terça-feira, setembro 13, 2022

Histórias do Futebol em Portugal (37)... 100 anos se passaram desde a primeira visita de uma equipa do continente aos Açores (onde se jogou pela primeira vez futebol em Portugal?)

Vista da cidade da Horta no início
da década de 20 do século passado
Após um curto período de férias, estamos de volta para continuar a esmiuçar - e recordar - a(s) história(s) do Belo Jogo. Porém, para os verdadeiros apaixonados o futebol nunca é esquecido, nem mesmo nas férias, e vem isto a propósito da recente estadia do autor destas linhas nos Açores, mais concretamente na encantadora ilha de São Miguel. Ali, além de conhecer e desfrutar do verde majestoso daquela que é a maior ilha do arquipélago, travei conhecimento com um par de factos que porventura para a maioria das pessoas pode nos dias de hoje passar despercebido. Mas, no Museu Virtual do Futebol, nada é deixado ao acaso, e é nesse sentido que hoje iremos recordar o centenário da primeira viagem de uma equipa do continente português às encantadoras ilhas açorianas. Pois é, foi há precisamente 100 anos que uma equipa continental cruzou pela primeira vez o Atlântico rumo aos Açores para ali defrontar um combinado local numa partida de futebol. Estávamos em 1922, e tal honra pertenceu ao Casa Pia Atlético Clube, então um dos mais reputados clubes da capital portuguesa, já que com apenas dois anos de existência tinha no currículo o título de campeão regional de Lisboa alusivo à temporada de 1920/21. Os casapianos tinham uma equipa de respeito, com nomes como José Maria Gralha, Silvestre Rosmaninho, Clemente Guerra, António Pinho, ou Cândido de Oliveira. Este facto, como já referimos, foi descoberto, por quem vos escreve, em solo açoriano, enquanto vasculhava a história do futebol das ilhas, tendo apanhado esta preciosidade através do jornal Tribuna das Ilhas.

Mas antes de aprofundarmos este capítulo da história, não será por demais olhar para outro que nos saltou à vista durante esta estadia nos Açores. Um facto que não é 100 por cento claro, pois há apenas ligeiros vestígios de que pode ser verídico, mas que há sê-lo pode alterar e muito o início da história do futebol português.

Terá sido nos Açores que se jogou futebol em Portugal pela primeira vez?

A capa do livro "My Sweet Fayal",
onde consta que na década de 50
do século XIX se jogou futebol
naquela ilha
A História diz-nos que foi Guilherme Pinto Basto que introduziu o futebol no nosso país, e que oficialmente o pontapé de saída do futebol luso é dado em outubro de 1888, tendo como cenário Cascais, mais concretamente os terrenos da Parada, onde um grupo de 23 aristocratas da sociedade lisboeta da época, sendo que entre estes figuravam os irmãos Pinto Basto, deram vida a esse jogo. Outros historiadores defendem a teoria de que a primeira vez que a bola rolou em Portugal foi na Madeira. A efeméride é atribuída Harry Hilton, um jovem oriundo de uma família aristocrata inglesa radicada naquela ilha do Atlântico que em 1875 terá reunido um grupo de amigos para na Camacha dar uso ao seu mais recente brinquedo trazido da sua Inglaterra: uma bola de futebol. Mas nos Açores descobrimos uma terceira teoria, a de que foi na Ilha do Faial que se jogou futebol pela primeira na pátria lusitana.

Quem o disse foi o famoso banqueiro norte-americano John Pierpont Morgan (1837 – 1913), que durante a sua estadia na citada ilha, entre 1852 e 1853, deu nota de que marinheiros ingleses que por ali passavam nos tempos livres divertiam-se a jogar... football. Morgan relatou este e outros factos no diário que escreveu durante a sua permanência (por motivos de saúde) na ilha, quando contava então com apenas 15 anos de idade. Diário esse que foi num passado recente descoberto pela professora Elisa Gomes da Torre, e que foi transformado no livro "My Sweet Fayal". Obra esta - da autoria de Elisa Gomes da Torre - onde são transcritos vários momentos da permanência de Morgan na ilha, entre cartas e outros documentos manuscritos do futuro banqueiro, o qual, inclusive, dá nota de que no convívio diário com outros habitantes ilustres do local passava o tempo a jogar bowling, ténis e a pontapear num relvado uma bola de football. Isto não só deita por terra a teoria de que o futebol chegou aos Açores em 1895, como, e principalmente, faz eclipsar a ideia de que tenha sido na Madeira (1875) ou no continente (1888) que o futebol tenha sido jogado pela primeira vez em Portugal. É um ponto de interrogação, é certo, mas este depoimento de J.P. Morgan pode alterar o curso da nossa história futebolística.

Casa Pia recebido em clima de euforia no Faial

Fayal SC, o mais antigo clube açoriano,
em 1909
Facto verídico é que foi de igual modo no Faial, e na cidade da Horta, mais concretamente, que não só uma equipa do continente luso jogou pela primeira vez nas ilhas açorianas, como também foi nesta ilha do grupo central do arquipélago que nasceu o clube mais antigo daquelas paragens. O Fayal Sport Club foi fundado a 2 de fevereiro de 1909, e tem a honra de não só ser apenas o emblema mais antigo dos Açores, como também o sétimo a ver a luz do dia em termos nacionais, a seguir ao FC Porto (1893), Vianense (1898), Boavista (1903), Benfica (1904), Sporting (1906), e Leixões (1907), isto no que concerne a clubes que ainda estão no ativo.

O Fayal Sport Club foi criado por 21 jovens, na sua maioria estudantes, aos quais se juntaram três cabografistas, um empregado comercial, um tipógrafo, um maquinista e um barbeiro, quase todos eles faialenses.

Treze anos volvidos da sua formação o emblema açoriano endereçou o simpático convite ao campeão de Portugal da temporada de 21/22, o Sporting, para realizar na Horta três jogos amigáveis. O Fayal Sport Club era então treinado por um funcionário da companhia inglesa do cabo submarino, o inglês R. A. Peck. Porém, uma indisponibilidade de última hora dos campeões de Portugal fez com que o Casa Pia viajasse no lugar dos leões para o Faial a fim de medir forças com o até então único clube daquela ilha. A expectativa dos faialenses era enorme, não só porque pela primeira vez um clube do continente os visitava, mas também porque os casapianos eram um emblema de peso. O clube capitaneado pelo mestre Cândido de Oliveira viajou para os Açores a bordo do navio "Roma", que atracaria na Horta em véspera de São João - 23 de junho. A comitiva casapiana era integrada pelos seguintes futebolistas: Clemente Guerra, António Pinho, José Gomes dos Santos, Henrique Gouveia, José Maria Gralha, Silvestre Rosmaninho, Alberto Loureiro, Aníbal Santos, Aníbal Cordeiro, Pinto de Magalhães, Manuel Cruz, Carlos Melo, Augusto Luís Gomes e Cândido de Oliveira. Os continentais estiveram cerca de uma semana no Faial, tendo ficado hospedados no Faial Hotel. Na chegada à Horta foram recebidos por uma multidão em êxtase, tendo sido brindados com flores e foi-lhes oferecido nessa noite uma taça de champanhe na Sociedade "Amor da Pátria", um edifício imponente e majestoso com um longo e vasto currículo político e cultural na ilha do Faial.

A famosa equipa do Casa Pia, no início dos anos 20
O primeiro jogo entre os dois clubes, ao qual ocorreu uma multidão de 5000 pessoas, não apenas da Horta, como também de muitas freguesias vizinhas e até mesmo das ilhas do Pico e de São Jorge, foi realizado a 25 de junho, e terminou com a vitória dos gansos por 2-0. Mais do que um acontecimento desportivo este foi um momento social, tendo a partida sido antecedida pela atuação de bandas filarmónicas locais. No dia 27 realizou-se o segundo encontro, tendo o Casa Pia vencido por 4-1, sendo que o marcador do golo de honra dos faialenses foi Júlio Dutra de Andrade. Este homem é ainda hoje reconhecido como uma das mais ilustres figuras nascidas no Faial, tendo-se distinguido no ensino, na poesia, no jornalismo, na música, na etnografia e no desporto, onde foi um atleta multifacetado, já que se distinguiu em modalidades como o futebol, o atletismo, o remo, a natação, o ténis e o hóquei em campo, e em todas elas defendendo as cores do seu Fayal Sport Club. O golo de Andrade foi descrito no jornal local Democracia de 30 de junho de1922 - e reproduzido pelo jornal Tribuna das Ilhas em 2017 - da seguinte maneira: «Júlio Andrade apodera-se da bola, foge pela esquerda numa corrida vertiginosa, e sempre em linha recta sem se desviar de ninguém, passa além das defesas do Casa Pia, e com um pontapé soberbo, cola a bola às redes casapianas. A assistência, de pé, electrizada, delira de entusiasmo, e até que a bola volte ao centro, as palmas parece não terem fim». O terceiro e último encontro entre os dois emblemas terminou empatado a zero.

Cândido de Oliveira era já por aquela altura um dos nomes sonantes do futebol luso, na condição de atleta, tendo nesta sua passagem pelos Açores concedido uma entrevista ao jornal local O Telégrafo, onde anteciparia um futuro promissor ao futebol da ilha: «O futebol no Faial, pelo que me foi dado observar nestas três agradáveis partidas, adquiriu já um desenvolvimento que muito deve lisonjear os faialenses. E levo, até, desta visita, a impressão que dentro em alguns anos o futebol faialense não representará só um valor que não devemos desprezar no continente, mas, também, um dos mais vigorosos esteios deste belo desporto no nosso país». Ao mesmo jornal o capitão dos gansos dizia também que o Faial possuía «um bom núcleo de jogadores, um público numeroso e assaz educado e a simpatia das damas faialenses».

No Faial os casapianos foram tratados como ilustres visitantes, tendo-lhes sido feitas visitas guiadas pela ilha e prestado várias homenagens. Cordialidades que não foram esquecidas por mestre Cândido, que no regresso a Lisboa a bordo do navio "Lima" escreveria um postal ao amigo e atleta do Fayal Sport Club, Luiz Morisson, onde dizia que «passamos bons bocados a recordar-vos e à vossa terra. Todos eles (jogadores do Casa Pia) têm muitas saudades daí e comigo sucede outro tanto. Muito gostaria que em vez de 9 dias aí pudéssemos passar um ou dois meses».

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