O primeiro capítulo da história da Geração de Ouro |
Há
precisamente 30 anos o sol irrompeu pelo então cinzento futebol português. As
nuvens dissiparam-se e os raios (de sol) iluminaram um caminho que viria a
conduzir a nação lusa ao sucesso global no que ao Belo Jogo concerne.
Não se
pense, porém, que a ascensão de Portugal à condição de potência futebolística
planetária se terá ficado a dever a um esporádico fenómeno natural, mas antes à
ação direta de um punhado de futebolistas de invulgar qualidade. Foram eles que
há três décadas atrás iniciaram esse trajeto de glória do nosso futebol, eles
que "contra tudo e contra todos" fizeram jus à tradição de
aventureiros e destemidos navegadores portugueses e zarparam por "mares nunca
dantes navegados" à conquista do Mundo!
Mais do
que bravos e talentosos conquistadores eles foram o primeiro "vestígio de
ouro" encontrado - e acima de tudo lapidado como até então ninguém tinha
feito - no rico território nacional no que ao futebol de formação diz respeito.
Pelas
portas que abriram há 30 anos atrás, eles são hoje descritos por muitos
especialistas do desporto - e não só - como a melhor geração de sempre do
futebol nacional. Eles são a geração de
ouro do futebol português.
Há 30
anos escrevia-se nas areias do deserto das arábias o primeiro capítulo de uma
história que enche de orgulho o povo português, uma história inacabada que
perdura até aos dias de hoje, e que dá conta do esplendor vitorioso do futebol
lusitano a nível planetário. Essa história, essa geração dourada, mostrou ao
Mundo que Portugal também é gente no futebol, e mais do que tudo… gente
ilustre.
Esta
longa introdução guia-nos à primeira de quatro partes da viagem à conquista de
Riade, culminada no dia 3 de março de 1989, há, portanto, 30 anos.
Três
décadas que assinalam a vitória da seleção nacional de sub-20 na 7.ª edição do
Campeonato do Mundo da categoria, realizado na Arábia Saudita. Mais do que ter então alcançado o maior
sucesso futebolístico internacional ao nível de seleções, aquele jovem e
talentoso grupo de futebolistas - e treinadores - apresentou Portugal... ao
Mundo.
É sobre
esta epopeia das arábias que vamos dedicar as próximas linhas nesta incursão à
História.
O despertar da formação
O
futebol português dos finais dos anos 80 do século passado vivia ainda longe do
fulgor dos dias de hoje. O tumulto de Saltillo (1986) e as sucessivas incursões
falhadas às fases finais do Euro 88 e do Mundial de 90 não traziam otimismo à
nação no que ao futuro da nossa seleção (principal) dizia respeito. Na Praça da
Alegria – o mesmo será dizer a sede da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) –
viviam-se ainda tempos de alguma amadora desorganização, por assim dizer, e de
excessiva submissão ao poder dos clubes.
Apesar
desta imagem menos positiva, a FPF dava passos – tímidos, é certo – no que à
política de aposta no futebol de formação.
No
período imediato ao 25 de Abril de 1974 aquele organismo lançou à terra as
primeiras sementes nesse sentido, depositando a tarefa de “produzir” os craques
do futuro na dupla de treinadores composta por Jesualdo Ferreira e José Moniz,
sob o comando do selecionador nacional das camadas jovens, David Sequerra. Esta
mesma figura que em 1961 com a ajuda de José Maria Pedroto havia conduzido
Portugal ao seu primeiro título internacional, na sequência da conquista do
Torneio Internacional de Juniores da UEFA (nota: eferméride já abordada no
Museu Virtual do Futebol noutras viagens ao passado).
Os
primeiros sinais desse trabalho foram vistos, ainda que ao de leve, em 1979,
quando a seleção nacional de juniores viajou ao Japão para participar na
segunda edição do Campeonato do Mundo da categoria. A equipa nacional, então
comandada por Peres Bandeira, teve uma prestação mediana, se atendermos a que
muito caminho havia então por desbravar na formação.
Em
terras nipónicas Portugal caiu aos pés do Uruguai nos quartos-de-final de um
Mundial que haveria de ser ganho pela Argentina de… Maradona.
Porém,
uma maior profundidade no trabalho de formação deu-se com a chegada à FPF no
início dos anos 80 do ex-magriço José Augusto, figura que haveria de ter um
papel preponderante na criação da geração
de ouro. Foi ele que na primeira metade da referida década chama para
trabalhar na Praça da Alegria uma dupla que haveria de revolucionar – no bom
sentido da palavra – o futebol português. Carlos Queiroz e Nelo Vingada. Foram
estes homens os pais da geração de ouro,
foram eles os autores de um processo de transformação e reformulação do futebol
jovem que até hoje continua a dar frutos.
A dupla que revolucionou o futebol nacional |
A dupla
chegou à FPF em 1984 e logo iniciou um trabalho intenso e meticuloso que dali a
cinco anos iria conhecer o primeiro grande momento de euforia: o título mundial
de Riade.
Queiroz
e Vingada traçaram as linhas mestras que (re)organizaram o departamento de
futebol juvenil da FPF, levando o Desporto
Rei luso para patamares de excelência nunca dantes vistos.
1989 é
de facto o ano do boom do futebol de
formação português. Ao título mundial de sub-20, alcançado a 3 de março,
Portugal junta em maio seguinte o título de campeão da Europa de sub-16, após
bater na final a República Democrática da Alemanha por claros 4-1.
Era de
facto a confirmação do excelente trabalho de Queiroz e do seu fiel escudeiro
Vingada. Na verdade, a primeira coroa
de glória da dupla estivera quase para ser conquistada um ano antes, na
Checoslováquia, na fase final do Euro de Sub-19, onde os lusos só claudicaram
(no prolongamento) na final diante da então potência continental União
Soviética, por 3-1.
A
presença portuguesa na fase final deste Europeu garantiu de pronto o passaporte
para a Arábia Saudita, onde no ano seguinte teria lugar o Mundial de sub-20 da
FIFA.
“Contra tudo e contra todos” rumo às arábias
Realizado
entre 16 de fevereiro e 3 de março de 1989, o 7.º Campeonato do Mundo de Sub-20
estava pré-destinado a um restrito lote de combinados nacionais de que Portugal
não fazia categoricamente parte. Nem para a crítica internacional, nem para a
nacional!
Para
muitos jornalistas portugueses (de então) a viagem às arábias não seria mais do
que uma mera excursão onde um grupo de miúdos iria fazer três jogos e voltava a
casa com honra…mas sem glória. As evidências na FPF assim faziam crer. A
federação continuava na sua génese a ser uma entidade amorfa, prisioneira dos
interesses dos clubes – como se iria perceber na antecâmara deste Mundial com o
caso Vítor Baía –, e os miúdos
(jogadores) estavam praticamente entregues à sua sorte no embarque para Riade.
O então
jornalista de A Bola, Rui Santos,
acompanhou todos os passos do trajeto dos portugueses numa epopeia que começou
com alguns defeitos típicos da cultura futebolística lusa daquele tempo.
No dia
(11 de fevereiro) da partida para Amesterdão, onde uma comitiva de 25 pessoas,
dos quais 18 eram jogadores, iria pernoitar antes de rumar à Arábia, o
jornalista dava conta dos contratempos que à boa moda portuguesa atingiram o
grupo nacional. Desde logo a «ridícula preparação» a que a equipa nacional
havia sido submetida, ao que se junto ou «aviltante caso Vítor Baía», mas
apesar de «todas a contradições emanantes do tecido futebolístico português,
Portugal pode contar com a força extraordinária de dois excelentes treinadores
(Carlos Queiroz e Nelo Vingada) e de um excelente conjunto de 18 jogadores»,
escrevia o jornalista.
Relativamente
à preparação para este Mundial, Rui Santos redigia que «a seleção foi deixada sem
qualquer tipo de proteção nas mãos dos treinadores e jogadores e só eles podem
na verdade através da superação constante das suas potencialidades (que são
enormes) atenuar os efeitos de uma preparação ridícula, inconsistente, própria
de uma “banda nacional” e não de uma seleção nacional, ainda por cima fautora
de êxitos desportivos, perante aquele que foi arrancado na Checoslováquia (no
ano anterior). (…) Esta seleção nacional que merecia estar colocada numa redoma
de vidro até aos Jogos Olímpicos de 1992, numa altura em que estes jogadores
terão 22 anos, parte hoje (dia 11) de Lisboa sem que tivesse beneficiado de um
esquema de preparação minimamente consistente e a verdade nua e crua é que os
técnicos nacionais só puderam contar com os definitivos 18 jogadores ontem (dia
10) e em tão escasso período de preparação não é possível fazer-se coisa
nenhuma, nem em termos puramente técnico-táticos nem no plano afetivo, digamos
assim, porque nestas competições que duram dias a fio a manutenção de um forte
espírito de grupo constituem polos de primacial importância.
Não
houve tempo para nada (…) mas na verdade neste contexto o que pode salvar a
seleção de uma presença triste e apagada é por assim dizer o seu passado, a sua
tendência evolutiva que começou para muitos jogadores em novembro de 1985 e irá
terminar no fim deste Campeonato do Mundo (…)
Com
efeito, o grande capital desta seleção é o seu passado, as competições que
ficaram para trás, os estágios, as incontornáveis horas de treino. A maior
parte destes futebolistas já disputaram duas fases finais de campeonatos da
Europa (nas categorias de sub-16 e sub-18), não se encontraram agora,
fortuitamente, para ir fazer três jogos à Arabia, como acontece à miúde com a
seleção de Esperanças, que promove um encontro a uma esquina da velha Lisboa um
ou dois dias antes de uma competição internacional.
Estes
jogadores seguiram intervaladamente durante mais de três anos os métodos e a
“ciência” de Carlos Queiroz, e nestes três anos porque o selecionador tem sido
um homem de ideias fixas, jogaram praticamente sobre o mesmo sistema, pelo que
apesar das contradições do presente não irão para a Arábia com os olhos
completamente fechados», escrevia o jornalista na edição desse dia de A Bola.
Baía passa testemunho a Bizarro |
Outro
caso que marcou a partida para Riade foi o de Vítor Baía. Titular absoluto
desta seleção, o nome do então promissor guarda-redes do FC Porto foi riscado à
última da hora do lote de 18 jogadores. O atleta havia jogado pelo seu clube um
dia antes da concentração final da seleção mundialista, sem dar… cavaco a
ninguém. O FC Porto não comunicou, como devia, a razão da ausência do jogador
da concentração.
Factos
como a lesão do polaco Mlynarczick e a «não muito convincente» - aos olhos de
Rui Santos – indisposição do suplente portista Zé Beto depois de uma desastrada
exibição em Portimão dias antes, desviarem Baía de Riade. Perante esta polémica
de última hora com o titular da baliza nacional de sub-20, Rui Santos aguçou a
pena para criticar os responsáveis federativos:
«Total
dependência das seleções nacionais face aos clubes, que fazem e desfazem como
bem entendem, sem dar cavaco a ninguém. Os dirigentes (federativos) sofrem de
um terrível defeito: para além de estarem ao lado dos clubes que lhes arranjam
assento na Praça da Alegria, julgam que os treinadores são todos inventores e
que o trabalho realizado no campo constitui enorme desperdício. Julgam que tudo
se resolve na hora e meia de cada jogo por artes mágica. Deixam tudo nas mãos
de Deus e quando Deus falha… que se lixe. Isto serve para explicar o caso Baía.
(…) Queiroz e Vingada têm feito tudo para ultrapassar os mais difíceis
obstáculos a derrubar (…) face à inaceitável fraqueza dos dirigentes da FPF. Os
seus dirigentes a aceitar sem espernear as deliberações (unilaterais) dos
clubes».
Não
havia Vítor Baía, mas continuava a haver seleção. E sobretudo havia Bizarro,
que apesar da pouca utilização partia com a motivação de defender a baliza
nacional.
Juntamente
com o então jovem guardião do Benfica partiram do Aeroporto da Portela, pelas
17h30, daquele dia 11 de fevereiro de 1989 rumo à Arábia Saudita (via Amesterdão)
os seguintes jogadores: Bizarro (Benfica), Abel Silva (Benfica), Paulo Alves
(Gil Vicente), Paulo Sousa (Benfica), Morgado (Feirense), Jorge Couto (Gil
Vicente), Tozé (Leixões), Hélio (Vitória de Setúbal), Xavier (Estoril), Paulo
Madeira (Benfica), Filipe (Torreense), Resende (Feirense), João Pinto
(Boavista), Valido (Estoril), Fernando Couto (Famalicão), Folha (FC Porto) e
Amaral (Académico de Viseu). «É pois contra tudo e contra todos que esta
seleção parte para Amesterdão. A ridícula preparação desta seleção seria
logicamente compatível com o 16.º e ultimo lugar deste Mundial, mas nós
confiamos nestes treinadores e 18 jogadores», escrevia o enviado especial de A
Bola.
O grupo que iria conquistar... o Mundo em 1989 |
Peripécias em Amesterdão
A
comitiva nacional de 25 elementos – aos quais se juntariam mais tarde o
vice-presidente da FPF, Pais do Amaral, o massagista chefe das seleções
nacionais, João Silva, e o selecionador nacional Juca, que iria a Riade na
condição de observador – pernoitou em Amesterdão antes de embarcar num voo de
sete horas rumo à Arábia.
Contudo,
a noite passada no Hotel Barbizon foi tudo menos pacífica. Quando os jogadores
lusos chegaram aos quartos do hotel deram de caras com os amigos – ou inimigos?
– soviéticos deitados nas camas que supostamente lhe estavam destinadas.
Soviéticos que um ano antes os haviam derrotado na final do Euro de Sub-19!
Instalou-se a confusão, com Queiroz e o selecionador da União Soviética, Boris
Iganitiev, a trocaram alguns “mimos”, quiçá ainda resquícios da final do ano
transato.
Para
resolver este equívoco a direção do hotel teve de colocar quatro pessoas por
quarto!
Mas a
surpresa ganhou contornos de maior dimensão quando na manhã do embarque os
portugueses deram de caras no hall do
hotel com os vizinhos espanhóis, que também iam a Riade participar no Mundial.
Ao que parece também os selecionados de Jesús Pereda haviam dormido no Hotel
Barbizon sem que ninguém tivesse dado por eles! É caso para dizer onde cabem
dois, cabem três!
Já no
aeroporto de Amesterdão rumo à Arábia uma nova surpresa bateu à porta da
seleção nacional. Afinal de contas, não iria fazer a longa viagem até Dahran
(Arábia Saudita) sozinha a bordo da aeronave da KLM. No mesmo avião seguiam as
delegações de Espanha, União Soviética, Estados Unidos da América, Brasil,
Nigéria, Colômbia e Mali! Ou seja, no mesmo voo seguiam metade das seleções que
estariam presentes no Mundial realizado no Golfo Pérsico! Uns mais favoritos do
que outros, é certo. Uns mais crentes na vitória final do que outros, caso dos
tetra-campeões de África, a Nigéria, para quem o Mundial “estava no papo”.
Quase que acertavam, não fossem uns tais portugueses estragarem-lhes os
prognósticos.
Apesar
de pouco cotada na bolsa de apostas a seleção nacional foi informada na partida
para as arábias dos prémios que a FPF iria atribuir a cada jogador no âmbito
desta presença mundialista: Se Portugal não passar da 1.ª fase cada jogador
recebe 25 contos. Se a seleção conseguir o 4.º lugar recebe 125 contos, o 3.º
posto dá direito a 150 contos; o 2.º 175 contos, e se Portugal for campeão do
Mundo há direito a um prémio de 200 contos.
Poucos
acreditariam nesta hipótese.
(continua)
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