terça-feira, janeiro 21, 2014

Catedrais Históricas (14)... Campo do Ameal

A imagem de marca do Ameal: a sua bela bancada central
ornamentada com o imponente relógio no topo.
É apontado como um dos cenários mais idílicos do futebol português da primeira metade do século XX. Recordar a sua história é ainda hoje um motivo de orgulho para os afetos ao centenário e histórico Sport Progresso, um dos populares emblemas da cidade do Porto. Levar o nosso pensamento a fazer uma visita ao mítico recinto é igualmente uma oportunidade para recordar as aventuras futebolísticas de nomes como Mihaly Siska, Norman Hall, Acácio Mesquita, Augusto Silva, Pepe, e tantas outras lendas do futebol luso desses saudosos anos. Sem mais demoras abram-se as portas do Campo do Ameal, a catedral história que hoje iremos visitar.
Falar do Ameal é lembrar também grande parte da vida do agremiação desportiva que lhe deu o ser, o Sport Progresso, emblema da freguesia de Paranhos fundado a 15 de agosto de 1908, que noutros tempos chegou calcarrear os patamares mais altos do desporto rei lusitano, mas que hoje vive quase esquecido nos caminhos secundários do futebol distrital. Foi pois nos tempos de maior glamour do Sport Progresso, dirigido naqueles longínquos anos 20 por gente dinâmica e empreendedora, que o Campo do Ameal passou do sonho à realidade.
A primeira pedra é lançada em 1922, e um ano mais tarde o sonho dá então lugar à realidade. É inaugurado oficialmente a 10 de junho desse ano de 1923, e para a festa o Progresso convida os gigantes vizinhos do FC Porto, Boavista, e Salgueiros, que entre si disputam uma amistosa e animada maratona de jogos de futebol.
Uma vista panorámica do retângulo de jogo
O Campo do Ameal destacava-se desde logo pela beleza da sua bancada central, ornamentada com um imponente relógio na parte superior da estrutura que se fazia sobressair como a sua imagem de marca. De certa forma a lembrar os míticos recintos do futebol britânico. A modernidade e beleza do Ameal não passaram despercibidos aos dirigentes do futebol português daqueles anos, que para o seu retângulo de jogo agendaram inúmeros e decisivos encontros do Campeonato de Portugal, na altura a competição mais importante do reino da bola lusitano. Um desses encontros ficou mesmo para a história da citada competição, tendo ocorrido na temporada de 1925/26, altura em que a União Portuguesa de Futebol (UPF) decidiu que a final do campeonato dessa época seria jogado no Ameal.
Frente a frente estiveram Belenenses e Marítimo, duas equipas que disputaram uma partida que durou apenas 60 minutos!!! Sobre ela o Museu Virtual do Futebol já traçou algumas linhas aquando da recriação desse Campeonato de Portugal numa outra visita ao passado, linhas essas que passamos então a recordar.

Marítimo ataca a baliza belenense
na final dos 60 minutos
(...) jogo decisivo que a UPF agendou para o Porto, mais precisamente para o Campo do Ameal, propriedade do Progresso. Decisão que fez estalar o verniz entre jogadores e dirigentes belenenses. Cientes da intensa rivalidade entre Lisboa e Porto os homens da Cruz de Cristo receavam ser... mal recebidos na Invicta, e como tal protestaram o palco da final. A UPF fez ouvidos moucos e os belenenses lá foram contrariados para o Porto onde - tal como haviam previsto - foram recebidos com uma cruel hostilidade pelo público portuense. Adeptos estes que, esquecendo a humilhação que o Marítimo havia aplicado ao FC Porto semanas antes, tomaram partido do conjunto da Madeira do príncipio ao fim do jogo ocorrido a 6 de junho.
Os jogadores de Belém entraram no Ameal debaixo de um coro ruidoso de assobios e apupos, ambiente que desde logo os enervou, e condicionaria em grande parte do encontro. O portuense José Guimarães foi o árbitro de um jogo que até começou equilibrado, com luta intensa a meio campo. Com o avançar do relógio, e com os gritos de incentivo ao Marítimo como som de fundo, a partida foi endurecendo, o que favorecia os rapazes da ilha da Madeira, mais resistentes do ponto de vista físico. Madeirenses que aos 35 minutos dispuseram de uma oportunidade sublime para chegar à vantagem, na sequência de uma grande penalidade assinalada a castigar uma falta belenense. Oportunidade que seria desperdiçada, e o encontro lá continuou com o nulo no marcador até ao intervalo. 


Mais uma investida madeirense às redes azuis
Na etapa complementar o Belenenses entrou melhor, mas seria o Marítimo a chegar ao golo à passagem do minuto 55 por intermédio de José Fernandes, na cobrança de um livre direto.
Cinco minutos volvidos Ramos faria o 2-0, e o Campo do Ameal explodiu de alegria, ao mesmo tempo em que os jogadores lisboetas eram provocados e ridicularizados pelo público ali presente. Belenenses que protestaram vincadamente o segundo golo insular, alegando irregularidades. Augusto Silva, um dos melhores jogadores dos azuis, terá mesmo puxado o braço do árbitro, pedindo-lhe satisfações, ao que este sem mais demora deu ordem de expulsão ao belenense. Silva recusou-se a sair do campo, e a desordem instalou-se no Ameal. O público continuava a insultar os lisboetas, agora mais do que nunca, e só a intervenção pronta da polícia a cavalo terá evitado males maiores. Augusto Silva continuava a recusar sair do campo, e assim sendo, o árbitro, após consultar os dirigentes da UPF ali presentes, decidiu por encerrar o jogo, e consequentemente atribuir o título de campeão ao Marítimo.

A festa estalou de pronto. Era como se os madeirenses estivessem a jogar em casa! Os lisboetas não calaram a sua revolta, e no dia seguinte a imprensa da capital saia mais uma vez em defesa dos seus: «Caído o verniz da compustura, os facciosos portuenses deram largas ao seu despeito e ao seu rancor a Lisboa, os jogadores do Belenenses tiveram de passar por entre alas de público que os cobriu de vaias, dirigindo-lhes  os insultos mais soazes. Estiveram iminentes vários conflitos...», assim escrevia Ribeiro dos Reis no Sport de Lisboa. 


Uma imagem triste: a demolição
do histórico Campo do Ameal
Polémica q.b. a única final realizada no Ameal. Sem dúvida. O seu retângulo de jogo iria receber nas épocas seguintes mais alguns encontros do Campeonato de Portugal, muito por culpa do FC Porto, o principal emblema da cidade, que face às reduzidas dimensões do seu Campo da Constituição se viu obrigado a bater à porta do vizinho Progresso para que este lhe cedesse o seu mítico campo para ali disputar as partidas de maior cartaz. E momentos de glória foi coisa que não faltou aos portistas naquela casa...
Mas como quase tudo na vida também o Ameal teve o seu fim. Por volta de 1934 o Sport Progresso começava a enfrentar graves problemas financeiros que colocavam em causa a sua sobrevivência. Atolado em dívidas, e sem condições para manter o campo em funciomaneto, o clube tenta encontrar compradores para o recinto. Seguem-se nos anos seguintes um rol de peripécias, avanços e recuos, o campo chega a ter três proprietários (!), mas não recupera o charme da década anterior, ao qual nem a seleção nacional conseguiu resistir, já que também no seu retângulo mágico efetuou alguns jogos internacionais.
Em 1947 o Sport Progresso muda-se de armas e bagagens para o outro lado Circunvalação - zona onde se situava o recinto - e ai assenta arraiais no seu novo campo de jogos, o Queirós Sobrinho, que ainda hoje se encontra de pé. Quanto ao velhinho e mítico Ameal, sem utilização nem consequente rentabilidade, acaba por ser demolido pouco tempo mais tarde, aparecendo no seu lugar uma triste e cinzenta urbanização que eclipsou de vez as alegres e coloridas bancadas do Ameal sempre que o seu retângulo de jogo era palco de momentos de magia futebolística.

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