quarta-feira, fevereiro 19, 2020

Jogos Memoráveis (1)... Vitória de Guimarães - Aston Villa (Taça UEFA de 1983/84)


Capitães do Villa e do Vitória
trocam cumprimentos

Dá-mos hoje o pontapé de saída de uma nova rubrica no Museu Virtual do Futebol, a qual nasce com a missão de recordar os jogos que, por algum motivo, ficaram na nossa memória. Jogos que deram origem a um inesquecível título, que marcaram a estreia numa competição de sonho, ou simplesmente porque "aquela" foi uma tarde (ou noite) em que o pequeno David derrotou o gigante Golias.

E para recordar estes capítulos marcantes nada melhor do que trazer ao Museu quem os viveu, quem ajudou a fazer com que estes momentos figurem na vitrina da eternidade.

Esta é um pouco da essência da rubrica... Jogos Memoráveis. E para dar início a esta nova viagem à História do Belo Jogo recuámos até ao dia 14 de setembro de 1983, altura em que a temporada desportiva 1983/84 dava os primeiros passos. Nesse dia arrancava a corrida europeia de mais uma edição da Taça UEFA, no sentido de encontrar o sucessor do Anderlecht enquanto detentor do terceiro ceptro continental mais importante - logo a seguir à Taça dos Campeões Europeus (TCE) e à Taça das Taças.

Hermann Stessl,
treinador do Vitória em 83/84
64 clubes iniciaram essa corrida, entre eles o Vitória de Guimarães, fruto do 4.º lugar alcançado na época anterior na 1.ª Divisão Nacional. Vitorianos que participavam pela terceira vez nas provas uefeiras, sendo que as duas anteriores aconteceram na antecessora desta Taça UEFA, a Taça das Cidades com Feira.
Desta feita, pela frente os vimaranenses encontraram aquela que para muitos era a segunda melhor equipa inglesa daquele período: o Aston Villa.
Pelo menos a julgar pelas palavras do próprio treinador do Vitória, o austríaco Hermann Stessl: «A seguir ao Liverpool, o Aston Villa é a melhor equipa inglesa». Está opinião, só por si, chegava para colocar em sentido qualquer equipa de futebol daquela altura, pois o Liverpool tão somente tinha conquistado sete campeonatos nacionais ingleses ao longo dos dez anos anteriores, bem como três TCE, pelo que estar na sombra desta mítica equipa de Anfield Road fazia crer que o Villa só podia ser também uma equipa poderosa. E era de facto.

Jornal do Vitória
faz eco do jogo
Havia, contudo, outros aspetos que faziam do mítico clube de Birmingham um osso mais do que duro de roer para o Vitória. Desde logo, porque o futebol de terras de Sua Majestade dominava a seu bel prazer a Europa futebolística.
Só para se ter uma ideia desse domínio avassalador, entre 1977 e 1983 a principal competição uefeira, a TCE, havia viajado para Inglaterra em seis ocasiões(!), três por intermédio do Liverpool, duas pela mão do Nottingham Forest e uma pela do... Aston Villa.
Pois é, o adversário do Vitória era também um ex-recente campeão europeu. Cerca de um ano antes, mais concretamente a 26 de maio de 1982, o Villa havia surpreendido o Mundo do futebol ao derrotar na Banheira de Roterdão o gigante alemão Bayern de Munique, graças a um golo solitário de Peter Withe. Esta era, quiçá, a principal razão que fazia com que o Aston Villa fosse um adversário menos desejado para os pupilos de Stessel nesta primeira ronda da Taça UEFA de 83/84. Ou não! Pois qualquer jogador de futebol ambiciona enfrentar os melhores seja em que circunstância for. E os melhores, neste caso, alguns dos jogadores que pouco mais de um ano antes haviam sido corados reis do Velho Continente, estavam de visita ao Municipal de Guimarães. Motivo mais do que suficiente para termos aqui mais uma versão da saga David vs Golias? O resultado final haveria de provar que sim, que o Vitória Sport Clube haveria nesta tarde de escrever a sua primeira página de glória na Europa do futebol ao vergar o poderoso Villa no berço da nação lusa, tal e qual D. Afonso Henriques na mítica batalha de S. Mamede em 1128, em que o jovem e destemido cavaleiro derrotou as tropas de sua mãe, D. Teresa... contra todas as expectativas!
O 11 do Vitória que na Cidade Berço bateu o poderoso Villa

O 1-0 a favor dos então praticamente desconhecidos (além fronteiras) vimaranenses foi notícia! Fez as gordas em muitos jornais. Afinal de contas, este era mais um capítulo da história em que o frágil David derrota o gigante Golias. Para termos uma ideia da dimensão deste triunfo imagine-se o Moreirense derrotar o Real Madrid numa partida oficial! Esta seria, mais ao menos, a imagem atual daquela tarde de fim de verão em 1983, num Estádio Municipal de Guimarães a arrebentar pelas costuras.

De acordo com as crónicas de então, foi uma vitória que valeu mais pelo impacto - derrotar o então gigante Villa não era para toda a gente - do que propriamente pelo desempenho na partida.
Na verdade, nem Vitória nem Aston Villa exibiram no relvado do hoje denominado Estádio D. Afonso Henriques um futebol encantador, um futebol que justificasse o triunfo. Muito longe disso, na verdade. Disto nos deu conta o jornalista Dias Gomes, na edição de 15 de setembro de 1983 do Jornal de Notícias. E é precisamente esse texto – ou crónica, que teve como título “Laureta encontrou antídoto para toada anestesiante do Villa” - que iremos reproduzir nas próximas linhas.

No seu relato dos acontecimentos, Dias Gomes começa por escrever que «o triunfo da turma de Hermann Stessl diante do Aston Villa foi, medindo todos os prós e contras, merecido, embora, se os ingleses ganhassem, ninguém, estamos certos, se surpreenderia, visto que as melhores oportunidades de golo lhes pertenceram, como aquela logo aos 4 minutos, em que Withe, aproveitando um cruzamento longo do defesa-direito Williams, ficou isolado, “matou” o esférico no peito, e disparou de pronto, correspondendo Silvino com uma defesa maravilhosa para canto. Daí não hesitarmos em escrever que os britânicos também podiam ter ganho, embora o empate fosse o desfecho mais “enquadrado” com o desenrolar do encontro».

Comitiva do Villa na chegada
a Portugal
A concretizar-se este golo logo a abrir tudo poderia ser diferente, poderia ter sido uma alavanca para um duelo mais intenso e animado do que aquilo que na verdade foi...  
«Assim, o jogo sem aquele acicate inicial, caiu numa longa toada lenta, estereotipada e sem grandes situações emocionantes, a conduzir o espetador para a euforia. As pessoas presentes caíram na modorra face ao baixo nível técnico, sobretudo por parte do Aston Villa, uma equipa que já foi, simplesmente, campeã da Europa. O que nos pareceu foi que a equipa de Tony Barton pretendeu narcotizar a equipa do Vitória, com uma velocidade de jogo baixa, sem grandes variações e correrias como é tão característica das turmas da Velha Albion. O Vitória de Guimarães “embarcou” nesse esquema e dificilmente se libertava. Muito diferente, sem dúvida, para pior esta turma vimaranense que tão boas indicações tinha dado nestes primeiros encontros do Nacional, nos quais tinha apresentado um futebol rectilíneo e incisivo, porque alicerçado numa boa condição física. Será que foi uma tarde menos boa, daquelas que acontecem a todas as boas equipas? Depois, o que nos surpreendeu foi a maneira como a massa adepta se comportou. completamente amorfa, silenciosa. Só em lances em que a inviolabilidade da baliza de Spink estivesse em apuros os vitorianos se manifestavam. Julgamos que este comportamento não é só específico dos vitorianos, mas dos portugueses em geral. Que diferença dos estádios ingleses, alemães, belgas, etc…».

Laureta foi decisivo na vitória
histórica do... Vitória
O lance do quase golo britânico aos 4 minutos «abanou os vimaranenses, que constataram de imediato que os ingleses não constituem uma formação qualquer. E daí para a frente, entraram numa manobra mais dinâmica, sobretudo no meio campo, para roubar a iniciativa aos opositores. Nivaldo passou então a ser o catalisador da equipa portuguesa, funcionando como um autêntico pivot. Lá bem na direita principiou a surgir Paquito, a aproveitar o corredor, praticamente sempre livre, para do fundo da linha tirar alguns centros para Eldon e Da Silva bem no coração da área inglesa. E na verdade algumas descidas foram então concretizadas pelos jogadores da Cidade Berço,, surgindo designadamente um lance de perigo, aos 17 minutos, pelo antigo futebolista do Rio Ave. Paquito cruzou mas Da Silva rematou porém um tudo ou nada ao lado da baliza. Este lance fez com que a equipa da Velha Albion refreasse as suas iniciativas. Por outras palavras, os visitantes encararam o Guimarães com mais respeito e entraram a atuar mais encolhidos na tal manobra de retenção da bola, culminada com variadíssimos passes ao guardião Spink, alguns deles de bastante longe».

Nigel Spink: o
lendário guardião do Villa
O Vitória de Guimarães não estava numa tarde sim, «continuando a pautar a sua ação pela falta de agressividade (...) e o tempo ia escoando ao encontro dos desejos dos britânicos, com um compromisso dificílimo depois de amanhã, pois terão de defrontar o Liverpool. Foi uma surpresa, mas negativa, esta equipa do Villa. Que nos lembre, nunca vimos ingleses jogar com tantas cautelas defensivas. … e o Vitória continuou sem soluções para furar o compartimento mais recuado dos ingleses. As jogadas desenrolavam-se genericamente no miolo do retângulo.  Só aos 25 minutos Spink voltou a ser importunado com um pontapé de Paquito. (…) Entretanto, surgiu o apito final e com ele uma certa ansiedade de que o panorama futebolístico mudasse no tempo complementar (…) especialmente esperava-se muito mais dos britânicos. Quem assim pensou enganou-se redondamente, e se o nível anterior tinha sido mediano, salvo alguns (muito poucos), períodos, os 45 minutos restantes foram francamente desanimadores, nada condizentes com um encontro internacional. Para começar, Stessl e Barton não modificaram o “xadrez”.
Tony Barton
A iniciativa continuou a pertencer aos vimaranenses. Infelizmente, nenhuma geradora de situação angustiante para os homens do Aston Villa. Sem visão periférica, partindo da zona axial do terreno sem rapidez e denotando a quilómetros a intenção, os jogadores do Vitória entregavam os trunfos ao adversário que ia deixando correr o marfim. E ironicamente sem fazer pela vida, os ingleses tiveram outra oportunidade flagrante de golo, de novo da responsabilidade de Withe, um avançado com bons predicados e o mais inconformado. Tratou-se de um remate raso, forte, e que bateu à frente de Silvino, que em última instância desviou para canto, talvez traído pela irregularidade daquela zona de ação do guarda-redes, sempre ou quase sempre sem relva. (…) Entretanto, aos 65 minutos houve um lance dúbio na grande área inglesa. Laureta foi derrubado e todo o mundo reclamou penalty mas o árbitro não atendeu os homens de Guimarães. Ele estava em cima do lance (…)».

Mas se não marcou (grande penalidade) à primeira haveria de o fazer à segunda, e novamente com Laureta envolvido no lance que haveria de dar origem ao único golo da partida. «Num envolvimento atacante Laureta, descaído sobre o lado esquerdo e já dentro da área, foi derrubado por trás, numa altura em que tinha boas hipóteses de fazer golo. Perto, o árbitro francês Quiniou, marcou de pronto o castigo máximo. E nasceu ai o Vitória de Guimarães. Os ingleses ainda vieram para a frente. Contudo, era demasiado tarde. Faltavam só oito minutos. (...)».

Em jeito de remate final, o jornalista Dias Gomes escrevia que «do mau que seu viu os vimaranenses foram os menos maus. É claro que é um desfecho escasso. Lá em Birmingham vai ser difícil. Mesmo tremendamente difícil de conservar tão magra vantagem. Todavia, numa noite de sorte tudo é possível».

Pois é, mas não o foi. Cerca de duas semanas depois, o vendaval Villa varreu por completo com o Vitória de Guimarães da Taça UEFA daquela temporada, na sequência de um inquestionável triunfo por 5-0.
Contudo, ninguém tira o mérito à ousadia do pequeno Vitória de Guimarães ter derrubado o gigante Aston Villa numa tarde de final de verão e desta feita escrito um dos capítulos mais brilhantes da história do futebol vitoriano no plano internacional.

Mas para a história fica mesmo o jogo de Guimarães, cuja line-up foi a seguinte:
Árbitro: Joel Quiniou (França)
Vitória: Silvino, Amândio, Joaquim Murça, Alfredo Murça, Laureta, Barrinha (Flávio, 83) Gregório Freixo, Nivaldo, Paquito, Da Silva (Fonseca, 56) e Eldon. Treinador: Hermann Stessel
Aston Villa: Nigel Spink, Gary Williams, Allan Evans, Colin Gibson, Brendan Ormsby, Andy Blair (Mark Walters, 74), Dennis Mortimer, Alan Curbishley, Steve McMahon, Peter Withe e Paul Rideout (Tony Morley, 81). Treinador: Tony Barton
Golo: Gregório Freixo (82, g.p.)

ENTREVISTA COM GREGÓRIO FREIXO

Uma vontade férrea de vencer um jogo que era uma montra para a Europa

Nasceu para o futebol na Cidade dos Estudantes, Coimbra, tendo envergado o manto sagrado da Briosa (Académica), onde se tornou uma pedra basilar ao longo da década de 70.
No início dos anos 80 muda de ares, vai para o berço da nação, Guimarães, para defender as cores do Vitória por sete temporadas. Em 1983/84, mais do que ser um dos indiscutíveis titulares do "xadrez" vitoriano, ele era igualmente o líder da equipa na condição de capitão. Naquela tarde de final de verão de 1983 ele foi tudo isto e muito mais... e esse mais foi o golo que fez a história deste jogo.
O seu nome é Gregório Freixo, o homem que chamou a si a responsabilidade de aos 82 minutos tentar bater o homem que pouco mais de um ano antes havia sido elevado à categoria de herói de Roterdão, após defender tudo o que havia para defender e levar a orelhuda - vulgo a Taça dos Clubes Campeões Europeus - para Birmingham. Perante (o lendário) Nigel Spink, Freixo não tremeu e fez o único golo deste jogo memorável.
O Museu Virtual do Futebol tem o prazer de o receber hoje, convidando-o a recordar os contornos deste épico encontro da quase centenária vida do Vitória.

Gregório Freixo com as cores
do Vitória S.C.
Museu Virtual do Futebol (MVF): Assim que o nome do Aston Villa surgiu no caminho do Vitória, qual foi o pensamento que invadiu o balneário do clube?
Gregório Freixo (GF): O melhor possível, pois preferíamos um grande clube e o Aston Villa veio mesmo a calhar, já que todos nós queríamos entrar nas competições para nos valorizarmos.

MVF: Os jogadores estavam cientes do poderio do Villa, clube que cerca de um ano antes havia vencido a TCE? Conheciam os jogadores, ou naquela altura ao contrário de hoje, em que há mais meios de comunicação, havia pouco informação individual do Villa?
GF: Como diz e bem não havia muita informação, pouco ou nada sabíamos do adversário, só que tinha um avançado muito alto.

MVF: Havia receio ou crença de que poderiam eliminar o gigante inglês?
GF: Todos queríamos ir o mais longe possível, a nossa equipa era muito unida e coletivamente muito forte e tinha uma vontade de ganhar muito grande. Além disso, sentíamos que tínhamos uma grande oportunidade de nos mostrarmos ao mundo do futebol.

MVF: O treinador do Vitória nessa temporada era Hermann Stessel, que recordações tem dele e que vos disse ele antes dessa eliminatória?
GF: A época que estávamos a fazer fala pela capacidade do senhor Stessel. Deixava-nos jogar, deixava-nos mostrar o nosso talento, tirava-nos a responsabilidade do resultado. Só nos disse para aproveitarmos a oportunidade de nos mostrar ao mundo do futebol.

MVF: O jogo começa. O D. Afonso Henriques cheio naquela tarde. Quer falar do jogo...
GF: O campo cheio já estávamos habituados a ter (o Vitória tem a melhor massa adepta que apoia em Portugal). Tudo o resto foi um querer ganhar em conjunto para seguir em frente na competição.

Capitão Gregório parece tirar
satisfações com o árbitro francês Quiniou
MVF: Com o decorrer do jogo sentiram que podiam vergar o ex-campeão da Europa?
GF: O querer (ganhar) era tanto e o que jogámos (naquela tarde) ia tudo nesse sentido. Aliás, o guarda-redes deles foi o melhor jogador em campo, daí se pode perceber o que atacámos. O árbitro também não quis marcar um penalti antes do que marcou, pelo que podíamos ter ganho por 3-0, o que complicaria mais o jogo para eles em Inglaterra.

MVF: As crónicas da época falam de um Villa tímido, que jogou remetido à defesa e de um Vitória que não aproveitou esse facto para partir para cima do adversário...
GF: ... Não, isto não foi o que se passou no jogo!

MVF: Até que chega o momento do penalti, a cerca de 10 minutos do fim. Quer contar como foi chamado à conversão do penalti?
GF: Normal, pois era eu o habitual marcador de penaltis da nossa equipa, e como tal parti confiante para a bola, sabendo que ia marcar. Foi, de facto, um golo que marcou a minha carreira.

MVF: Tremeu na hora de enfrentar um homem que cerca de um ano antes foi o herói do Villa em Roterdão ao segurar a TCE para os ingleses?
GF: Tremer não, mas que assusta ver um guarda-redes muito alto com os braços abertos na baliza, lá isso assustava. Não vês para onde atirar a bola, e só tentei que ele se atirasse antes de eu pontapear, para depois atirar a bola para o lado contrario, que foi, aliás, o que aconteceu.

MVF: Após esta vitória chegaram a pensar que poderia ser possível eliminar o gigante inglês?
GF: Pensar... pensámos, mas sabíamos que o 1-0 era muito curto. E acabou por ser!

MVF: Depois, seguiu-se o descalabro em Birmingham! Como explica essa derrota?
GF: Normal, vindo de uma equipa inexperiente (a nível internacional) como a nossa, e que foi apanhar em Inglaterra um Mundo novo, coisas que não conheciamos. Por exemplo, uma hora antes do jogo estávamos a tirar fotos às instalações do adversário, que tinha um relvado que parecia uma alcatifa e um público a cantar de princípio ao fim. Estávamos deslumbrados!

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