 |
Manchete de Os Sports, dando conta do arranque dos campeonatos |
20 de
janeiro de 1935. 15H00, mais minuto, menos minuto, e a bola rola pela primeira
vez no Campeonato Nacional da 1.ª Divisão. Neste dia dava-se o pontapé de saída
do escalão maior do futebol português. Noventa primaveras cumpriram-se no início
deste ano de 2025 deste momento histórico do futebol luso. Coimbra, Porto e
Lisboa foram as cidades onde nesse longínquo dia se jogou a 1.ª jornada daquela
que é hoje em dia a competição mais importante do calendário futebolístico
português. Recorrendo às páginas do extinto Diário de Lisboa (DL), iremos
recordar um pouco as incidências de cada um dos quatro desafios que preencheram
a ronda inaugural de uma «inovação de que
muito há a esperar para bem do “apuramento” do jogo “association” em Portugal»,
assim dava conta o DL na sua edição desse (hoje) histórico dia. Olhando na diagonal para os resultados dos
quatros jogos podemos chegar à conclusão que as equipas de Lisboa levaram a
melhor sobre as suas adversárias do Porto e de Coimbra: duas vitórias e outros
tantos empates averbados. Mas olhando mais a fundo as incidências dos matchs, vemos mais do que isso. Vemos a
mestria e preponderância na manobra das respetivas equipas de alguns dos
grandes jogadores do futebol português das décadas de 20 e 30, casos do
sportinguista Soeiro, do belenense José Reis e do benfiquista Alfredo Valadas. Eles
foram, e no rescaldo de uma leitura pelas quatro crónicas dos desafios, as
estrelas daquela tarde histórica de 20 de janeiro de 1935. Já veremos porquê.
Dois fantasmas
futebolísticos do presente esgrimam argumentos no também (hoje) fantasmagórico Estádio do Lima
 |
A equipa do Académico do Porto na época de estreia da 1.ª Divisão |
Iniciamos
esta viagem pelo primeiro dia de vida da 1.ª Divisão Nacional – hoje denominada
de Liga Portugal, acrescida do nome do patrocinador, coisa que naquele tempo nem
se imaginava que viesse a acontecer! – no norte do país, no Porto, onde dois
emblemas cujo futebol – enquanto modalidade – já não existe nos dias de hoje, mediram forças numa das primeiras grandes catedrais do futebol português, o
Estádio do Lima. No seu esplendoroso relvado evoluíram o Académico do Porto e o
União de Lisboa. Os homens da capital entraram mais decididos no encontro,
dispuseram de oportunidades para abrir a contagem, até que à passagem dos 20
minutos Gerardo Maia aproveita uma confusão na área academista para fazer o
primeiro da tarde no Lima. A partir daqui, assiste-se a uma luta a meio campo,
com os portuenses a deterem o controlo dos acontecimentos, sendo que quatro
minutos volvidos dos festejos dos unionistas um cruzamento para a área lisboeta
termina no golo do empate, apontado por Jordão. Ainda antes do intervalo, o
árbitro Adelino Lima (de Coimbra) anula um golo ao Académico, por fora de jogo,
que na opinião do jornalista que escreveu a crónica do encontro, não existiu.
Na segunda metade o jogo melhorou a nível de emoção e de técnica, conforme dá
nota o escriva do DL. Assistiu-se a uma toada de parada e resposta em ambas os lados: Jordão desempatou a favor do Académico, para na resposta Armando Silva
fazer o 2-2. Gerardo Maia desfez o empate, mas quase em cima dos 90 minutos
Fernandes fez o resultado final (3-3) de um jogo entusiasmante que o Académico
merecia vencer, nas palavras do jornalista do DL, pela classe patenteada na
segunda metade.
Em dose tripla, Soeiro inicia a subida ao trono
de rei dos goleadores
 |
Manuel Soeiro |
Em
Coimbra, no mítico Campo de Santa Cruz, assistiu-se à primeira (de muitas)
demonstração de instinto felino do goleador desta edição inaugural do
campeonato. Manuel Soeiro, o seu nome. Com as bancadas a abarrotar pelas
costuras, o avançado nascido no Barreiro a 17 de março de 1909 ajudou o seu
Sporting a derrotar a Académica por concludentes 6-0. Nessa tarde, Soeiro faria
um hattrick, que o lançaria para o
título de melhor marcador do campeonato, com 14 golos. Ao longo das 14 jornadas
da competição o atacante que chegou ao Sporting em 1933 vindo do Luso do
Barreiro só não fez o gosto ao pé em três jornadas, sendo que este jogo
inaugural em Coimbra foi mesmo o seu mais produtivo em termos de golos na
caminhada dos leões na 1.ª Divisão de
34/35. Soeiro foi a grande referência atacante do Sporting até à chegada do
fenómeno Peyroteo ao clube em 1937, pese embora o avançado barreirense ainda
tenha dividido o protagonismo com o seu colega de posto nascido em Angola até
inícios da década de 40, antes do despoletar da mais famosa linha avançada
leonina, os Cinco Violinos. Mas
voltemos ao Campo de Santa Cruz na tarde de 20 de janeiro de 1935, para
registar que antes de Vieira da Costa (do Porto) apitar para o pontapé de
saída, os jogadores dos dois clubes trocaram entre si ramos de flores! Na descrição do cronista do DL, o Sporting saiu com a bola, jogando a favor do sol,
num jogo que teve um início veloz e entusiasmante, embora sem jogadas de grande
precisão. As bancadas manifestam-se quando o academista Rui Cunha teve duas
incursões à área leonina, as quais embora não tivessem causado calafrios a Dyson, arrancaram aplausos nas hostes estudantis.  |
O team da Académica de Coimbra em 34/35 |
A partida era jogada a um ritmo
acelerado de parte a parte. Até que ao minuto 10, Pacheco endossa o esférico a
Soeiro, que no interior da área faz um chapéu a Abreu e abre assim o marcador a
favor do Sporting. Após o golo os lisboetas passam a dominar a partida, dando
mais trabalho ao setor recuado dos estudantes, sendo que num desses lances o
guardião Abreu fez a defesa da tarde ao travar um remate venenoso de Soeiro. E
seria precisamente neste período de avalanche ofensiva leonina, que Soeiro
bisou no jogo, quando estavam decorridos 43 minutos. A segunda parte quase não
teve história, ou melhor, a história dos segundos 45 minutos resumem-se ao largo
domínio territorial dos leões, traduzido em mais quatro golos, dois de Mourão,
um de Ferdinando, e outro de Soeiro, que foi assim o grande herói da partida.
Alfredo Valadas abre o marcador nas Amoreiras e
entra na História da 1.ª Divisão
 |
Alfredo Valadas |
E nas
Amoreiras o Benfica recebia o Vitória de Setúbal, num jogo que ficaria na
história para o seu avançado Alfredo Valadas. Ainda antes do pontapé de saída
deste encontro, Virgílio Paula, dirigente da Federação Portuguesa de Futebol,
leu uma mensagem que o presidente daquele organismo, Cruz Filipe, havia escrito
propositadamente para aquele dia histórico do futebol em Portugal, dia em que
se inauguravam os campeonatos da liga, «chamando-lhes
(aos atletas) a sua atenção para o que estes campeonatos representam e pedindo
a sua compostura para prestígio do football português», assim dava nota do
DL. O Vitória dá o pontapé de saída de um match
que é jogado com entusiasmo por ambos os conjuntos, pese embora com muitas
cautelas defensivas. Até que logo ao minuto 6, e de forma algo inesperada,
tendo em conta que Benfica e Vitória de Setúbal até então nada tinham arriscado
no plano ofensivo, Valadas inaugura o marcador a favor dos lisboetas.
«Esperança atira a bola para dentro da grande área; Torres corre, e da direita
centra com boa conta; a defesa do Vitória não interceta, e Valadas, com
oportunidade, marca imparavelmente». Um golo histórico. O PRIMEIRO GOLO DO
CAMPEONATO NACIONAL DA 1.ª DIVISÃO. Alfredo Valadas o seu autor. Alentejano,
nascido em Mértola a 13 de fevereiro de 1912, Valadas iniciou a sua carreira no
Luso de Beja, transferindo-se depois para a capital onde começou por defender a
camisola do… Sporting. Fê-lo somente em duas temporadas, transitando, após uma
breve passagem pelo Sport Lisboa e Beja, para o Sport Lisboa e Benfica, onde
obteve fama e glória ao conquistar cinco campeonatos nacionais da 1.ª Divisão,
um Campeonato de Portugal e três Taças de Portugal. Após o golo, o Vitória
perde alguma vivacidade, permitindo ao Benfica jogar de forma tranquila e
perigosa quando se acercava da área sadina. E foi nesta toada que aos 14 minutos,
Valadas cobra de forma magistral um livre que leva a bola a anichar-se no fundo
das redes de Crujeira. 2-0. O Benfica dominava o encontro a seu bel prazer, e os
remates à baliza visitante sucedem-se de forma constante, obrigado Crujeira e a
sua dupla de centrais, composta por Álvaro Cardoso e António Vieira, a
trabalhos redobrados. «A linha média de
Setúbal está fazendo uma exibição medíocre, salvando-se apenas, por vezes,
Aníbal José. Assim, o labor do trio central do Benfica encontra-se bastante
facilitado», analisava o jornalista de serviço do DL neste jogo.  |
A equipa do Benfica em 34/35 |
Os
setubalenses dão um ar de sua graça à passagem do minuto 30, mas sem causar
grandes aflições ao setor recuado dos encarnados. Só por uma ocasião no
decorrer da primeira parte o guarda-redes benfiquista, Manuel Serzedelo, foi
chamado a intervir, fazendo-o de forma tranquila. A segunda metade inicia-se com
o Benfica de novo no ataque, destacando-se neste plano o avançado interior Luís
Xavier, «que peca por tentar o “shoot” de
muito longe». O Benfica continua a carregar, domina, mas não consegue
encontrar abertas para alvejar as
redes de Crujeira. Até que o Vitória começa a ganhar alguma confiança, e na sequência
de um pontapé de canto, João Cruz (que haveria de fazer furor anos mais tarde
com a camisola do Sporting) obriga Serzedelo a aplicar-se e a fazer a defesa da
tarde. Valadas tenta serenar os ânimos setubalenses com um remate que não leva
perigo à baliza sadina quase de seguida, mas seria através de um belo pontapé
do seu companheiro de equipa Torres que o Benfica faria o 3-0 que praticamente
sentenciou o encontro. E este novo golo viria a refletir-se na atitude dos
benfiquistas até final, visto que abrandaram o ritmo de jogo, permitindo ao
Vitória algumas incursões perigosas à área encarnada. A insistência sadina
seria premiada a 5 minutos do final, altura em que João Cruz encurtou
distâncias no marcador: «João Cruz conduz
a bola, Serzedelo a procurar arrebatar-lha, não o conseguindo», agradecendo
assim o extremo setubalense para selar o marcador. Na análise final ao jogo, o
jornalista do DL escreve que o Benfica ganhou com justiça, «e poderia ter
conseguido um resultado mais confortável, o que não obteve pela deficiência de
remate (…) enquanto que o Vitória jogou abaixo dos seus créditos».
José Reis inspirado trava o futuro campeão
nacional nas Salésias
 |
O poster do futuro campeão nacional: o FC Porto |
Também em
Lisboa, mas no Campo das Salésias, o Belenenses recebia o FC Porto. Os
nortenhos davam neste dia o primeiro passo rumo à conquista do título nacional
dessa temporada de 34/35, tornando-se assim nos primeiros campeões da 1.ª
Divisão Nacional, tal como hoje a conhecemos. Mas o arranque rumo ao título não
foi fácil para os portistas, já que não foram além de um empate a uma bola
nesta ronda inaugural, e muito por culpa do inspirado guardião belenense, José
Reis, que fez uma exibição soberba. O FC Porto joga a primeira parte a favor do
vento, e a sua linha ofensiva inicia o jogo com boas jogadas concluídas com
remates que são travados por Reis. Aos poucos, o Belenenses serena, e passa a
jogar com mais frequência no meio campo adversário «com energia e entusiasmo». Porém, era o seu guarda-redes quem mais
brilhava. «As melhores jogadas do
primeiro quarto pertencem a Reis, keeper do Belenenses, que se distingue e
provoca aplausos», dava nota o jornalista do DL encarregue de fazer a
cobertura da partida. O Belenenses cresce no jogo, e aos 20 minutos Bernardo
Soares lançou em velocidade José Luís, este aguenta a carga de Avelino, e posteriormente num
remate rasteiro bate o guardião portista, Soares dos Reis, abrindo assim o
marcador. Os portistas reagiram, e pouco depois no seguimento de um livre
apontado por Carlos Pereira, Reis volta a fazer uma grande defesa. Por esta
altura o FC Porto era mais acutilante no plano ofensivo, mas a defesa local
mostrava-se à altura para travar o ímpeto nortenho. «O Porto tem melhor técnica e classe, nota-se. Mas o Belenenses
opõe-lhe mais entusiasmo, técnica suficiente e ligação», assim descrevia os
acontecimentos o DL. Nos derradeiros 15 minutos da etapa inicial o FC Porto
assume o controlo territorial do jogo, mas não tem a pontaria afinada, com os
atacantes Acácio Mesquita a Pinga muito apáticos no desempenho das suas
funções. No entanto, a grande figura dos primeiros 45 minutos é José Reis, «e
só a ele se deve o não haver um empate».  |
José Reis |
A segunda parte não poderia ter
começado melhor para os visitantes, que chegaram ao empate por Carlos Nunes,
golo esse que foi descrito da seguinte forma pelo DL: «Logo no primeiro minuto Lopes Carneiro correu pelo seu corredor
direito, centrou bem, Reis defendeu a soco carregado por Acácio; Pinga com a
cabeça passou a Nunes, e este, também de cabeça, atirou às redes, e fez o
primeiro goal, vistoso e merecido». A partida ganhou ainda mais ânimo
depois desta entrada fulgurante dos portistas. Tão animado que João Nova se
entusiasmou demasiado quase de seguida e cometeu grande penalidade após ter
metido mão à bola dentro da área portista. Foi então a vez do outro Reis – o
Soares – brilhar. O guarda-redes nortenho defendeu o remate rasteiro de
Bernardo Soares e manteve o empate. O belenense Tomaz da Silva vê aos 52
minutos um golo invalidado, por fora de jogo. O público afeto à equipa da casa
protesta, ao mesmo tempo que incentiva os seus rapazes, mas até final o FC
Porto é mais equipa, domina, ao passo que o Belenenses tem apenas lances de
inspiração momentânea. «Na meia hora de
jogo a vantagem técnica e territorial é do Porto, embora o Belenenses reaja e
procure o desempate, que não merece, até agora, com justiça», analisa o
escriva do DL. O FC Porto ataca, mas depara-se sempre com a grande figura do
encontro, o guardião José Reis. Este homem, nascido em Loulé em 1911, e que tem
o seu nome na história como o primeiro guarda-redes do Belenenses a chegar a
internacional, esteve (quase) intransponível ao longo dos 90 minutos. Na reta
final do encontro, os azuis da Cruz de Cristo melhoram ligeiramente o seu futebol,
colocando de quando em vez em perigo as redes portistas. Porém, o marcador não
se altera mais até final, «resultado que se aceita, sem incoerência, apesar de
o FC Porto ter sido mais team». E foram
estes os (alguns dos) incidentes de quatro desafios que deram início a uma
longa maratona de desafios do escalão maior do futebol luso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário