quinta-feira, junho 09, 2022

Jogos Memoráveis (3)... Desportivo de Chaves - Universitatea de Craiova (Taça UEFA de 1987/88)

Em 1987 Chaves e o interior de Portugal
entram no mapa do futebol europeu
Já diz o chavão que "para lá do Marão mandam os que lá estão". Tem sido assim com o passar dos anos no sentido de vincar a garra e determinação do povo transmontano em muitos aspetos da vida, sendo que o futebol não é exceção.

Vem isto a propósito de um jogo que ficou para a história não só desta região como de todo o interior do nosso país, já que até aos dias de hoje nunca mais a Velha Europa do Futebol teve como palco o muitas vezes esquecido interior português. Este encontro foi o capítulo principal de uma caminhada europeia também ela histórica, atendendo a que estávamos perante um clube que cumpria somente a sua terceira temporada ao mais alto nível do futebol luso, ou seja, a 1.ª divisão. Chegar a uma competição europeia ao fim de apenas duas épocas de contacto com os chamados grandes do futebol português é obra, e mais ainda se chegados ao palco europeu, sem qualquer tipo de experiência nestas andanças, conseguir superar uma eliminatória e vender muito cara a derrota na ronda seguinte. Um feito ao alcance de poucos clubes, sendo uma dessas raras e (hoje) históricas exceções é o Grupo Desportivo de Chaves. 

O "onze" do Chaves que em Trás-os-Montes defrontou e venceu o Craiova

A chegada à Europa do futebol deu-se como consequência do brilhante 5.º lugar obtido no Nacional da 1.ª divisão de 86/87. Sob o comando técnico de Raul Águas o emblema transmontano superou o também brilhante 6.º lugar alcançado na época anterior, precisamente a estreia no escalão maior do nosso futebol. Emílio Macedo e Sousa (1924-2017) era por estes dias um homem feliz, ele que na condição de presidente da Direção levou o Chaves não só à 1.ª divisão como também à Europa no curto espaço de três anos. 1987/88 é pois ainda hoje uma temporada marcante e carregada de nostalgia na vida dos flavienses, sobretudo daqueles que assistiram à performance dos pupilos de Raul Águas nos relvados onde atuaram. E é sobre uma dessas performance, ou exibições, que hoje iremos falar, mais concretamente do encontro da 2.ª mão da 1.ª eliminatória da Taça UEFA 87/88, que viria a ser ganha pelos alemães do Bayer Leverkusen, mas que teve no Desportivo de Chaves, quiçá, a primeira grande surpresa. O sorteio ditou que os flavienses defrontassem na ronda inaugural da competição os romenos da Universitatea de Craiova. Nunca será por demais frisar o poderio que o futebol do leste europeu ostentava naqueles anos, sendo que apenas duas épocas antes da Roménia havia saído um campeão da Europa, o Steaua de Bucareste.

O forte plantel do Universitatea de Craiova em 87/88

Perante isto, e aliado à inexperiência dos transmontanos, a balança do favoritismo pendia para o clube de Craiova, onde pontificavam nomes como o guardião Silviu Lung - que havia brilhado no Europeu de 1984 ao serviço da seleção romena -, Mircea Irimescu, Gheorghe Popescu - que viria a destacar-se na década de 90 não só ao serviço da sua seleção nos Mundiais de 90, 94 e 98, como também com as cores do Barcelona e do Galatasaray, onde venceu, respetivamente, uma Taça das Taças e uma Taça UEFA -, Nicolae Negrila, Emil Sandoi, entre outros artistas que marcaram o futebol romeno de então. Uma equipa de respeito, por isso, que nos dez anos anteriores havia vencido quatro campeonatos nacionais e outras tantas taças romenas.

O batismo europeu do Chaves aconteceu em solo romeno, depois de 24 horas de viagem (!) e debaixo de uma temperatura escaldante de 45 graus (!), mas que mesmo assim não sufocou os portugueses, que em Craiova venderam caro a derrota por 2-3, e onde até estiveram a vencer por 2-0.

Nada estava perdido, muito pelo contrário, e ainda faltavam 90 minutos no Municipal de Chaves, e já se sabe que "para lá do Marão, mandam os que lá estão". E assim foi.

Vermelhinho foi um diabo à solta no Municipal
E eis que chegávamos ao dia 30 de setembro de 1987, uma quarta-feira de tarde, dia em que a cidade parou para ver o seu Desportivo na alta roda do futebol continental. Pela primeira vez as competições europeias de futebol chegavam a Trás-os-Montes e ao interior de Portugal. Era um momento histórico e nem os vizinhos espanhóis quiseram faltar à festa que lotou por completo a catedral do futebol flaviense. Se fosse pela falange de apoio que teve nessa tarde, o Chaves já tinha passado a eliminatória, algo que a bola viria a confirmar 90 minutos mais tarde no relvado do Estádio Municipal.

No livro "40 Anos de Vida do Grupo Desportivo de Chaves", da autoria de António Saldanha, e Álvaro Coutinho, conta-se como os flavienses deram a volta à eliminatória. «Com Vermelhinho em plano de grande brilho, o Desportivo de Chaves conseguiu no seu estádio dar a volta ao resultado da primeira mão e anular a desvantagem que trazia da Roménia. Não foi um triunfo fácil, mas os flavienses mereceram inteiramente o desfecho favorável da partida, prosseguindo assim nesta que pode ser uma aventura maravilhosa na Taça UEFA», pode ler-se no livro.

Vermelhinho, um dos nomes mais sonantes daquele plantel do Chaves comandado por Raul Águas, um homem que em Trás-os-Montes vivia a sua primeira experiência como treinador após pendurar as chuteiras de jogador, precisamente com a camisola azulgrana do Desportivo flaviense. Vermelhinho era com toda a certeza o jogador mais experiente dos transmontanos em matéria de competições europeias, já que na temporada anterior havia-se sagrado campeão europeu ao serviço do FC Porto, clube este que agora o cedia por empréstimo durante uma temporada ao Desportivo.

Mais um lance de perigo para a baliza de Lung
Mas havia outros bons valores para lá do Marão, casos do defesa central brasileiro Jorginho, dos guarda-redes Padrão e Fonseca, ou das estrelas búlgaras Georgi Slavkov e Radoslav Zdravkov - imortalizado em Chaves como Radi-, sendo que a título de curiosidade este último havia sido titular na seleção do seu país no Mundial do México, disputado pouco mais de um ano antes. Havia também muita gente da terra, e da região envolvente, que talvez no início da sua carreira nunca tenha imaginado este momento ímpar na história da cidade de do clube. Jogadores como Diamantino Braz (que dedicou uma vida ao Desportivo), Gilberto, ou Ramadas, sabiam como ninguém o que significava esta presença na Europa do futebol para Trás-os-Montes.

Mas voltando a um jogo onde "Vermelhinho jogou, fez jogar e marcou", como salientaram os autores do atrás citado livro que conta parte da história do clube, para dizer que o Municipal de Chaves cedo explodiu de alegria, já que «aos cinco minutos e quando o público não estava ainda perfeitamente instalado nos seus lugares, o Desportivo abriu o ativo. Foi na sequência de um canto do lado direito do seu ataque. A bola foi parar aos pés de Slavkov que abriu uma brecha por entre os defesas e abriu a contar». Estavam decorridos somente cinco minutos de um encontro que havia iniciado com bastante vivacidade, onde desde o apito inicial do norte irlandês Oliver Donnelly o Chaves deu indicações de que queria marcar golos.

«Após o tento inaugural o Chaves baixou o seu ritmo, com a partida a conhecer um período de alguma monotonia, muito embora coubessem sempre aos donos da casa as melhores ocasiões para marcar». A título de exemplo, mais uma endiabrada jogada de Vermelhinho, que aos 36 minutos «isolou-se frente ao guarda-redes Lung, mas disparou de forma a permitir a defesa do seu antagonista, que tapou bem o ângulo de remate».

Três minutos depois e cheirava novamente a golo no Municipal, altura em que Jorginho de cabeça, «dentro de área atirou por cima da barra, num lance que merecia melhor sorte, tendo na jogada seguinte o mesmo Jorginho evitado o 1-1, ao oferecer o corpo à bola num disparo de um avançado romeno». Apesar de o Chaves ter sido a equipa mais perigosa no ataque, a primeira parte terminou sob o signo do equilíbrio. «Quando a bola ia para os pés de Slavkov ou Radi a defesa do Universitatea de Craiova tinha bastantes dificuldades em anular os lances».

«No período complementar o Chaves reapareceu determinado, pressionando o adversário, com Vermelhinho a falhar por um triz dentro de área, aos 53 minutos, e Slavkov a atirar junto ao poste, aos 54, em duas jogadas de bom recorte técnico. O 2-0 surgiu aos 62 minutos, por intermédio de Vermelhinho, num remate cruzado dentro de área e depois de uma desmarcação em jogada de entendimento com Serra».

O segundo golo flaviense foi protestado pelos romenos, que alegaram junto do árbitro britânico um hipotético fora de jogo, que não viria a ser assinalado e «estava feito o segundo golo dos locais e se já antes havia otimismo, neste momento ninguém presente no Municipal acreditou que a eliminatória pudesse ser perdida».

Porém, os romenos reagiram e levaram então algum perigo à baliza de Padrão, cuja inspiração ajudou e muito a segurar o triunfo. A defesa flaviense esteve à semelhança do seu guarda-redes muito segura, cometendo poucos erros, sendo que uma das raras exceções aconteceu ao minuto 83, altura em que o Universitatea de Craiova apontou o seu golo. «Num canto, Ghita saltou melhor que os defesas do Chaves e atirou para o fundo das malhas. Tudo tentaram os romenos para marcar mais um golo, mas os flavienses sacudiram muito bem a pressão e conseguiram assim passar à segunda fase da prova que, diga-se, merecida».

Se alguns jornais destacavam as exibições de Vermelhinho, Jorginho e Gilberto como a chave para este êxito, outros órgãos de comunicação referiam que o segredo desta vitória e consequente passagem à 2.ª eliminatória da Taça UEFA foi o coletivo.

O sonho europeu dos flavienses terminou precisamente na segunda ronda, ao serem batidos pelos húngaros do Honved, com uma derrota em solo português, por 1-2, e por 3-1 em Budapeste.

Mas para a histórica fica mesmo a vitória dos flavienses diante do Craiova cuja ficha técnica foi a seguinte:

Estádio Municipal de Chaves. Árbitro: Oliver Donnelly (da Irlanda do Norte).

Desportivo de Chaves: Padrão, Cerqueira, Garrido, Jorginho, Serra, Gilberto, Radi, Diamantino, David, Vermelhinho e Slavkov. Treinador: Raul Águas. Substituições: Júlio Sérgio entrou para o lugar de Slavkov aos 63 minutos, e Vicente entrou para o lugar de Radi aos 84 minutos.

Universitatea de Craiova: Silviu Lung, Gheorghe Popescu, Adrian Popescu, Nicolae Negrila, Emil Sandoi, Vasile Manaila, Marian Rada, Pavel Badea, Gheorghe Ciurea, Ion Geolgau e Viorel Vancea. Treinador: Constantin Otet. Substituições: Ao intervalo Nicolae Ghita entrou para o lugar de Gheorghe Ciurea, e aos 68 minutos Mircea Irimescu entrou para o lugar de Ion Geolgau.

ENTREVISTA COM JÚLIO SÉRGIO, QUE RECORDA: 

A «LOUCURA TOTAL» VIVIDA EM CHAVES PELA VITÓRIA ANTE OS ROMENOS

Ele foi um dos homens que ajudou a escrever esta história com sotaque de Trás-os-Montes. Não só participou neste jogo como também viveu o início do "conto de fadas" flaviense no mais alto escalão do futebol português, já que a sua primeira época em Chaves coincidiu com a estreia do Desportivo na 1.ª divisão, em 85/86. Com formação feita no FC Porto, este médio vivenciou no emblema azulgrana os seus primeiros dias de glória no futebol sénior. Aquando da vitória sobre o Universitatea de Craiova ele tinha apenas 22 anos, tendo vivido a sua primeira experiência europeia ao nível de clubes, após ter entrado na segunda parte para o lugar de Slavkov. Nesta entrevista ele recorda-nos não só esta sua experiência como também este momento que faz parte da história do Grupo Desportivo de Chaves. Sem mais demoras passemos à conversa com Júlio Sérgio.

Júlio Sérgio
Museu Virtual do Futebol (MVF:) Imaginava quando chegou a Chaves, em 1985/86, ano de estreia do clube na 1.ª divisão, que dois anos depois estaria a disputar uma prova europeia?

Júlio Sérgio (JS): Naturalmente que não, mentiria se dissesse que iríamos construir um marco histórico no panorama futebolístico nacional.

MVF: Qual foi o segredo que esteve na base deste sucesso, isto é, para terem alcançado tão boas classificações nas duas primeiras temporadas de 1.ª divisão que vos iriam conduzir até à Taça UEFA?

JS: Tínhamos um grupo muito unido com jogadores que queriam aparecer e mostrar o seu valor, além que o facto de vivermos com as famílias perto uns dos outros fortalecia a nossa união. Até nos treinos havia competição (saudável) nas equipas formadas para disputar as peladinhas, havia a equipa de baixo e a equipa de cima. Como nos divertia-mos.

MVF: Para uma região que até então era órfã das grandes tardes/noites europeias este feito pode ser considerado ainda mais épico...

JS: Sim claro que sim, estávamos a transportar o nome de uma região que até então era desconhecida e que se tornou numa das melhores regiões de Portugal.

MVF: Chegados à temporada de estreia na Taça UEFA, e assim que o sorteio ditou que o Universitatea de Craiova iria ser o vosso oponente, qual foi a primeira coisa que vos passou pela cabeça?

JS: Não ia ser fácil, mas o transmontano não desiste e sabíamos do nosso potencial.

MVF: O facto de o clube ser oriundo de uma região isolada num Portugal que tinha acabado de entrar na CEE assustou-vos na hora de jogar com uma equipa de um país (Roménia) que dava cartas no futebol europeu de então?

JS: Assustar não, mas tínhamos respeito por uma das melhores equipas da Europa na época. Mas não tínhamos nada a perder e havia toda uma região a precisar de nós.

Raul Águas, o timoneiro
do Chaves europeu
MVF: Conheciam alguma coisa do Universitatea de Craiova, algum jogador em especial, ou simplesmente foram de "olhos fechados", por assim dizer, para esta eliminatória?

JS: Conhecíamos o clube, mas pouco sabíamos acerca deles. Mas tínhamos o nosso chefe (mister) que sabia muito de futebol e nos guiava em todos os momentos.

MVF: E como é que as gentes de Chaves, de toda aquela região, viveram esta experiência europeia?

JS: Loucura total, foi indescritível o quanto fomos acarinhados e o quanto essa gente viveu o momento.

MVF: A derrota em Craiova esmoreceu-vos, ou pelo contrário, sentiram que em Chaves iriam fazer jus ao velho chavão transmontano "para lá do Marão mandam os que lá estão" e iriam eliminar os romenos?

JS: Usámos em muitos jogos esse chavão, mas, pelo que tínhamos feito no primeiro jogo sentimos que era possível tornar o sonho realidade e passar a eliminatória.

MVF: Começou o encontro da segunda mão no banco, entrando na segunda parte, e pergunto-lhe como é que viveu as emoções deste jogo tão de perto?

JS: Eram muitas e desgastantes, mas sobretudo a sensação de que era possível passar a eliminatória superava isso tudo.

MVF: Quando entrou no segundo tempo que indicações lhe deu Raul Águas?

JS: Em relação a conversa com o Raul sinceramente não me lembro do ele me disse.  Mas o Raul sempre que eu ficava no banco e entrava era muito pragmático ao dizer-me "vais entrar e conto contigo para ganhar o jogo", ou se estivéssemos a ganhar queria que eu controlasse os tempos de jogo. Era muito moralizador.

MVF: Como se pode explicar a vitória do Chaves neste encontro e a consequente passagem da eliminatória, por outras palavras, qual foi o segredo deste triunfo?

JS: União. Essa é a explicação para tanto sucesso e principalmente para esse triunfo ante os romenos.

MVF: Houve festa no balneário depois desta vitória, por certo...

JS: Claro, nestas ocasiões e depois de saltos abraços ...só queríamos ir para fora do estádio, pois sabíamos que tínhamos os flavienses a querer festejar connosco.

MVF: E Raul Águas, de que forma vos motivou para este encontro, e o que vos disse depois desta vitória?

JS: Sinceramente não posso dizer, mas uma coisa é certa, o Raul é um homem que sempre nos tratou quase como colegas, a motivação dele era diária, e nesse jogo além de se rir muito deu-nos os parabéns. Não sabia ser diferente.

Houve festa rija na capital 
do Alto Tâmega
MVF: Na eliminatória seguinte o sonho europeu acabou diante do Honved. O que faltou para o Chaves ir mais longe nesta aventura europeia?

JS: Eu ter falhado um penalti no jogo da primeira mão em casa, pois talvez se tivesse concretizado haveria mais hipóteses de passarmos. A falta de traquejo europeu da equipa também explica o facto de termos sido eliminados pelo Honved.

MVF: Esteve quatro temporadas consecutivas em Chaves, precisamente o período de estreia na 1.ª divisão e na Taça UEFA. Como é que caracteriza aquele grupo que ajudou a cimentar o Chaves como um clube não só de dimensão nacional como o principal emblema de uma região (Trás os Montes)?

JS: Uma família, desde o presidente, aos diretores, massagistas, médicos, roupeiro, motorista. todos eram fenomenais. Depois nós, jogadores, comíamos todos no mesmo restaurante, viajávamos todas as semanas para Chaves juntos, fazíamos férias com a família juntos, vivíamos todos no mesmo prédio, e em dias de folga jogávamos as cartas juntos (com o mister), e sabíamos que havia uma região por trás de nós que tínhamos de pôr no mapa nacional. Foi uma experiência incrível.

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