Em 1987 Chaves e o interior de Portugal entram no mapa do futebol europeu |
Vem
isto a propósito de um jogo que ficou para a história não só desta região como
de todo o interior do nosso país, já que até aos dias de hoje nunca mais a Velha Europa do Futebol teve como palco
o muitas vezes esquecido interior português. Este encontro foi o capítulo
principal de uma caminhada europeia também ela histórica, atendendo a que
estávamos perante um clube que cumpria somente a sua terceira temporada ao mais
alto nível do futebol luso, ou seja, a 1.ª divisão. Chegar a uma competição
europeia ao fim de apenas duas épocas de contacto com os chamados grandes do
futebol português é obra, e mais ainda se chegados ao palco europeu, sem
qualquer tipo de experiência nestas andanças, conseguir superar uma
eliminatória e vender muito cara a derrota na ronda seguinte. Um feito ao alcance
de poucos clubes, sendo uma dessas raras e (hoje) históricas exceções é o Grupo
Desportivo de Chaves.
O "onze" do Chaves que em Trás-os-Montes defrontou e venceu o Craiova |
A chegada à Europa do futebol deu-se como consequência do brilhante 5.º lugar obtido no Nacional da 1.ª divisão de 86/87. Sob o comando técnico de Raul Águas o emblema transmontano superou o também brilhante 6.º lugar alcançado na época anterior, precisamente a estreia no escalão maior do nosso futebol. Emílio Macedo e Sousa (1924-2017) era por estes dias um homem feliz, ele que na condição de presidente da Direção levou o Chaves não só à 1.ª divisão como também à Europa no curto espaço de três anos. 1987/88 é pois ainda hoje uma temporada marcante e carregada de nostalgia na vida dos flavienses, sobretudo daqueles que assistiram à performance dos pupilos de Raul Águas nos relvados onde atuaram. E é sobre uma dessas performance, ou exibições, que hoje iremos falar, mais concretamente do encontro da 2.ª mão da 1.ª eliminatória da Taça UEFA 87/88, que viria a ser ganha pelos alemães do Bayer Leverkusen, mas que teve no Desportivo de Chaves, quiçá, a primeira grande surpresa. O sorteio ditou que os flavienses defrontassem na ronda inaugural da competição os romenos da Universitatea de Craiova. Nunca será por demais frisar o poderio que o futebol do leste europeu ostentava naqueles anos, sendo que apenas duas épocas antes da Roménia havia saído um campeão da Europa, o Steaua de Bucareste.
O forte plantel do Universitatea de Craiova em 87/88 |
Perante isto, e aliado à inexperiência dos transmontanos, a balança do favoritismo pendia para o clube de Craiova, onde pontificavam nomes como o guardião Silviu Lung - que havia brilhado no Europeu de 1984 ao serviço da seleção romena -, Mircea Irimescu, Gheorghe Popescu - que viria a destacar-se na década de 90 não só ao serviço da sua seleção nos Mundiais de 90, 94 e 98, como também com as cores do Barcelona e do Galatasaray, onde venceu, respetivamente, uma Taça das Taças e uma Taça UEFA -, Nicolae Negrila, Emil Sandoi, entre outros artistas que marcaram o futebol romeno de então. Uma equipa de respeito, por isso, que nos dez anos anteriores havia vencido quatro campeonatos nacionais e outras tantas taças romenas.
O
batismo europeu do Chaves aconteceu em solo romeno, depois de 24 horas de
viagem (!) e debaixo de uma temperatura escaldante de 45 graus (!), mas que
mesmo assim não sufocou os portugueses, que em Craiova venderam caro a derrota
por 2-3, e onde até estiveram a vencer por 2-0.
Nada
estava perdido, muito pelo contrário, e ainda faltavam 90 minutos no Municipal
de Chaves, e já se sabe que "para lá
do Marão, mandam os que lá estão". E assim foi.
Vermelhinho foi um diabo à solta no Municipal |
No
livro "40 Anos de Vida do Grupo
Desportivo de Chaves", da autoria de António Saldanha, e Álvaro
Coutinho, conta-se como os flavienses deram a volta à eliminatória. «Com Vermelhinho em plano de grande brilho,
o Desportivo de Chaves conseguiu no seu estádio dar a volta ao resultado da
primeira mão e anular a desvantagem que trazia da Roménia. Não foi um triunfo
fácil, mas os flavienses mereceram inteiramente o desfecho favorável da
partida, prosseguindo assim nesta que pode ser uma aventura maravilhosa na Taça
UEFA», pode ler-se no livro.
Vermelhinho,
um dos nomes mais sonantes daquele plantel do Chaves comandado por Raul Águas,
um homem que em Trás-os-Montes vivia a sua primeira experiência como treinador
após pendurar as chuteiras de jogador, precisamente com a camisola azulgrana do Desportivo flaviense. Vermelhinho
era com toda a certeza o jogador mais experiente dos transmontanos em matéria
de competições europeias, já que na temporada anterior havia-se sagrado campeão
europeu ao serviço do FC Porto, clube este que agora o cedia por empréstimo
durante uma temporada ao Desportivo.
Mais um lance de perigo para a baliza de Lung |
Mas
voltando a um jogo onde "Vermelhinho
jogou, fez jogar e marcou", como salientaram os autores do atrás
citado livro que conta parte da história do clube, para dizer que o Municipal
de Chaves cedo explodiu de alegria, já que «aos
cinco minutos e quando o público não estava ainda perfeitamente instalado nos
seus lugares, o Desportivo abriu o ativo. Foi na sequência de um canto do lado
direito do seu ataque. A bola foi parar aos pés de Slavkov que abriu uma brecha
por entre os defesas e abriu a contar». Estavam decorridos somente cinco
minutos de um encontro que havia iniciado com bastante vivacidade, onde desde o
apito inicial do norte irlandês Oliver Donnelly o Chaves deu indicações de que
queria marcar golos.
«Após o tento
inaugural o Chaves baixou o seu ritmo, com a partida a conhecer um período de
alguma monotonia, muito embora coubessem sempre aos donos da casa as melhores
ocasiões para marcar». A título de exemplo, mais uma endiabrada jogada de
Vermelhinho, que aos 36 minutos «isolou-se
frente ao guarda-redes Lung, mas disparou de forma a permitir a defesa do seu
antagonista, que tapou bem o ângulo de remate».
«No período
complementar o Chaves reapareceu determinado, pressionando o adversário, com
Vermelhinho a falhar por um triz dentro de área, aos 53 minutos, e Slavkov a
atirar junto ao poste, aos 54, em duas jogadas de bom recorte técnico. O 2-0
surgiu aos 62 minutos, por intermédio de Vermelhinho, num remate cruzado dentro
de área e depois de uma desmarcação em jogada de entendimento com Serra».
O
segundo golo flaviense foi protestado pelos romenos, que alegaram junto do
árbitro britânico um hipotético fora de jogo, que não viria a ser assinalado e «estava feito o segundo golo dos locais e se
já antes havia otimismo, neste momento ninguém presente no Municipal acreditou
que a eliminatória pudesse ser perdida».
Porém,
os romenos reagiram e levaram então algum perigo à baliza de Padrão, cuja
inspiração ajudou e muito a segurar o triunfo. A defesa flaviense esteve à
semelhança do seu guarda-redes muito segura, cometendo poucos erros, sendo que
uma das raras exceções aconteceu ao minuto 83, altura em que o Universitatea de
Craiova apontou o seu golo. «Num canto, Ghita
saltou melhor que os defesas do Chaves e atirou para o fundo das malhas. Tudo
tentaram os romenos para marcar mais um golo, mas os flavienses sacudiram muito
bem a pressão e conseguiram assim passar à segunda fase da prova que, diga-se,
merecida».
Se
alguns jornais destacavam as exibições de Vermelhinho, Jorginho e Gilberto como
a chave para este êxito, outros órgãos de comunicação referiam que o segredo
desta vitória e consequente passagem à 2.ª eliminatória da Taça UEFA foi o
coletivo.
O
sonho europeu dos flavienses terminou precisamente na segunda ronda, ao serem
batidos pelos húngaros do Honved, com uma derrota em solo português, por 1-2, e
por 3-1 em Budapeste.
Mas
para a histórica fica mesmo a vitória dos flavienses diante do Craiova cuja
ficha técnica foi a seguinte:
Estádio
Municipal de Chaves. Árbitro: Oliver Donnelly (da Irlanda do Norte).
Desportivo
de Chaves: Padrão, Cerqueira, Garrido, Jorginho, Serra, Gilberto, Radi,
Diamantino, David, Vermelhinho e Slavkov. Treinador: Raul Águas. Substituições:
Júlio Sérgio entrou para o lugar de Slavkov aos 63 minutos, e Vicente entrou
para o lugar de Radi aos 84 minutos.
Universitatea
de Craiova: Silviu Lung, Gheorghe Popescu, Adrian Popescu, Nicolae Negrila,
Emil Sandoi, Vasile Manaila, Marian Rada, Pavel Badea, Gheorghe Ciurea, Ion
Geolgau e Viorel Vancea. Treinador: Constantin Otet. Substituições: Ao
intervalo Nicolae Ghita entrou para o lugar de Gheorghe Ciurea, e aos 68
minutos Mircea Irimescu entrou para o lugar de Ion Geolgau.
ENTREVISTA COM JÚLIO SÉRGIO, QUE RECORDA:
A «LOUCURA TOTAL» VIVIDA EM CHAVES PELA VITÓRIA ANTE OS ROMENOS
Ele foi um dos homens que ajudou a escrever esta história com sotaque de Trás-os-Montes. Não só participou neste jogo como também viveu o início do "conto de fadas" flaviense no mais alto escalão do futebol português, já que a sua primeira época em Chaves coincidiu com a estreia do Desportivo na 1.ª divisão, em 85/86. Com formação feita no FC Porto, este médio vivenciou no emblema azulgrana os seus primeiros dias de glória no futebol sénior. Aquando da vitória sobre o Universitatea de Craiova ele tinha apenas 22 anos, tendo vivido a sua primeira experiência europeia ao nível de clubes, após ter entrado na segunda parte para o lugar de Slavkov. Nesta entrevista ele recorda-nos não só esta sua experiência como também este momento que faz parte da história do Grupo Desportivo de Chaves. Sem mais demoras passemos à conversa com Júlio Sérgio.
Júlio Sérgio |
Júlio
Sérgio (JS): Naturalmente que não, mentiria se dissesse que iríamos construir
um marco histórico no panorama futebolístico nacional.
MVF: Qual foi o segredo que esteve na base deste sucesso, isto é, para terem alcançado tão boas classificações nas duas primeiras temporadas de 1.ª divisão que vos iriam conduzir até à Taça UEFA?
JS: Tínhamos um grupo muito unido
com jogadores que queriam aparecer e mostrar o seu valor, além que o facto de
vivermos com as famílias perto uns dos outros fortalecia a nossa união. Até nos
treinos havia competição (saudável) nas equipas formadas para disputar as
peladinhas, havia a equipa de baixo e a equipa de cima. Como nos divertia-mos.
MVF: Para uma região que até então era órfã das grandes tardes/noites europeias este feito pode ser considerado ainda mais épico...
JS:
Sim claro que sim, estávamos a transportar o nome de uma região que até então
era desconhecida e que se tornou numa das melhores regiões de Portugal.
MVF: Chegados à temporada de estreia na Taça UEFA, e assim que o sorteio ditou que o Universitatea de Craiova iria ser o vosso oponente, qual foi a primeira coisa que vos passou pela cabeça?
JS:
Não ia ser fácil, mas o transmontano não desiste e sabíamos do nosso potencial.
MVF: O facto de o clube ser oriundo de uma região isolada num Portugal que tinha acabado de entrar na CEE assustou-vos na hora de jogar com uma equipa de um país (Roménia) que dava cartas no futebol europeu de então?
JS:
Assustar não, mas tínhamos respeito por uma das melhores equipas da Europa na
época. Mas não tínhamos nada a perder e havia toda uma região a precisar de
nós.
Raul Águas, o timoneiro do Chaves europeu |
JS:
Conhecíamos o clube, mas pouco sabíamos acerca deles. Mas tínhamos o nosso
chefe (mister) que sabia muito de futebol e nos guiava em todos os momentos.
MVF: E como é que as gentes de Chaves, de toda aquela região, viveram esta experiência europeia?
JS:
Loucura total, foi indescritível o quanto fomos acarinhados e o quanto essa
gente viveu o momento.
MVF: A derrota em Craiova esmoreceu-vos, ou pelo contrário, sentiram que em Chaves iriam fazer jus ao velho chavão transmontano "para lá do Marão mandam os que lá estão" e iriam eliminar os romenos?
JS:
Usámos em muitos jogos esse chavão, mas, pelo que tínhamos feito no primeiro
jogo sentimos que era possível tornar o sonho realidade e passar a eliminatória.
MVF: Começou o encontro da segunda mão no banco, entrando na segunda parte, e pergunto-lhe como é que viveu as emoções deste jogo tão de perto?
JS:
Eram muitas e desgastantes, mas sobretudo a sensação de que era possível passar
a eliminatória superava isso tudo.
MVF: Quando entrou no segundo tempo que indicações lhe deu Raul Águas?
JS:
Em relação a conversa com o Raul sinceramente não me lembro do ele me
disse. Mas o Raul sempre que eu ficava
no banco e entrava era muito pragmático ao dizer-me "vais entrar e conto
contigo para ganhar o jogo", ou se estivéssemos a ganhar queria que eu
controlasse os tempos de jogo. Era muito moralizador.
MVF: Como se pode explicar a vitória do Chaves neste encontro e a consequente passagem da eliminatória, por outras palavras, qual foi o segredo deste triunfo?
JS:
União. Essa é a explicação para tanto sucesso e principalmente para esse
triunfo ante os romenos.
MVF: Houve festa no balneário depois desta vitória, por certo...
JS:
Claro, nestas ocasiões e depois de saltos abraços ...só queríamos ir para fora
do estádio, pois sabíamos que tínhamos os flavienses a querer festejar
connosco.
MVF: E Raul Águas, de que forma vos motivou para este encontro, e o que vos disse depois desta vitória?
JS:
Sinceramente não posso dizer, mas uma coisa é certa, o Raul é um homem que sempre
nos tratou quase como colegas, a motivação dele era diária, e nesse jogo além de
se rir muito deu-nos os parabéns. Não sabia ser diferente.
Houve festa rija na capital do Alto Tâmega |
JS:
Eu ter falhado um penalti no jogo da primeira mão em casa, pois talvez se
tivesse concretizado haveria mais hipóteses de passarmos. A falta de traquejo
europeu da equipa também explica o facto de termos sido eliminados pelo Honved.
MVF: Esteve quatro temporadas consecutivas em Chaves, precisamente o período de estreia na 1.ª divisão e na Taça UEFA. Como é que caracteriza aquele grupo que ajudou a cimentar o Chaves como um clube não só de dimensão nacional como o principal emblema de uma região (Trás os Montes)?
JS: Uma família, desde o presidente, aos diretores, massagistas, médicos, roupeiro, motorista. todos eram fenomenais. Depois nós, jogadores, comíamos todos no mesmo restaurante, viajávamos todas as semanas para Chaves juntos, fazíamos férias com a família juntos, vivíamos todos no mesmo prédio, e em dias de folga jogávamos as cartas juntos (com o mister), e sabíamos que havia uma região por trás de nós que tínhamos de pôr no mapa nacional. Foi uma experiência incrível.
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