Treinador: Augusto Sabbo
Académica – João Ferreira; Júlio Ribeiro Costa cap e Francisco Prudêncio; Joaquim Miguel, Teófilo Esquível e António Galante; Guedes Pinto, Armando Batalha, Augusto Paes, Gil Vicente e José Neto.

Legenda das fotografias:
1-A equipa do Sporting que venceu o primeiro título nacional: Em baixo: Torres Pereira, Jaime Gonçalves, Francisco Stromp, João Francisco Maia, e Carlos Fernandes. No meio: José Leandro, Filipe dos Santos e Henrique Portela. Em cima: Joaquim Ferreira, Cipriano dos Santos e Jorge Vieira
2-Cândido de Oliveira, o grande mestre o futebol português, na altura capitão do Casa Pia, e que na meia final diante do FC Porto desempenhou funções de... massagista do Sporting.
3-O lendário capitão leonino Francisco Stromp
4-Jorge Vieira, um dos maiores símbolos da história do Sporting...
5-... que em outubro de 1921 arbitrou um Espanha - Bélgica, tornando-se assim no primeiro árbitro português internacional

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