domingo, junho 10, 2018

Histórias do Planeta da Bola (21)... O inglês que “furou” o boicote da Inglaterra aos três primeiros Mundiais da história


O inglês George Moorhouse
O estatuto de inventores do futebol (moderno) auto-conferiu aos ingleses durante anos a fio um misto de superioridade e arrogância face ao resto do Mundo – no que a futebol diz respeito. A convicção de que “não só fomos nós que inventámos o futebol como também o ensinámos a jogar ao resto do Mundo” fez com que os súbitos de Sua Majestade tivessem vivido fechados no seu casulo ao longo de cerca de três décadas em relação ao que se passava no restante globo futebolístico em termos organizacionais. E quando falamos em termos organizacionais referimo-nos à participação inglesa em grandes competições inter-continentais, organizadas sob a égide de uma entidade internacional que chamasse a si a missão de tutelar o futebol a nível planetário. 
Para os ingleses, isso seria uma estocada no seu orgulho e vaidade autoritária de donos e senhores do belo jogo
Esta posição fez com que ignorassem por completo a ideia de Robert Guérin, jornalista (francês) do Le Matin, de Paris, e secretário do Departamento de Futebol da União Francesa de Desportos, que em 1902 iniciou contactos com algumas associações (ou federações) nacionais de países como a Espanha, a Holanda, a Suécia e a Dinamarca no sentido de criar uma organização internacional que tutelasse o futebol a nível mundial.

Robert Guérin
Reza a história que Guérin terá ido a Londres apresentar – e propor – a ideia a Lord Kinnard, o então presidente da Football Association – Federação Inglesa de Futebol. Os ingleses ignoraram por completo esse movimento, que a 24 de maio de 1904 ganhou contornos de realidade com a fundação da FIFA.
Reunidos em Paris, na Rue Saint Honoré, nº 229, representantes das associações nacionais de França, Bélgica, Dinamarca, Holanda, Espanha, Suécia e Suíça fundaram nesse dia a FIFA.
De pronto foram encetados convites a outras associações/federações nacionais para integrar o recém-criado organismo internacional – para o qual Robert Guérin foi nomeado presidente –, entre eles a Inglaterra, que além de (continuar a) recusar a integração nesta nova entidade, não a reconhecia oficialmente. Inclusive, e já depois de a FIFA ter visto a “luz do dia”, a Football Association (FA) reuniu em Londres várias associações nacionais com o intuito de mostrar “quem continuava a conduzir os destinos do futebol planetário”.
A FA tinha por estes dias associadas a si federações dos Estados Unidos da América, Chile, ou Argentina, criando assim um autêntico braço de ferro com a FIFA. A renitência por parte dos ingleses em reconhecer esta federação como a entidade máxima do futebol internacional durou até 1906, quando em Berna o inglês Daniel Burley Woolfall foi nomeado presidente do organismo, sucedendo no cargo a Guérin.

A primeira sede da FIFA, em Paris
Este facto, fez com que a Inglaterra recuasse na sua resistência em aderir à FIFA, algo que efetivamente aconteceu nesse ano de 1906. 
Com Woolfall no poder os ingleses sentiam-se novamente senhores do futebol planetário. 
O então presidente da FIFA teve um papel decisivo não só na internacionalização das leis do jogo, como também na criação daquela que é talvez a primeira grande competição internacional de futebol e que esteve na génese da idealização do atual Campeonato do Mundo da FIFA: o torneio olímpico de futebol. 
Competição que foi inserida nos Jogos Olímpicos de Londres, em 1908, e que até à criação do Mundial FIFA foi a prova mais importante do futebol planetário ao nível de seleções – pese embora a FA tenha controlado as operações do primeiro torneio olímpico de futebol oficial, denotando aqui uma autoridade arrogante sobre a FIFA.
Com a morte de Woolfall, em 1918, a Inglaterra voltou a afastar-se da FIFA, numa altura em que o organismo internacional passava por uma fase conturbada da sua curta existência, como consequência dos “estilhaços” provocados pela I Guerra Mundial.

Jules Rimet: o pai do Campeonato do Mundo
O braço de ferro entre Inglaterra e FIFA voltava a ser uma realidade, um divórcio que desta feita iria durar um pouco mais no tempo: 28 anos! Durante este período (desde 1921) , um visionário surgiu na liderança da FIFA. O seu nome era Jules Rimet. Este francês revolucionou o Mundo do futebol em vários aspetos, sendo o mais sonante, quiçá, a criação do Campeonato do Mundo. O sonho de Rimet tornou-se realidade em 1930, quando o Uruguai acolheu a primeira edição daquele que é hoje o maior evento desportivo planetário. Os índices de popularidade (crescente) da competição ficaram bem patentes nas três primeiras edições, de tal forma que em 1946, finalmente, os ingleses saíram do seu “casulo”, percebendo – e admitindo – que perante o crescimento da FIFA e da importância e dimensão que o seu Campeonato do Mundo já havia atingido, o melhor seria mesmo voltar a juntar-se à entidade que tutelava o futebol planetário. Até porque, chegaram à conclusão que para provar a sua condição de mestres do jogo teriam de enfrentar as suas congéneres mundiais na competição idealizada e criada pela FIFA.

O cromo de Moorhouse nos
tempos do Tranmere Rovers
Esta (longa) introdução leva-nos à nossa paragem histórica de hoje, no sentido de recordar o inglês que “furou” o boicote da Inglaterra aos três primeiros Mundiais da história. George Moorhouse, o seu nome. Quando em 1950 a seleção inglesa aterrou no Brasil para ali disputar o seu primeiro Mundial, já Moorhouse o havia feito 20 anos antes no Uruguai, ao serviço da seleção norte-americana. Este cidadão nascido em Liverpool a 4 de abril de 1901 tem assim pois um lugar reservado na História por ter sido o primeiro inglês a competir num Campeonato do Mundo muito antes de a sua pátria natal o ter feito!
Combatente na I Guerra Mundial, Moorhouse começou por defender – enquanto profissional – a camisola do Tranmere Rovers, pese embora o tenha feito sobretudo ao serviço das reservas do clube de Merseyside, entre 1921 e 1923. Com poucas oportunidades para mostrar o seu valor, George Moorhouse – que no terreno de jogo atuava como lateral-esquerdo – atravessou o Atlântico, rumo ao Canadá, com o intuito de encontrar uma vida melhor num continente (americano) que aos olhos dos europeus se afigurava como a “terra prometida”, bem diferente de uma Europa que por estes dias tentava curar as feridas provocadas pelo primeiro grande confronto bélico da História.

Moorhouse chegou ao Canadá em 1923, tendo ali representado – ainda que de forma amadora – os Pacific Railway, uma equipa constituída por elementos ligados aos caminhos de ferro da região do Quebec. E se em Inglaterra o talento do nativo de Liverpool havia passado praticamente despercebido, na América do Norte tal não viria a acontecer. Após um par de jogos ao serviço dos Pacific Railway, o jogador inglês impressionou um dos grandes impulsionadores do soccer norte-americano dos anos 20, Nat Agar, também ele um inglês de berço que enquanto futebolista viveu os primeiros passos da modalidade em Terras do Tio Sam, sendo que enquanto dirigente esteve na génese da fundação da United States Football Association, em 1913.
Além de figura influente do soccer, Agar era igualmente o proprietário dos Brooklyn Wanderers, tendo de pronto convidado Moorhouse para se juntar à sua equipa. Assim foi. A aventura do cidadão de Liverpool no clube de Agar duraria somente um par de meses, pois ao fim de quatro soberbas exibições, George Moorhouse tinha Nova Iorque a seus pés. Foi então que aquele que era para muitos o maior emblema da Big Apple – e um dos maiores de toda a América – de então seduziu o habilidoso full-back para os seus quadros. Corria o (final de) ano de 1923 quando os New York Giants contrataram Moorhouse. Nos Giants, o inglês tocou a fama, tornando-se num dos mais reputados futebolistas da América nos anos 20, precisamente na chamada Golden Era (Era Dourada) do soccer estado-unidense. Defendeu o clube ao longo de sete temporadas ao mais alto nível, o mesmo é dizer na American Soccer League, a principal competição nacional dos States de então, tendo disputado por este emblema um total de 241 jogos e apontado 46 golos, registo impressionante para um lateral-esquerdo.

A "cortina de aço" yankee:
Wood, Douglas e Moorhouse
Em 1930, Moorhouse deixou os Giants, tendo atuado nos sete anos seguintes noutros emblemas nova-iorquinos, como os Yankees – equipa sem qualquer ligação aos New York Yankees do basebol – ou nos New York Soccer Club. Mas foi precisamente em 1930 que a história de Moorhouse conheceu o seu capítulo mais sonante. 
Ele foi um dos 16 selecionados de Bob Millar (treinador) para efetuar a viagem pelas águas do Atlântico rumo à América do Sul, no sentido de defender as cores da bandeira da América na primeira edição do Campeonato do Mundo da FIFA.
A estreia de Moorhouse pelo combinado nacional havia-se dado quatro anos antes, tendo o Canadá sido atropelado por concludentes 6-1 num encontro particular. Julho de 1930 entra na história do desporto planetário como o mês em que em Montevideu foi dado o pontapé de saída do sonho de Jules Rimet: o Campeonato do Mundo. Moorhouse estava lá, e juntamente com outros extraordinários futebolistas como Bart McGhee, Bert Patenaude, Jimmy Douglas, Tom Florie ou o luso-americano Billy Gonsalves conduziu a seleção yankee à melhor performance de sempre num Mundial FIFA: o 3.º lugar. Goerge Moorhouse, o guarda-redes Douglas e o defesa Alexander Wood foram apelidados pela imprensa sul-americana (presente no evento) como a “cortina de aço”, pela solidez com que fechavam os caminhos da sua baliza, enquanto que lá na frente Florie, Patenaude, McGhee e Gonsalves tratavam de atormentar os defesas adversários.
Seleção norte-americana que participou no Mundial de 1930
Mas, a aventura yankee começou com vincadas desconfianças e aguerridos protestos por parte dos adversários. Cerca de uma semana após a chegada a Montevideu, ocorrida no dia 1 de julho, os norte-americanos foram obrigados a dar uma conferência de imprensa na sequência de uma denúncia da delegação belga – precisamente o primeiro opositor da seleção de Bom Millar no torneio –, a qual apontava ilegalidades sobre a nacionalidade de alguns jogadores yankees. Os belgas acusavam os norte-americanos de incluírem no seu grupo atletas de vários países europeus, acusação refutada pelos responsáveis yankees, que explicaram – na dita conferência de imprensa – que apesar de seis dos seus 16 jogadores terem nascido na Europa haviam já adquirido nacionalidade norte-americana. Como senão bastasse o ataque belga também a imprensa brasileira lançou alguma lenha para fogueira, ao dizer que o principal craque dos States era… português! Tratava-se de Billy Gonsalves, filho de portugueses – nascidos na Madeira – mas que na verdade havia nascido em Portsmouth (Rhode Island) dois anos após a chegada dos seus progenitores a Terras do Tio Sam. Tal como Gonsalves, outros jogadores tinham descendência europeia, embora tenham nascido nos Estados Unidos da América, casos de Tom Florie (filho de italianos) e Bert Patenaude (filho de emigrantes franceses). Estrangeiros naturalizados a seleção norte-americano tinha seis atletas, todos eles nascidos na Grã-Bretanha, nomeadamente os escoceses Alexander Wood, Bart MacGhee, Jimmy Gallagher, Andy Auld, James Brown e o inglês George Moorhouse.

Alguns historiadores apontam que esta desconfiança e suspeita sobre a seleção yankee remonta ao facto de que o poderio (monetário) do soccer daquele país nos anos 20 fez atrair grandes estrelas do futebol europeu, que não só procuravam na América um nível de vida melhor, mas sobretudo tentavam fugir da Guerra que assolava o Velho Continente. Atletas provenientes da Inglaterra, Escócia, Áustria, Hungria, Itália, ou Alemanha emergiram em vários clubes norte-americanos durante a referida década de 20 – a Golden Era do soccer estado-unidense –, fazendo inúmeras digressões não só pelo continente americano como também pela Europa.
Ora, terá sido esta multiculturalidade que vigorou durante anos no futebol dos States que levou outros países a desconfiarem da “originalidade” da seleção estado-unidense no primeiro grande torneio da FIFA. Certo é que no dia 13 de julho os Estados Unidos da América tinham a honra de dar o pontapé de saída do primeiro Campeonato do Mundo da história, quando no Parque Central de Montevideu enfrentaram a Bélgica – no mesmo dia e na mesma hora, também jogaram as seleções de França e México no Estádio de Pocitos.

Fase do jogo entre EUA e Paraguai
Moorhouse estava lá, na line-up inicial dos States, que iriam vergar os belgas a uma derrota por 3-0. Quatro dias mais tarde voltou a ser titular em mais um momento de glória da nação que o acolheu em 1923, ao ajudar a derrotar o Paraguai também por concludentes 3-0 – com a particularidade dos três golos serem da autoria de Patenaude, que assim se tornava no primeiro jogador da história a fazer um hattrick em Mundiais. Com isto, os Estados Unidos da América seguiam para as meias-finais, onde viriam a cair com estrondo aos pés da poderosa Argentina, por 6-1, diante de 112,000 espectadores no majestoso e recém-construído Estádio Centenário.
O facto de a Jugoslávia – derrotada na outra semi-final ante os futuros campeões mundiais, do Uruguai – se ter recusado a disputar o encontro de atribuição dos 3.º e 4.º lugares conferiu aos norte-americanos a medalha de bronze, o que ainda hoje constitui o melhor resultado numa fase final de um Mundial de uma nação que sonha um dia vir a ser a número 1, como em tantas outras modalidades.

Porém, a aventura de Moorhouse com a seleção prolongar-se-ia até ao Mundial seguinte, realizado em Itália, em 1934, tendo o inglês (naturalizado) sido novamente selecionado e nomeado – desta feita – como capitão de equipa. Apesar de o combinado agora às ordens do escocês David Gould incluir algumas lendas do Mundial anterior, como Gonsalves, Florie, Jimmy Gallagher e o próprio Moorhouse, o que é certo é que os States cedo saíram da competição, após serem esmagados por 7-1 pela equipa da casa, na primeira ronda de eliminatórias.
Após a saída do futebol, George Moorhouse continuou a viver no país que lhe abriu as portas do belo jogo ao mais alto nível, a nação que o tirou do anonimato das reservas do Tranmere Rovers e que lhe concedeu a honra de figurar no National Soccer Hall of Fame, privilégio só concedido aos grandes ícones do soccer.
Faleceu a 13 de julho de 1982, curiosamente o mesmo em que meio século antes havia entrado na história ao “antecipar-se” à sua pátria natal na participação num Mundial FIFA.

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