terça-feira, dezembro 22, 2015

ENTREVISTA: O minuto de fama do Recreio de Águeda no palco principal do futebol português recordado pelo goleador César

César, com as cores
do Águeda em 83/84
Fundado no longínquo ano de 1924 o Recreio de Águeda vive hoje na sombra de um passado que teve os seus lampejos de glória – sobretudo – na década de 80. No presente, o clube deambula pelos sombrios caminhos do futebol distrital da Associação de Futebol de Aveiro, muito distante do momento de glória vivido na temporada de 1983/84, altura em que este emblema pisou o palco principal do desporto rei português, o mesmo será dizer o Campeonato Nacional da 1ª Divisão. Uma aventura curta que até aos dias atuais é recordada na pacata e vistosa cidade banhada pelo rio que lhe dá o nome como o minuto de fama da coletividade que a 10 de abril último completou a bonita idade de 91 anos. Para muitos dos atuais adeptos do belo jogo o Águeda na 1ª Divisão Nacional é uma imagem desconhecida, irreal até, olhando para o presente, e nesse sentido, para descrever – ou reavivar memórias, no caso de adeptos de outras gerações – essa dita imagem nada melhor do que trazer até ao Museu Virtual do Futebol uma das personagens principais dessa atuação no palco maior do futebol português, Paulo César Mello de Albuquerque, ou simplesmente César, o nome de guerra com que este avançado brasileiro nascido no Rio de Janeiro em 1957 se deu a conhecer nos retângulos de jogo lusitanos.
Até aterrar em Portugal, César evidenciou o seu instinto predador ao serviço – sobretudo – de emblemas cariocas: revelado para o futebol nos escalões de formação do Bonsucesso, passou posteriormente pelo América, São Cristóvão e Campo Grande, tendo no início da década de 80 breves passagens pelo futebol baiano – ao serviço do Bahia e do Vitória – e paranaense – onde defendeu as cores do Colorado. O seu apurado faro pelo golo atraiu atenções do outro lado do Atlântico, e aos 26 anos viaja para o Velho Continente para representar um emblema que acabava de se sagrar campeão da Zona Norte da 2ª Divisão Nacional de Portugal e com isso garantia o inédito bilhete de ingresso no escalão maior do futebol deste país. É neste ponto que se dá início ao nosso papo com o ex-atacante César... 


Museu Virtual do Futebol (MVF): No verão de 1984 o César chega a Portugal para representar um clube que pela primeira vez na sua história atingia o patamar mais alto do futebol luso, a 1ª Divisão. Como é que surgiu o convite do Recreio de Águeda e que espectativas trazia na bagagem um avançado maduro – contava já com 26 anos de idade – e conhecido no futebol brasileiro. 
César (C): Os dirigentes do Águeda vieram ao Brasil procurar um avançado, sendo que o intermediário deles aqui indicou o meu nome, e assim assinei pelo clube. Em relação às expectativas para aquele novo desafio da minha carreira, elas passavam sobretudo por vencer na Europa e mostrar a minha capacidade.

MVF: Para além de espectativas, por certo que pela sua cabeça passavam outras questões, ou receios, na altura em que aceitou atravessar o Atlântico, isto é, sabia alguma coisa sobre o futebol português e muito em particular sobre o clube que vinha representar?
C: Sobre o futebol português em particular sim, conhecia o vosso futebol. Agora, sobre o Águeda não sabia nada. Na altura pela minha cabeça passavam as questões normais que um emigrante tem quando vai para um país novo, isto é, quais os costumes de lá, saber se nos vamos adaptar a esses mesmos costumes, etc. Mas eu levava uma vantagem comigo: o idioma. Falamos a mesma língua, e isso facilitou a minha adaptação. 
 
MVF: Sendo um carioca de gema, habituado à grande cidade do Rio de Janeiro, a chegada a uma pequena e pacata cidade como Águeda deve tê-lo impressionado, resta saber se pela positiva ou negativa...
C: O primeiro impacto foi de surpresa pelas dimensões (reduzidas) da cidade, além de que havia ruas "em cima, outras em baixo", ou seja, as ruas não eram todas planas! E esse foi um facto curioso que me chamou à atenção. Mas de um modo geral eu sempre tive a capacidade de me adaptar bem a situações novas, e em Águeda não foi exceção. O facto de a cidade ter dimensões reduzidas também era positivo a meu ver, já que as pessoas conheciam-se melhor umas às outras, havia mais convívio entre as pessoas da cidade, e esse acolhimento próximo ajudou-me na integração naquela nova realidade. Tive na verdade uma adaptação rápida e muito positiva. A única e pequena dificuldade inicial de adaptação foi ao nível do estilo tático que aqui se utilizava, ou seja, o facto de aqui se jogar (na época) com dois avançados centro, enquanto que no Brasil jogava-se com apenas um avançado e dois pontas ofensivos. Mas essa pequena dificuldade inicial foi cedo superada, como disse.
O plantel do Recreio de Águeda que disputou pela primeira e única vez - até hoje - a 1ª Divisão Nacional

MVF: E o clube, que impressões teve do Recreio de Águeda assim que chegou, isto em comparação, por exemplo, ao que estava habituado no Brasil. Que realidade encontrou?
C: Olha, na realidade o que mais me surpreendeu foi o piso do estádio do Águeda ser pelado! Eu nunca havia disputado campeonatos nesse tipo de piso. Mas isso acabou por não ser problemático para mim, já que me adaptei muito rápido. Os clubes aqui no Brasil, além do futebol, têm mais atividades sociais e o Recreio de Águeda não tinha nada disso quando lá cheguei. Agora, tinha uma massa adepta muito acolhedora, algo que acabou por me ajudar bastante na integração. Recordo-me que os adeptos do clube compareciam sempre nos jogos, incentivavam a equipa, e um pormenor curioso é que nunca nos vaiaram...


MVF: Na estreia na 1ª Divisão Nacional o Águeda era treinado por José Carlos, um ex-Magriço da seleção nacional que disputou o Mundial de 1966. O que recorda da relação profissional que com ele manteve durante uma época?
C: Confesso que a primeira impressão não foi boa, pois no primeiro diálogo que tivemos ele disse na frente de todos que não gostava de brasileiros. Isso magoou-me. Mas à medida que nos fomos conhecendo melhor o respeito passou a existir entre nós.


MVF: E o grupo de trabalho...
C: ...Excelente. Aliás, ainda hoje mantenho contacto com alguns, através das redes sociais.

Tibi, um dos mais experientes
do plantel do Recreio
MVF: Tal como o clube poucos eram os jogadores que tinham experiência do principal escalão do futebol em Portugal. As exceções eram talvez o guarda-redes, Tibi, o defesa-central brasileiro Paulo César e o médio Nogueira, que tinha sido campeão no Sporting. Acha que essa inexperiência acabou por pesar na curta aventura do clube na 1ª Divisão, uma vez que este acabou por descer? 
(Nota: o Águeda foi penúltimo classificado, contabilizando apenas 19 pontos, fruto de 7 vitórias alcançadas, 5 empates e 18 derrotas).
C: Não. Eu hoje em dia sou profissional na área da Educação Física, e na minha opinião o erro (do Águeda) passou pela organização da preparação. Alcançámos o pico de forma no meio da primeira volta, quando o deveríamos ter alcançado no meio do campeonato. Isso, deu origem a que quando chegou a reta final do campeonato o time já estava na fase descendente em termos de forma física. Veja bem, não estou a atribuir a responsabilidade ao treinador, mas a falta de um profissional da área – um preparador físico – era fundamental, para no momento exato programar a intensidade dos treinos. Mas na época, preparador físico era privilégio de poucos clubes.

MVF: Acha então que com uma melhor preparação física o Águeda talvez se tivesse aguentado na 1ª Divisão?
C: Melhor preparação não. A preparação física da equipa era excelente, faltou apenas conhecimento técnico e teórico da área para dosá-la no momento certo. A título de curiosidade, naquela época atingi a melhor forma física de toda a minha carreira!


MVF: Dos 25 golos marcados pelo Águeda nesse campeonato 10 foram da autoria do César, que foi o melhor marcador da equipa. Algum golo especial dessa dezena?
C: Talvez o meu primeiro golo em Portugal, contra o Farense (1-1) e o da primeira vitória (1-0) do Águeda na prova, contra o Varzim.
O onze do Recreio que no pelado do Municipal de Águeda recebeu o Benfica em jogo da 19ª jornada,
e em que César apontou o tento de honra dos locais
MVF: E o seu golo ao Benfica, apontado ao eterno guarda-redes Manuel Bento, em Águeda, na 19ª jornada, em que o Recreio perdeu por 4-1...
C: O que me lembro desse jogo é que o estádio tinha mais público do que a sua capacidade real. Havia pessoas dentro do pelado; a guarda da GNR a cavalo atrás das balizas e diga-se de passagem que o (árbitro) Carlos Valente foi corajoso em autorizar a partida naquelas condições. Mas o público deu um show de educação e cordialidade, há que dizê-lo.

MVF: A época de 83/84 foi mesmo a mais brilhante da vida do Recreio de Águeda. Com a descida à 2ª Divisão Nacional o clube foi desaparecendo com o passar dos anos, e hoje milita nos escalões distritais...
C: Sim, vejo isso com tristeza, pois gostaria muito de ver o Recreio de novo no mais alto escalão do futebol português.

MVF: E recordações da única época que passou em Águeda, algum momento que tenha sido mais curioso ou marcante – pela positiva ou pela negativa – e que queira partilhar nesta visita ao Museu Virtual do Futebol?
C: Descer de divisão foi talvez o momento mais frustrante. Mas bons momentos tive muitos, e seria injusto apontar apenas um. Quanto a histórias curiosas há uma que não esqueço. Quando cheguei a Águeda o presidente do clube disse-me que eu iria morar no “sítio tal” e eu respondi-lhe que não queria morar num sítio, mas sim numa vivenda ou num apartamento. Explicando isto: Sítio no Brasil é mais ou menos o equivalente a uma quinta em Portugal (risos). Só que eu não sabia o significado da palavra sítio em Portugal.

Manuel Oliveira
MVF: Águeda foi a sua porta de entrada no futebol português. Depois disso ficou por cá mais seis temporadas. As duas seguintes num histórico do futebol português, o Vitória de Setúbal. Que recordações tem dessas duas temporadas no Bonfim?
C: Novos ares, novos objetivos. Os individuais foram alcançados, ou seja, mantive a minha média de golos. Agora, em termos coletivos não alcançámos as competições europeias na primeira época e na segunda não conseguimos permanecer na 1ª Divisão.

MVF: Ainda no Estádio do Bonfim conviveu com grandes nomes do futebol português, entre outros o treinador Manuel Oliveira, que lembranças e opinião guarda deste mestre da tática?
C: Bom estratega, armava bem a equipa, mas até hoje não sei se para ele eu era um bom ou mau jogador, pois num dia ele dizia-me que eu era o melhor estrangeiro no futebol português, no outro eu não jogava na equipa titular! Mas apesar de tudo, fui o melhor marcador da equipa na primeira época – com 10 golos – , e na segunda fiquei um golo atrás do Fernando Cruz, que marcou 11 golos. Mas podia ter feito muitos mais golos, se tivesse jogado com maior frequência.

O cromo de César em Penafiel
MVF: Depois de Setúbal ainda passou uma temporada por Famalicão (2ª Divisão), outra em Penafiel e duas épocas no Olhanense (na 2ª Divisão), antes de voltar ao seu Brasil. Destaco a passagem por Penafiel, onde fez 15 golos, o seu melhor registo em Portugal numa só época, tendo ficado entre os 10 melhores marcadores do campeonato dessa temporada de 87/88. Que memórias regista dessa temporada em Penafiel?
C: Foi o grupo mais unido do qual eu fiz parte em Portugal. Éramos uma família, dentro e fora de campo, estávamos sempre juntos. As nossas famílias conviviam. Vivemos em festa durante um ano, dentro e fora de campo.

MVF: Nessa época ao serviço dos penafidelenses marcou dois golos ao Sporting em Penafiel, numa célebre goleada por 4-0. Lembra-se desse jogo?
C: Eu acho que esse jogo deve ter sido o maior feito do Penafiel na 1ª Divisão até hoje. Foi uma tarde inesquecível.

MVF: Em modo de despedidas. Que memórias - e desculpem desde já os eventuais leitores desta entrevista o uso e abuso de palavras como "memórias", "lembranças" ou "recordações", mas a nosso ver a sua aplicação torna-se obrigatória sempre que  antigos artistas da bola visitam o Museu - ficaram de Portugal?
C: Saudades da terra, dos amigos, da comida, mas não tenho saudades do frio (risos). Os piores momentos, talvez as saudades dos familiares que deixei aqui no Brasil. Mas, espero em breve poder retornar a esse maravilhoso país que é Portugal, e que me acolheu como um filho.


César no presente
MVF: E qual o clube que mais o marcou na sua passagem por terras portuguesas?
C: Todos me marcaram de uma ou de outra maneira. De todos trago algo dentro de mim e mesmo nos momentos difíceis, agradeço-lhes, por me terem ajudado a crescer como homem.


MVF: E o futebolista que mais o impressionou na sua passagem pelo futebol português...
C: Paulo Futre, pela qualidade, iniciativa e coragem, e ainda o Carlos Manuel, por ser um jogador quase completo...
MVF: Apontou mais de 40 golos no Campeonato Nacional da 1ª Divisão. Algum que recorde com mais nostalgia?
C: É difícil escolher um, pois cada golo é sempre especial, mas talvez o primeiro contra o Farense, na 5ª jornada, pois vai ficar na história como o primeiro golo do Recreio de Águeda na sua passagem pela 1ª Divisão. 

Vídeos: ALGUNS MOMENTOS PROTAGONIZADOS POR CÉSAR NA SUA PASSAGEM POR PORTUGAL (com a devida vénia aos detentores dos direitos destas imagens)

ÁGUEDA - FC PORTO (83/84)
VITÓRIA DE SETÚBAL - VITÓRIA DE GUIMARÃES (84/85)
VITÓRIA DE SETÚBAL - PORTIMONENSE (84/85)

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