sexta-feira, janeiro 06, 2023

Histórias do Planeta da Bola (28)... Com batota ou não, futebol da Arábia Saudita já viveu um momento de (maior?) glamour antes da chegada de Cristiano Ronaldo

A Arábia Saudita anda por estes dias nas bocas do Mundo. Tudo devido ao futebol, e à super-estrela portuguesa Cristiano Ronaldo, que decidiu dar continuidade à sua carreira naquele país do Médio Oriente, centrando desta forma naquela zona do globo os holofotes do Planeta da Bola - e não só. Trata-se de uma oportunidade para o pouco - ou nada mesmo - mediático futebol saudita de se mostrar ao resto do Mundo, de se abrir ao Mundo, e com isto evoluir de forma a encurtar distâncias com as super-potências futebolísticas planetárias. que habitam, na sua esmagadora maioria, na Europa e na América do Sul.

Com a chegada de super-estrelas como Cristiano Ronaldo à Superliga saudita poderá a Arábia Saudita sonhar em chegar à final de um Campeonato do Mundo, por exemplo, daqui a 40 ou 50 anos? Nunca se sabe, pode acontecer, tal como poderá não acontecer. Temos o exemplo dos Estados Unidos da América (EUA) que nos finais dos anos 60 criaram uma verdadeira liga galática de futebol - ou soccer, como é lá conhecido -, contratando estrelas da altura, como Pelé, Eusébio, Cruyff, George Best, Gerd Muller, Teófilo Cubillas, entre tantos outros craques, no sentido de enraizar e desenvolver o jogo naquela nação. O que é certo é que não conseguiram, e a North American Soccer League, o tal campeonato galático, acabou por ser extinto em 1984, já numa fase decrescente em termos de popularidade e órfão das super-estrelas europeias e sul americanas. O Campeonato do Mundo de 1994 foi uma nova tentativa de os EUA fomentaram o Desporto Rei - como é visto na esmagadora maioria dos países do planeta - naquelas bandas, e quiçá, como chegou a ser equacionado por "alguém", ser o ponto de partida para dali a 50 anos vermos a seleção nacional norte-americana vencer um Mundial de seniores! Certo que ainda só passaram 28 anos dessa espécie de profecia, mas a seleção yankee ainda está muito longe, a anos luz, diria, de atingir essa glória, tanto a nível de futebol sénior, como de futebol de formação. Os EUA são apenas um exemplo desta tentativa de países com poder económico acima da média - ou ilimitado, em alguns casos - de pretenderem fazer crescer o seu futebol com a contratação das tais super-estrelas europeias e sul-americanas, mesmo que em fim de carreira. Poderíamos ainda falar do Japão, que no início dos anos 90 do século passado criou a mediática J-League, ou até da China, que no princípio do novo milénio fundou a Superliga Chinesa, que tem atraído grandes estrelas do futebol. O que é certo é que estes países ainda não colheram os devidos frutos deste investimento, quiçá o farão daqui a 50, ou 100 anos? O futuro o dirá.

Jovens (adultos?) sauditas vencem título mundial polémico...

A seleção saudita que venceu o Mundial de sub-16

Esta visão, digamos, serve de atalho à nossa história de hoje, a história que atesta que ainda longe do mediatismo atual a Arábia Saudita já subiu ao topo do Mundo no que a futebol diz respeito, ainda que de forma polémica.

Para isso é preciso recuarmos até 1989, altura em que a Escócia foi palco da terceira edição do Campeonato do Mundo de sub-16 - o qual a partir de 1991 passou a ser denominado de Campeonato do Mundo de sub-17. Os sauditas participavam pela terceira vez no torneio, e à partida para as Terras Altas da Escócia não eram tidos como grandes favoritos a fazer fosse o que fosse. Passar a fase de grupos - tal como havia sucedido na primeira edição do Mundial deste escalão, em 1985, na China - seria visto pelos teóricos do futebol como um feito digno de registo. Mas chegar à final seria impensável, quando em ação havia seleções como o Brasil, ou Argentina. Vencer o Mundial então era motivo de uma boa risada, mas quem se riu mesmo foram os sauditas, que saíram da Escócia com a coroa de campeões do Mundo!

É verdade, ninguém os conhecia, mas depois do dia 24 de junho de 1989 o Mundo - ou uma boa parte dele - passou a olhar com outros olhos para estes miúdos, ou devemos dizer homens de barba rija com passaportes de jovens de 15 e 16 anos? E é aqui que ainda hoje reside a polémica do título mundial conquistado pelos sauditas neste escalão: a verdadeira idade dos seus jogadores.

Na verdade, é que neste escalão de sub-17 - ou anteriormente designado de sub-16 - 8 dos 18 torneios disputados - até à data - foram vencidos por países de África e do Médio Oriente, sendo que muitos europeus e sul americanos analisam este facto pelo facto - e passe a redundância - de os jovens futebolistas africanos e asiáticos que competem neste tipo de torneios não terem na realidade a idade que consta no passaporte. Este, na verdade, tem sido um problema que a FIFA tem dificuldades em contornar: provar que os jovens africanos e asiáticos estão dentro da faixa etária equivalente a este escalão. E vários fatores têm impedido a dissipação desta controvérsia constante em Mundiais de sub-17 sempre que um país de África ou do Médio Oriente brilha com mais intensidade, desde logo, a documentação, ou perceber se um jovem de 15 ou 16 anos foi registado à nascença e não 5 ou 6 anos depois, ou até mesmo a questão genética, tendo em conta que o desenvolvimento físico de uma criança em África não será a mesma que na Europa, por exemplo.

 ... num torneio relembrado pelos escoceses com um misto de orgulho e revolta

A seleção escocesa na grande final
Bom, mas suspeitas à parte o que é certo que os sauditas foram mesmo campeões do Mundo em 1989 no escalão de sub-16, ao baterem na final a seleção anfitriã no desempate por grandes penalidades.

Para chegar ao cetro a Arábia Saudita ficou em 2.º lugar de um grupo que foi ganho por Portugal. Carlos Queirós era o selecionador nacional e dava então os primeiros passos na criação da Geração de Ouro do futebol luso, e que nesse ano de 89 seria tão feliz no escalão de sub-20, como tão bem sabemos. Os sauditas não perderam um único jogo na fase de grupos - empataram a dois com os portugueses no Tynecastle, em Edimburgo; voltaram a empatar no jogo seguinte com a Guiné Conacri; e venceram a Colômbia no derradeiro encontro, carimbando assim o passaporte para os quartos-de-final. Aqui, despacharam o primeiro campeão do Mundo da história deste escalão, a Nigéria, nas grandes penalidades (2-0), após um empate a zero bolas nos final do prolongamento, numa partida disputada no Dens Park, em Dundee.  A epopeia saudita continuou no Fir Park, de Motherwell, com Al Romaihi a fazer o único golo do jogo com o Barém e a catapultar o seu país para a grande final do Hampden Park, de Glasgow. Pela frente a seleção do Médio Oriente iria ter a equipa da casa, a Escócia, que era apoiada entusiasticamente por toda a nação. Os putos escoceses eram tratados como heróis por todo um país que futebolisticamente nunca havia chegado tão longe num Mundial, fosse em que escalão fosse. Havia um encanto, quer do público, quer dos jogadores escoceses pelo trajeto que estavam a fazer e pelos holofotes do Planeta estarem centrados naquele torneio e em quem a ele estava ligado. «Conhecer Pelé antes do primeiro jogo que fizemos em Hampden Park foi único, poder apertar a mão do grande homem», lembrou em 2022, ao site da BBC Sport - Andy McLaren, um dos jogadores selecionados pelo histórico técnico escocês Craig Brown para esse Mundial de 89. Os jogos da Escócia registavam casas cheias, como foi o caso da histórica meia final diante de Portugal, realizada no lotado (29.000 espectadores) Tynecastle de Edimburgo. Brian O´Neill marcou o único golo deste encontro, respondendo da melhor forma a um canto de Lindsay. Portugal tinha uma equipa de enorme talento, como se viria a comprovar anos mais tarde, com jogadores como Figo, Gil, Abel Xavier, Emílio Peixe, Miguel Simão, Bino, Tulipa, ou Geani. Mas naquela noite as gaitas de fole escocesas soaram mais alto que a guitarra lusitana. «Eles (portugueses) eram os favoritos para vencer o torneio, mas nós naquela noite jogámos muito, mas muito bem», disse também ao site da BBC Sport o autor do golo dessa meia-final.

E na final o Hampden Park acolheu 58.000 pessoas que ali estavam na espectativa de ver o capítulo final do trajeto glorioso até então. A Escócia em peso estava ao lado destes miúdos que nunca haviam vivido algo semelhante, sendo que para muitos deles este foi mesmo o único minuto de fama vivido no futebol. «A maioria de nós andava na escola e, de repente, éramos a coisa mais importante na Escócia!. Estávamos nas páginas dos jornais e em todos os outros lugares», recorda 33 anos mais tarde Andy McLaren. Também à BBC Sport, Brian O´Neill relembra a estranha sensação de «andarmos na rua e todas as pessoas nos reconhecerem», ou de «aparecermos em programas de televisão».

Lance da final
A Escócia iria defrontar a Arábia Saudita, tendo as crónicas de então descrito estes como os dois conjuntos surpresa do Mundial. Apoiados por uma multidão em apoteose os escoceses apresentaram-se no relvado do mais emblemático estádio escocês confiantes de que iriam fazer história. Mesmo que pela frente tivessem... rapazes de bigode e barbas, que aparentavam ser daqueles irmãos bem mais velhos. Apesar desta desconfiança nacional e tão badalada a Escócia foi brava, palavra esta que tão bem caracteriza o povo escocês, e aos 25 minutos de jogo já vencia por 2-0, graças a golos de Ian Downie e Paul Dickov, sendo que este último foi, talvez, o jogador desta geração de jovens promessas escocesas o que mais sucesso teve no futebol profissional nos anos seguintes, ao brilhar em clubes como o Arsenal e o Manchester City na Premier League inglesa.

«Parecia que já éramos campeões do Mundo», afirmou Dickov à reportagem da BBC Sport no ano passado, mas do parecer ao ser a distância é longa. Na segunda parte a Arábia Saudita empatou o encontro e obrigou os escoceses a um prolongamento onde nada de se decidiu. A exaustão tomava conta dos pupilos de Craig Brown. Ao contrário dos sauditas, que apesar de menos talentosos que os europeus estavam mais frescos e tiveram forças para levar a decisão para as grandes penalidades. Aí, foram mais felizes e venceram por 5-4, vencendo desta forma o título internacional mais prestigiante da sua modesta história futebolística.

Claro que toda a Escócia ainda hoje tem essa espinha atravessada na garganta: perder em casa contra uma seleção desconhecida.

Andy McLaren diz que este torneio ainda hoje é recordado pelo facto de os sauditas «terem feito batota» - na questão das idades - lembrando que na altura tinha acabado de completar 16 anos, «mas esses meninos sauditas tinham barba crescida. Foi muito ridículo. As pessoas que os viram jogar no torneio disseram que eles pareciam ter 20 anos».  

Também em 2009, numa entrevista ao jornal escocês Daily Record, aquando do 20.º aniversário do Campeonato do Mundo de sub-16 de 1989, o ex-dirigente da Scottish Football Association, Ernie Walker, recordou com alguma revolta a questão - ou escândalo, como lhe chamou - das idades dos jogadores sauditas.

Sauditas festejam título impensável!
Nessa longa entrevista Walker confessa ter sido avisado por um colega seu que havia trabalhado na Arábia Saudita nessa época que, por exemplo, um dos jogadores sauditas que se sagrou campeão do Mundo era já então pai de três filhos e capitão do exército saudita! «Esse meu colega - treinador alemão - viajou pelo Mundo ao serviço da FIFA e tinha uma vasta experiência ao nível de clubes, incluindo pelo menos três anos na Arábia Saudita antes das finais do Mundial de sub-16 (de 1989). Conversámos sobre essas finais e ele disse-me isso. (...) Disse-me que um dos jogadores sauditas presentes na final já havia jogado para uma equipa dele ao nível de clubes», conta Walker, que nesta entrevista afirma que na Escócia ninguém tinha a menor dúvida que os sauditas não tinham menos de 16 anos. Meio a brincar Ernie Walker dá o exemplo do guarda-redes da Arábia Saudita ao longo desse torneio, Mohammed Al-Deayea, que pela idade parecia o Peter Shilton. «Foi um torneio fantástico, mas a minha principal lembrança é de como os meninos escoceses foram enganados na final. Foi uma coisa terrível. (...) No entanto, dizê-lo e prová-lo são duas coisas totalmente diferentes. O bom senso disse-nos que eles eram maiores de idade, mas os seus passaportes estavam todos carimbados com datas de nascimento que diziam que eles estavam dentro do limite de idade», disse Walker. Pois é, afirmar é fácil, mas provar é mais difícil. Há quem, como o jogador escocês Brian O´Neill, diga, ou admita, que é tudo uma questão cultural, ou seja, que os rapazes de regiões como o Médio Oriente são mais desenvolvidos fisicamente naquelas idades que a maioria dos rapazes europeus, ou então pelo facto de nestas zonas do globo as crianças obterem as suas certidões de nascimentos apenas aos 5 ou 6 anos de idade.


O que é certo é que a Arábia Saudita ostenta no seu currículo um título de campeã mundial, quiçá o seu maior feito, superando inclusive a brilhante campanha do Mundial (de seniores) de 94. Nesta competição, realizada nos EUA, os sauditas atingiram os oitavos-de-final, mas deixaram muitos fãs em Terras do Tio Sam, muito devido à fantasia de jogadores como Sami Al-Jaber, Said Al-Owairan - o craque do golo à Maradona -, ou Mohammed Al-Deayea, esse mesmo, o guardião que defendeu a baliza da seleção árabe nesse mítico Mundial de 1989, e que é hoje a par de Al-Jaber o futebolista saudita com mais presenças em fases finais de campeonatos do Mundo (seniores): quatro.

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