sexta-feira, abril 12, 2013

Copa América (1)... Argentina 1916

O prometido é devido, e tal como foi anunciado recentemente inauguramos hoje uma nova vitrina no Museu Virtual do Futebol. Um espaço onde a garra, a paixão, e a arte - futebolística, claro está - são condimentos que irão saltar inevitavelmente à vista de todos aqueles que o visitarão, condimentos esses bem vincados em cada edição desta que é hoje em dia a segunda competição disputada por seleções nacionais mais antiga do Mundo - a primeira dá pelo nome de torneio olímpico de futebol - em atividade. Iniciamos hoje então uma fascinante - sem margem para dúvidas - viagem pela Copa América, a quase centenária prova disputada árdua e apaixonadamente pelos guerreiros do continente americano, que viu oficialmente a luz do dia em 1916, embora a primeira tentativa de erguer um torneio continental tenha ocorrido seis antes, na Argentina. Por essa altura o futebol começava a despertar intensas paixões no já de si apaixonado povo sul-americano, e já era bem viva a chama da rivalidade que deflagrava entre alguns países nas canchas entretanto desenhadas, com destaque para os duelos entre os eternos inimigos separados pelo Rio de la Plata, Uruguai e Argentina. E seria precisamente este último país que em 1910 decide apimentar um pouco mais as rivalidades que iam crescendo um pouco por toda a zona sul do continente em torno do belo jogo ao criar uma competição continental, a qual seria batizada de Copa Centenario de la Revolución de Mayo, e que para além da seleção da casa contou ainda com o Chile e o Uruguai, os outros dois selecionados convidados. A este primeiro torneio organizado juntaram-se ainda as equipas locais do Alumni, Liga de Rosario, e Belgrano FC, as quais disputaram entre si uma série de jogos exibicionais, que serviam de aperitivo ao torneio principal, digamos assim. 

Na cancha a vitória da Copa Centenario de la Revolución de Mayo foi alcançada pela Argentina, que assim se proclamava campeã das Américas. Os argentinos venceram os dois encontros disputados, o primeiro ante o Chile, por expressivos 5-1 - com golos de Juan Hayes (2), José Viale, Eduardo Weiss, e Maximiliano Susán - e o segundo perante os inimigos do outro lado do Rio de la Plata, o Uruguai, que saiu do Estádio Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires, o palco onde foi desenrolado o evento - vergado a uma humilhante derrota por 1-4 - tendo os tentos argentinos sido apontados por Hayes, Susán, Viale, e Arnold Hutton. Porém, anos mais tarde, a Confederação Sul-Americana de Futebol não validou, digamos assim, este primeiro torneio como a edição estreia da Copa América, por razões que na verdade são pouco claras! O que se reconhece sim na Copa Centenario de la Revolución de Mayo é que ela galvanizou os países sul-americanos a darem aso à sua rivalidade dentro das canchas no seio de competições deste género, tal havia sido o sucesso do torneio idealizado pelos argentinos. Sucesso foi pois a principal palavra extraída desta Copa, a julgar não só pelo desmedido entusiasmo que a competição provocou nos fervorosos adeptos mas também pelo interesse dos dirigentes desportivos da época, que viam neste tipo de campeonatos internacionais o veículo ideal para levar o jovem futebol do continente a patamares mais elevados! 
E seria a pensar desta forma que seis anos mais tarde os argentinos - mais uma vez - orquestraram um novo capítulo dos acontecimentos ocorridos entre maio e junho de 1910. Aproveitando as comemorações do centenário da sua independência a Argentina leva então a cabo entre 2 e 17 de julho desse longínquo ano de 1916 o Campeonato Sul-Americano de Futebol, este sim, o tiro de partida oficial da atual Copa América. 


Entre os convidados voltavam a estar o Uruguai e o Chile, aos quais se juntava outra potência que começava a emergir no continente, o Brasil. Quarteto de luxo que se reuniu em Buenos Aires para dar vida a uma competição disputada em forma de poule, ou seja, em que todos jogavam contra todos, sendo o campeão a seleção que mais pontos contabilizasse. Mas até ao pontapé de saída algumas peripécias ficariam para a história desta primeira edição oficial do certame. A mais saliente foi protagonizada pela seleção brasileira, que esteve muito perto de... não participar no torneio. 
Nascida apenas dois anos antes a seleção teve algumas dificuldades no embarque para Buenos Aires, já que a planeada viagem marítima a bordo do navio Júpiter foi cancelada em cima da hora pelo jurista Ruy Barbosa que recusou que malandros - expressão por si usada (!) - viajassem no mesmo barco com diversos magistrados que iriam na mesma altura para a capital argentina. O Ministro das Relações Exteriores, Lauro Muller, tentou mediar este braço de ferro, mas em vão, pois a equipa brasileira teve mesmo de fazer a viagem para Buenos Aires de comboio, uma travessia que demorou quatro dias e cinco noites! Apesar do cansaço - evidente - provocado pela longa viagem o Brasil apresentou um futebol atrativo sob o ponto de vista técnico, caracterísitca que seria aprimorada com o passar dos anos e que faria deste país o rei do futebol planetário.
Apesar de muito jovem o futebol brasileiro daquela altura já tinha os seus ícones, as suas primeiras lendas, sendo a maior delas todas Arthur Friedenreich. Mas não só El Tigre - alcunha que imortalizou Friedenreich - atraía até si as luzes da ribalta deste primeiro Campeonato Sul-Americano. O Uruguai atravessava o Rio de la Plata com algumas das suas primeiras lendas, casos de José Piendibene, Juan Delgado, ou Isabelino Gradín - asto já aqui recordado noutros caminhos da história por nós trilhados -, assumindo-se como o maior rival da Argentina na luta pelo ceptro continental.

E eis que a 2 de julho a festa começou. No Estádio Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires - que acolheu a esmagadora maioria de jogos do torneio - entraram em campo Chile e Uruguai, com três mil espetadores a lotarem por completo o recinto. Sob a arbitragem do argentino Hugo Gronda os uruguaios mostraram na cancha toda a sua arte, o seu futebol rendilhado, fascinante, e... letal. Que o digam os chilenos, que cairam aos pés dos charrúas por 4-0! Para a história dessa partida ficaram dois homens. José Piendibene é um deles, médio-ofensivo alto, robusto, e criativo que aos 44 minutos desse célebre encontro fez balançar as redes pela primeira vez, entrando para a história como o autor do primeiro golo da - hoje - quase centenária Copa América. Descendente de italianos Piendibene saiu deste torneio endeusado pelos que o viram atuar, tendo ganho mesmo a alcunha de El Maestro, pela forma como comandava o jogo da sua equipa desde o centro do terreno, onde ditava leis como um centro campista de fino recorte técnico-tático. Mas a sua estrela não era a única a brilhar naquele cintilante coletivo. No setor ofensivo um negro, desecendente de escravos africanos, encantava a multidão com a magia do seu futebol. Isabelino Gradín se chamava. Nessa lendária tarde de 2 de julho ele apontou dois dos quatro tentos uruguaios - Piendibene apontou os outros dois - assombrando, no bom sentido, todos os presentes com o seu futebol, assente numa mescla de magia, velocidade, e força.

Vitória contra o racismo 

Episódio negativo - lamentável, na verdade - deste jogo inaugural do Campeonato Sul-Americano seria a posterior postura dos chilenos perante os factos ocorridos. Jogadores e dirigentes do Chile protestaram o encontro, queixando-se à organizção que os uruguaios haviam jogado com... dois negros na sua equipa! Esses negros, ou melhor, essas lendas, eram o centro-campista Juan Delgado e - claro - o atacante Isabelino Gradín. Apelidados de "atletas do carnaval" eles foram ridicularizados pelos chilenos numa época em que o racismo imperava um pouco por todo o Mundo. Felizmente, para o sucesso deste torneio inaugural, este ato racista chileno seria inglório, já que tanto Gradín como Delgado seriam reconhecidos pela organização como uruguaios de berço - e na verdade eram-no - tendo o triunfo da seleção charrúa sido validado para descontentamento dos preconceituosos chilenos. Mais do que uma rotunda vitória obtida dentro de campo o Uruguai - e de um modo muito em particular Gradín e Delgado - vencia o racismo!
E se este seria o argumento do Chile para tentar apagar a má imagem deixada no encontro de abertura do certame a Seleción Roja não teve sequer palavras para quatro dias depois justificar a tareia que levou da equipa da casa. 6-1, vitória da Argentina, com particularidade para a ocorrência de três bis - dois golos - da autoria de Alberto Ohaco, Juan Brown, e Alberto Marcovecchio, num encontro arbitrado pelo inglês Sidney Pullen, que era nada mais nada menos do que uma das principais estrelas da seleção do Brasil!  
Canarinhos que depois de muitas aventuras e desventuras subiram à cancha do Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires no dia 8 de julho para defrontar o pobre Chile, que com duas derrotas - bem pesadas na verdade - nada mais jogava do que o seu bom nome nesta sua derradeira aparição na competição. Talvez por isso, e já sem nada a ganhar, os chilenos entraram descontraídos em campo, dificultando ao máximo a vida dos artistas oriundos de Terras de Vera Cruz. Estes, comandados por uma comissão técnica composta por Joaquim de Souza Ribeiro, Benedicto Montenegro e Mário Sérgio Cardim, tinham a particularidade de ter no seu grupo dois... estrangeiros! A seleção do Brasil com dois estrangeiros? Impensável nos dias de hoje, mas realidade naquele tempo. Um deles era - como já vimos - o médio inglês Sidney Pullen, um dos grandes nomes do Flamengo dos anos 10 e 20, o outro era o guarda-redes português Casemiro do Amaral - já aqui evocado no Museu Virtual do Futebol noutras viagens ao passado - e habitual suplente do lendário goleiro Marcos Carneiro de Mendonça.

E foi com Pullen no onze - e Casemiro do Amaral na bancada - que o escrete fez então a sua estreia na prova. No entanto, e apesar de apresentar melhor futebol que os chilenos os canarinhos - que neste torneio apresentaram um equipamento peculiar: camisola listada de verde e amarelo, e calções brancos (!) - não foram além de um empate a um golo. Para a história do futebol brasileiro entra então o nome de Demósthenes, o avançado da Associação Atlética de Palmeiras, que aos 29 minutos desse duelo aponta aquele que foi o primeiro golo do Brasil na fase final de uma competição internacional oficial. A cinco minutos do final Hernando Salazar estraga a festa brasileira ao fazer o injusto 1-1 final. O Chile ia assim para casa com um pontinho no bolso, ao passo que os brasileiros tinham ainda pela frente os tubarões Argentina e Uruguai.

Fundação da CONMEBOL

Com apenas três jogos realizados o Campeonato Sul-Americano de Futebol fazia-se rodear de êxito a todos os níveis. Talvez olhando para isso o dirigente uruguaio Héctor Rivadavia Gómez propôs às confederações dos quatro países participantes a criação de um organismo que tutelasse todo o futebol da América do Sul, organismo esse que veria a luz do dia a 9 de julho desse ano - bem no decorrer da competição, portanto, e que seria batizado de Confederação Sul Americana de Futebol, a popular CONMEBOL. No dia seguinte à fundação deste organismo o Brasil teve pela frente o aguerrido conjunto da casa, que aos 10 minutos de jogo já traduzia em golos o seu teórico favoritismo no duelo, cabendo ao avançado do Huracán José Laguna encarnar o papel de herói ao violar as redes do português Casemiro do Amaral, que nesse jogou relegou para a bancada o titular Marcos. No entanto, os brasileiros não se deixaram influenciar pelo ambiente hostil que imanava das lotadas - de argentinos, pois claro - bancadas do Estádio Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires, e ainda antes do intervalo Alencar repôs a igualdade com que se atingiu os 90 minutos. O Brasil tinha superado o difícil teste argentino, e naquele momento ninguém no seio da seleção não sonhava com a coroa de campeão continental. Mas... ainda faltava o Uruguai.

No dia 12 de julho o Brasil entrou na cancha determinado a continuar a evidenciar o seu bom futebol até ali patenteado, e mais do que isso vencer os temíveis uruguaios e assim poder lutar pelo título. E as coisas até nem começaram mal para os artistas brasileiros. Aos oito minutos a estrela Friedenreich inaugura o marcador. Porém, a felicidade canarinha teria vida curta, já que pouco depois o defesa Orlando fica lesionado na sequência de um choque com El Maestro Piendibene. Ora, os regulamentos do torneio diziam que as substituições não eram permitidas, a não ser que os capitães de ambas as equipas concordassem em autorizá-las! E aqui entra a polémica. Jorge Germán Pacheco, capitão uruguaio, não aceitou a substituição, e a celeste uruguaia atuou o resto do encontro com mais um elemento sobre o retângulo de jogo, de nada valendo os protestos brasileiros. Mesmo com um elemento a menos o Brasil lutou, mas na segunda parte veio ao de cima toda a mestria uruguaia, em especial do mágico Isabelino Gradín, que aos 58 minutos restableceu o empate, apontando assim o seu terceiro golo na competição, e que lhe valeria o título de melhor marcador. A reviravolta dos charrúas seria consumada aos 77 minutos por intermédio de José Tognola, que batia o desamparado Casemiro do Amaral e acabava com o sonho brasileiro. 

Duelo mais desejado no jogo do título


Quiseram os caprichos do sorteio que o último jogo do Campeonato Sul-Americano de 1916 colocasse frente a frente os dois velhos inimigos do Rio de la Plata, e indiscutivelmente as duas melhores equipas do continente. No dia 16 de julho o Estádio  Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires engalanou-se para receber o decisivo encontro para o qual os uruguaios partiam em vantagem, pois um empate bastaria para garantirem o título, enquanto que os argentinos estavam obrigados a ganhar para poderem lançar os foguetes. O fervor dos adeptos de ambos os conjuntos era bem evidente, e com apenas cinco minutos decorridos a final - como era encarada - teve de ser interrompida devido a acesos confrontos nas bancadas para lá de lotadas, chegando mesmo a surgir uma ameaça de incêndio! Para o dia seguinte seria marcado um novo encontro, desta feita no Estádio do Racing Club, em Avelleneda,  que viu um empate a zero golos oferecer o primeiro título de campeão das Américas ao Uruguai.
Nascia assim a lenda das camisolas celestes, que no futuro próximo haveria de ter outros contornos de glória protagonizados por nomes como Scarone, Nasazzi, ou José Leandro Andrade. Mas por agora os imortais eram Piendibene, Juan Delgado, Jorge Germán Pacheco, Tognola, e claro Isabelino Gradín, o negrito mágico, melhor marcador deste torneio com três remates certeiros, e que além do futebol era também estrela no atletismo! 

Números e nomes:

2 de julho de 1916


Uruguai - Chile: 4-0
(Piendibene, aos 44m, aos 75m, Gradín, aos 55m, aos 70m)

6 de julho de 1916

Argentina - Chile: 6-1
(Ohaco, aos 2m, aos 75m, Brown, aos 60m, aos 62m, Marcovecchio, aos 67m, aos 89m)
(Báez, aos 44m)

8 de julho de 1916

Chile - Brasil: 1-1
(Salazar, aos 85m)
(Demósthenes, aos 29m)

10 de julho de 1916


Argentina - Brasil: 1-1
(Laguna, aos 10m)
(Alencar, aos 23m)

12 de julho de 1916

Uruguai - Brasil: 2-1
(Gradín, aos 58m, Tognola, aos 77m)
(Friedenreich, aos 8m)

17 de julho de 1916

Argentina - Uruguai: 0-0

Classificação

1-Uruguai: 5 pontos
2-Argentina: 4 pontos
3-Brasil: 2 pontos
4-Chile: 1 ponto

Legenda das fotografias.
1-Cartaz oficial da primeira Copa América, na altura denominada de Campeonato Sul-Americano de Futebol
2-Jogo entre Argentina e Uruguai, na Copa Centenario de la Revolución de Mayo de 1910

3-A seleção do Brasil que atuou ante o Chile, no Campeonato Sul-Americano de 1916. 
4-A bancada central do Estádio Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires
5-A estrela do torneio: Isabelino Gradín
6-Lance do jogo entre Brasil e Argentina (1)
7-Lance do jogo entre Brasil e Argentina (2)
8-Demósthenes, autor do primeiro golo de Brasil numa competição internacional
9-Uruguaios entram em campo no jogo final
10-José Piendibene, autor do primeiro golo do torneio
11-Seleção da Argentina
12-Os primeiros campeões da América, o Uruguai

Um comentário:

  1. A pouco e pouco o blogue vai atingindo contornos de mito e lenda, sendo tu merecedor dos maiores louvores e elogios por essa dedicação.
    Tenho aprendido bastante e também confirmado a veracidade de outras coisas que já sabia.
    Brilhante e vai escrevendo até que as falanges te doam!
    Um abraço

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