terça-feira, maio 09, 2023

Histórias do Futebol em Portugal (40)... Há 20 anos Portugal conquistou a Europa em Terras de Viriato

Fazer a festa de um título importante em casa tem sempre um sabor especial. Na história do futebol português o país já viveu em três ocasiões distintas a alegria suprema da conquista de títulos internacionais por parte das nossas seleções na condição de anfitrião. Dois deles já aqui foram evocados no Museu Virtual do Futebol, mais concretamente o cetro de campeão do Torneio Internacional de Juniores (que mais tarde seria rebatizado pela UEFA de Campeonato da Europa de sub-21) de 1961, e o pomposo título de campeão do Mundo de sub-20 selado em 1991. Ambas estas conquistas tiveram a curiosidade de ser confirmadas em Lisboa, no antigo Estádio da Luz, cenário contrário à terceira conquista internacional do jovem futebol lusitano, sobre a qual hoje vamos traçar algumas linhas e que aconteceu há precisamente 20 anos!

Pois é, assinalam-se neste ano de 2023 duas décadas da passagem do Campeonato daEuropa de sub-17 do ano de 2003, que teve como sede o nosso país entre os dias 7 e 17 de maio. Esta competição da UEFA teve ainda a missão, ainda que numa escala pequena, de testar a capacidade de organização de Portugal para a grande competição que o nosso país iria acolher no ano seguinte: o Euro 2004, ao nível de escalão de seniores, a mais importante prova de futebol continental da UEFA ao nível de seleções.

Dessa forma, o Euro 2003 de sub-17 foi então um mini-teste que a nação lusa passou com distinção, não só na parte organizativa, mas, e acima de tudo, na parte desportiva.  

Há que abrir um parêntese nesta história para lembrar que Portugal já por quatro ocasiões havia vencido o título europeu equivalente a este escalão, isto é, o cetro de campeão da Europa de sub-16 - em 1989 (na Dinamarca), em 1995 (na Bélgica), em 1996 (na Áustria), e em 2000 (em Israel). No entanto, nesta altura a competição denominava-se de Campeonato da Europa de sub-16, tendo a UEFA em 2001 alterado as regras ao mudar o limite de idades do torneio de 16 para 17 anos, rebatizando assim a competição para Campeonato da Europa de sub-17. Talvez por isso, possamos considerar o "ano zero" da competição em 2002, precisamente um ano antes de Portugal acolher o evento.

Portugal sagrou-se em casa (Viseu) campeão da Europa de sub-17

E a grande festa do futebol jovem continental em 2003 fez-se no interior norte do nosso país, nomeadamente em Viseu, Chaves, Santa Marta de Penaguião, Nelas, Santa Comba Dão, Mangualde e Vila Real, as localidades cujos estádios acolheram a fase final do Euro 2003.

Além da nossa seleção marcaram presença em terras lusas os selecionados de Espanha, Áustria, Dinamarca, Inglaterra, Hungria, Itália e Israel. O combinado luso, orientado por António Violante, ficou no Grupo A juntamente com húngaros, dinamarqueses e austríacos, sendo que o início da caminhada rumo à glória esteve longe de ter sido fácil.

Para atacar o título continental em casa, Violante escolheu 18 jogadores, nomeadamente: 1 - Pedro Freitas (do Vitória SC), 2- João Dias (Braga), 3- Tiago Gomes (Benfica), Miguel Veloso (Sporting), 5- Tiago Costa (FC Porto), 6- Paulo Machado (FC Porto), 7- Vieirinha (Vitória SC), 8- João Moutinho (Sporting), Carlos Saleiro (Sporting), 10 - Márcio Sousa (FC Porto), 11- Hélder Barbosa (FC Porto), 12- Mário Felgueiras (Sporting), 13- Vítor Vinha (Académica), 14- Paulo Ricardo (Vitória SC), 15- João Pedro (Braga), 16- Bruno Gama (Braga), 17- João Coimbra (Benfica), e 18- Manuel Curto (Benfica).

Manuel Curto, o herói luso da fase de grupos

Primeira fase 100% vitoriosa

No Estádio do Fontelo, em Viseu, os jovens portugueses defrontaram na 1.ª jornada da fase de grupos a Dinamarca, que foi um "osso duro de roer". A prova disso é que ao intervalo Portugal empatava a duas bolas com os vikings, isto depois de ter entrado em cena a perder com o combinado nórdico. Mads Torry abriu o marcador aos 32 minutos na sequência de uma bela jogada individual. O nórdico pegou na bola na zona de meio campo, tirou Miguel Veloso do caminho, e em velocidade correu em direção à baliza de Mário Felgueiras, desferindo um remate rasteiro que acabou no fundo das redes.

Embalados pelo seu público os lusos reagiram dois minutos depois, na sequência de um remate certeiro de João Pedro que bateu o guardião Kenneth Nielsen. Portugal estava com a "corda toda", e não demorou muito para que Paulo Ricardo aparecesse ao segundo poste, sem marcação, para fazer o segundo golo da nossa seleção, com um remate ao ângulo que levou o Fontelo ao delírio. Porém, já perto do apito para o descanso Torry bisou na partida . O Ás de Trunfo (Manuel Curto) dos lusos saltou do banco numa segunda parte onde as duas equipas continuaram a praticar um futebol de ataque. Aos 55 minutos Manuel Curto foi o autor do tento da vitória e o herói desse dia 7 de maio de 2003.

Manuel Curto que voltaria dois dias depois a vestir a capa de herói nacional, quando no Estádio Municipal Dr. Orlando Mendes, em Santa Comba Dão, marcou o tento solitário da vitória contra a Áustria que garantiu desde logo a passagem às meias finais do torneio. Para este encontro com a seleção austríaca o selecionador António Violante fez apenas uma alteração relativamente ao jogo de estreia, dando a titularidade a Curto em detrimento de João Coimbra. Foi uma partida onde se lutou muito a meio campo, em que se notou uma Áustria a praticar um futebol paciente e de passes curtos ante uma seleção lusa de futebol mais explosivo, embora sem criar grande perigo junto da baliza à guarda de Robert Olejnik nos primeiros dez minutos. E à passagem do quarto de hora os portugueses fizeram jus à sua técnica superior, quando Manuel Curto à entrada da área rematou, com o pé esquerdo, o esférico para o fundo da baliza, fazendo desta forma o tento solitário do encontro, que garantiu então a passagem às meias-finais.

Jogo com a Áustria

A 11 de maio, contra a Hungria, no Fontelo, foi o confirmar da supremacia lusa no grupo, na sequência de mais um triunfo (2-0), com Bruno Gama e Vieirinha a fazerem o gosto ao pé. Portugal venceu com mérito a partida, teve mais posse de bola e criou um maior número de oportunidades. Já com a passagem à fase seguinte garantida, António Violante aproveitou este jogo para dar minutos a jogadores menos utilizados nos dois encontros anteriores, casos de Pedro Freitas, Vítor Vinha, Tiago Costa, ou um tal de João Moutinho. Os portugueses exibiram neste terceiro jogo um futebol de ataque desde o apito inicial, e a prova disso é que com apenas quatro minutos decorridos a nossa seleção tinha já quatro cantos conquistados a seu favor. Apesar desta avalanche ofensiva os húngaros conseguiram sair para o intervalo com a sua baliza inviolável, muito tendo contribuído para isso a bela exibição do seu guarda-redes, que por diversas ocasiões tirou o "pão da boca" aos "famintos" avançados lusos.

A Hungria ainda esboçou uma reação no reatamento, mas foi "sol de pouca dura", pois aos 50 minutos Bruno Gama abriu o marcador através de um potente remate de fora da área, após cruzamento de João Dias, na direita do seu ataque, que foi mal aliviado por um defesa magiar. Aos 60 minutos um passe magistral de Miguel Veloso encontrou Vieirinha solto de marcação, mas este, só com o guarda-redes pela frente, atirou de forma incrível a bola por cima do travessão. Vieirinha redimiu-se do erro três minutos volvidos. Recolheu a bola no meio campo contrário e com um remate pleno de força de fora de área colocou o esférico no canto esquerdo da baliza húngara, selando assim a vitória em 2-0, que permitiu que Portugal terminasse a primeira fase no lugar mais alto do grupo com 9 pontos.

Portugueses ajoelhados no momento da marcação dos penáltis ante os ingleses

Saiu a lotaria (dos penáltis) aos portugueses!

A fasquia da dificuldade aumentou nas meias-finais, fase em que a favorita (à conquista do título) Inglaterra se atravessou no caminho dos meninos de António Violante. Os britânicos tinham jogadores cujo enorme talento viria a ser confirmado na mediática Premier League inglesa anos mais tarde, casos de James Milner, Aaron Lennon, Tom Huddlestone, ou Steven Taylor. E as dificuldades para os lusos vieram a confirmar-se, como comprova o resultado de 2-2 no final do tempo regulamentar e só no desempate por grandes penalidades os lusos fariam a festa.

Quanto ao jogo jogado, passe a expressão, o público que praticamente lotou o Estádio do Fontelo assistiu a um recital de futebol de ataque de parte a parte. Do lado de Portugal, Vieirinha era, pelo lado direito do seu ataque, uma constante dor de cabeça para a defesa britânica, ao passo que do lado contrário (isto é, do lado esquerdo do ataque inglês) James Milner punha através das suas arrancadas diabólicas o setor mais recuado dos lusos em alerta máximo. A primeira grande oportunidade de golo chegou aos sete minutos através da cabeça de Manuel Curto, que fez a bola passar a escassos centímetros da baliza de Thomas Heaton. Este lance como que espicaçou a Inglaterra, que um minuto volvido abriu o marcador por intermédio de Dean Bowditch, que tirou o melhor aproveitamento do adiantamento de Mário Felgueiras para brindar este com um chapéu que aninhou a bola no interior das redes. Porém, a vantagem durou pouco, já que dois minutos passados uma falta de Martin Cranie em zona perigosa deu origem a um livre para Portugal sobre o lado direito do seu ataque. Na cobrança, Vieirinha enfiou de forma magistral a bola na "gaveta", vulgo, no ângulo da baliza, restabelecendo a igualdade. Depois disto os lances de perigo sucediam-se para os dois lados num jogo que estava frenético. E seria num desses lances que um remate pleno de êxito à entrada da área lusitana deixou a Inglaterra novamente na frente do marcador. James Milner foi o autor desse golo. Depois disto os ingleses colocaram alguma "água na fervura" do seu jogo, isto é, passaram a jogar com menos intensidade, tentando gerir a vantagem no marcador, e dessa forma mantiveram até ao intervalo a seleção lusa longe da sua baliza. Portugal arriscou pois tudo na segunda parte, e o primeiro sinal de perigo foi dado logo a abrir por Paulo Machado, com um remate que não passou muito por cima da barra da baliza inglesa. Vieirinha ia assustando o guardião contrário nas conversão de alguns livres, mas estava complicada a tarefa de furar a muralha britânica. Foi então que o selecionador António Violante decidiu mexer na equipa na entrada para os últimos 20 minutos, colocando em campo os avançados Carlos Saleiro e Hélder Barbosa. Com o ataque refrescado os portugueses passaram a alvejar com maior frequência a baliza de Heaton, mas a bola teimava em não entrar. O relógio assinalava os 80 minutos (último minuto do tempo regulamentar dos jogos deste escalão) e a sonhada final parecia cada vez mais longe dos portugueses, até que já no tempo de compensação Carlos Saleiro aproveitou uma das raras aberturas da defesa britânica para desferir um cabeceamento certeiro para o fundo das redes, após um cruzamento de Bruno Gama. Os 7500 portugueses no Fontelo explodiram de alívio e alegria. O jogo ia assim para as fatídicas grandes penalidades. Aí, os lusos foram mais competentes, já que só falharam um remate, ao passo que os britânicos desperdiçaram três, destacando-se aqui a inspiração do guarda-redes luso Mário Felgueiras.

Márcio Sousa foi a grande figura portuguesa na final

Inspiração de Márcio "Maradona" Sousa acabou em festa

Portugal estava assim na grande final do dia 17 de maio, onde iria defrontar outra grande favorita a levar o "caneco" para casa, a Espanha, a recordista de títulos europeus no escalão de sub-16: seis no total. E esta era uma seleção espanhola que surgia em Portugal cheia de promissores craques, sendo que alguns se vieram a revelar no patamar sénior, como David Silva, por exemplo, que fez parte da era dourada do futebol sénior do país vizinho, isto é, foi pedra fundamental das vitórias de La Roja em dois Europeus (2008 e 2012) e um Mundial (2010).

E atmosfera que envolveu a grande final do Euro 2003 foi enorme por toda a região do Dão. Houve uma corrida louca aos bilhetes, que rapidamente esgotaram, sendo até necessária a intervenção da GNR para acalmar os ânimos de centenas de adeptos que nas vésperas do jogo decisivo se deslocaram à sede da Associação de Futebol de Viseu na tentativa de assegurar um dos 200 bilhetes que este organismo colocou à venda à última da hora. Mais serenos estavam os miúdos da nossa seleção, que na véspera da final foram relaxar até às termas de S. Pedro do Sul. Quiçá inspirados pela beleza bucólica desta região os nossos jogadores iriam contrariar o poderio - e favoritismo - da Espanha, com quem tinham medido forças uns meses antes desde Europeu. 

João Coimbra em luta com um espanhol na final de Viseu

Crença, atitude e um estádio repleto de 9000 almas lusitanas ajudaram Portugal a escrever mais uma página de glória no seu palmarés futebolístico na sequência de um triunfo épico e emocionante por 2-1. Márcio Sousa, que neste Euro envergou a camisola número 10, fez jus ao dorsal e foi o herói ao apontar os dois golos lusos. O pequeno Maradona, como na altura era conhecido, bateu António Adán - esse mesmo, o atual guarda-redes do Sporting - aos 22 e aos 47 minutos, sendo que pelo meio o génio que haveria de deslumbrar no Valência e Manchester City, David Silva, marcou para os nuestros hermanos. A imprensa rotulou esta como a melhor exibição do conjunto português ao longo de toda a competição, coroada com um título histórico. No final, foi a natural explosão de alegria nas bancadas e no relvado do Fontelo, de onde o selecionador António Violante confessaria que grande parte desta vitória se ficou a dever ao apoio incansável do público presente no estádio. Talvez por isso atirou: «Dedico-lhes esta vitória».

Para a eternidade aqui fica a ficha da grande final do dia 17 de maio de 2003:

Portugal: Mário Felgueiras, João Dias, Miguel Veloso, Paulo Ricardo, Tiago Gomes, Paulo Machado, João Coimbra (Manuel Curto, 70), Márcio Sousa (João Moutinho, 77), João Pedro (Bruno Gama, 52), Vieirinha, Saleiro.

Espanha: António Adan, Ruz Baños (César Angulo, 72), Sérgio Ortega, César Arzo, Raul Raposo, Markel Bergara ("Xisco" Nadal, 63), Sisinio Martínez, David Silva, Jurado Marín, José Cases (Marcos Ramiro, 49), David Sánchez.

O então presidente da FPF, Gilberto Madaíl, celebra a conquista com o herói Márcio Sousa

Finda esta epopeia, e como sempre acontece no rescaldo das grandes conquistas do futebol de formação, jogadores houve que tiveram carreiras brilhantes no patamar sénior, casos de Miguel Veloso, Vieirinha, ou João Moutinho. Sobretudo estes três, que atingiram não só a seleção nacional principal como também atuaram (ou ainda atuam) em emblemas de nomeada do futebol nacional e/ou internacional. Vieirinha e João Moutinho atingiriam mesmo o topo da carreira em 2016, quando em Paris venceram o título europeu pela seleção principal. Outros, tiveram carreiras medianas, como por exemplo João Coimbra, Carlos Saleiro, Bruno Gama, Hélder Barbosa, ou Paulo Machado. Os restantes, porém, quase não saíram do anonimato no patamar sénior, não invalidando isso que também eles ajudassem a escrever esta histórica página do futebol nacional há exatamente duas décadas.

Vídeo: Resumo da Final do Euro 2003 - Portugal - Espanha


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