quinta-feira, fevereiro 07, 2019

Histórias do Planeta da Bola (22)... A primeira conquista viking no plano internacional... que na verdade não o foi!


A seleção dinamarquesa... ou o XI de Copenhaga
que venceu os Jogos Olímpicos Intercalados de 1906
Dinamarca. Quando o nome da nação escandinava vem ao de cima numa qualquer tertúlia da bola a primeira ideia que de nós se apodera é a inesquecível epopeia viking no Euro 92.
Disputado nesse ano em solo sueco, o torneio continental da UEFA foi contra todas as espetativas ganho pela repescada... Dinamarca! Chamados à última da hora - há quem diga que grande parte dos jogadores dinamarqueses estavam já estendidos nas tórridas areias do sul da Europa a gozar as merecidas férias de verão - para substituir uma Jugoslávia em guerra e que vivia os seus últimos dias enquanto nação, os vikings chegaram, viram e venceram!
Nomes como Brian Laudrup, Peter Schmeichel, Henrik Larsen, Kim Vilfort, ou John Jensen ascenderam ao patamar dos Imortais do Desporto Rei, após terem ajudado a criar o Momento de Glória do futebol do seu país.
No instante em que o capitão Lars Olsen erguia a Taça Henri Delaunay nos céus de Gotemburgo, muitos daqueles (novos) campeões europeus provavelmente desconheciam que aquela não era uma coroação inédita do futebol dinamarquês a nível internacional. Cerca de nove décadas antes - 86 anos para sermos mais exatos - um punhado de bravos vikings conquistou o Olimpo - no que ao Belo Jogo concerte. Ainda que essa seja uma conquista... oficialmente não reconhecida! E não o é por duas razões.
Primeiro, foi alcançado no seio de um evento exibicional, órfão de cariz oficial; e em segundo porque o futebol ainda não integrava o programa oficial de uma grande competição desportiva planetária, como era o caso dos Jogos Olímpicos (JO), na altura o único evento desportivo com selo global.

A Atenas o que é de... Atenas

Na primeira década do século XX a importância e dimensão das Olimpíadas da Era Moderna não eram ainda semelhantes ao panorama atual.
Exemplo dessa "medíocre" popularidade terão sido os Jogos de Paris (1900) e de Saint Louis (1904), que mais não terão sido do que meros apontamentos paralelos das Exposições Universais organizadas nessas duas cidades.
No entanto, se havia povo que estava ciente do relevo dos Jogos eram os gregos, eles que em 1896 organizaram em Atenas a primeira edição das Olimpíadas da Era Moderna sob a batuta do francês Pierre de Coubertin.
E precisamente para assinalar o sucesso dessa edição inaugural dos JO, a Grécia resolve em 1906 organizar uma nova edição olímpica. Para os gregos aquela seria uma forma de recuperar um evento que entediam ser exclusivamente seu, ganhando assim corpo a ideia do rei Jorge I de que Atenas deveria ser a sede permanente dos Jogos.

Porém, parte do Comité Olímpico Internacional (COI) encarava este evento como uma mera comemoração do 10.º aniversário do início dos JO da Era Moderna, sem qualquer cariz oficial, até porque havia ficado definido que as Olimpíadas seriam realizadas de quatro em quatro anos, e aquele não era um ano olímpico. De tal forma que o Coubertin denominou o evento de Jogos Olímpicos Intercalados. O que é certo é que após duas edições (oficiais) fracassadas havia divisões no seio do próprio COI. Muitos dos seus membros partilhavam da ideia do rei dos helénicos, de que Atenas deveria sediar de forma permanente os Jogos, e a prova disso é que tanto em Paris como em Saint Louis os ideais olímpicos haviam sido abalados, ou abafados, pelas duas Exposições Universais.

O Estádio Panatenaico
Foi inclusive sugerido por alguns elementos do COI realizar os JO de dois em dois anos, alternando entre Atenas e uma cidade noutro país, para minimizar um eventual desprezo em torno do evento semelhante ao que foi verificado em 1900 e 1904. Porém, o barão Pierre de Coubertin não concordou e manteve a ideia de as Olimpíadas serem realizadas de quatro em quatro anos de forma rotativa, isto é, em cidades diferentes.
Mesmo com estas diferentes visões o que é certo é que Atenas se engalanou para receber aquela que era encarada por muitos como a quarta edição dos Jogos.
O circo olímpico foi montado no mítico Estádio Panatenaico onde 10 anos antes a viagem olímpica havia começado. Os atenienses introduziram neste ano algumas novidades aos Jogos que perduram até aos dias de hoje, mais concretamente a ocorrência de uma cerimónia de abertura em que todos os atletas desfilaram em redor do estádio, e o facto de pela primeira vez os atletas terem recebido medalhas.

Vikings no meio de uma família franco-britânica e não só!

Os artistas do Omilos Filomouson Thessalonike
Vinte países competiram num evento realizado entre 22 de abril e 2 de maio de 1906, num total de 903 atletas que se dividiram por 14 modalidades.
Entre elas estava o futebol. Modalidade que, recorde-se, só viria a fazer parte do cartaz oficial dos JO em 1908, em Londres, embora tenha feito a sua primeira aparição no evento desportivo planetário em Paris (1900) e repetido essa presença quatro anos depois em Saint Louis (1904). Aparições essas (das quais já aqui falamos noutras viagens ao passado) que como já foi referido não tiveram a bênção nem do COI, nem (mais tarde) da FIFA, sendo encarados apenas como meros torneios exibicionais, em que os grosso dos participantes nem seleções nacionais eram!
Algo semelhante ocorreu em 1906. A exceção foi mesmo a Dinamarca, que assim se tornava na primeira seleção nacional a competir nos Jogos... mesmo sendo estes de cariz não oficial. Outro argumento que nos dias de hoje pode desconsiderar a participação dinamarquesa naquele torneio prende-se com o facto de a equipa nacional não ter sido escolhida pela DBU (Dansk Boldspil Union) - a federação de futebol daquele país -, mas sim pelo professor Carl Andersen,  o qual formou uma equipa de jogadores oriundos de Copenhaga para viajar até Atenas. De tal maneira que muitos historiadores desportivos denominam a equipa viking de... Kobenhavn XI - o 11 de Copenhaga - e não de seleção da Dinamarca.

Giorgos Kalafatis
Juntamente com os nórdicos fizeram parte do mini-torneio olímpico - se assim o podemos denominar à luz da verdade - uma equipa de Atenas, formada por jogadores do Ethnikos Gymnastikos Syllogos e do Panellinios Gymnastikos Syllogos, dois dos mais antigos clubes do futebol grego e por alguns... ginastas que haviam competido nas Olimpíadas de 1896! Na frente de ataque do excêntrico combinado ateniense estava além do filho do presidente da Câmara de Atenas, Giorgios Merkouris, aquele que era por aqueles dias considerado o Deus do futebol helénico: Giorgos Kalafatis, um dos pioneiros na dinamização do futebol na Grécia.
Do então Império Otomano vieram as outras duas equipas participantes no torneio, o Omilos Filomouson Thessalonike (Salónica) e o Smyrna.
O combinado de Salónica era composto por membros da Associação Amigos da Arte Moderna (!), que mais tarde seria o berço do Iraklis de Salónica. Já o Smyrna era digamos que uma equipa cosmopolita, formada por filhos de comerciantes ingleses e francesas radicados na então cidade de Esmirna (atualmente Izmir), na costa turca do Mar Negro, então parte integrante do Império Otomano. Este grupo tinha a particularidade de sete dos seus elementos serem parentes! A família inglesa dos Whittall, fez-se representar naquele combinado pelos irmãos Edward, Godfrey e Alfred, juntamente com os seus primos Donald (que nesses JO Intercalares também participou na competição de remo) e Herbert. Do lado francês os irmãos Edmund e Jim Giraud compunham o ramalhete familiar. Aliás, o grau de parentesco não se ficava por aqui, já que apesar de terem nacionalidades diferentes os Whittall e os Giraud eram... primos!

Final só durou 45 minutos!

Curiosidades familiares à parte este acabou por ser um torneio cheio de peripécias. O velódromo Podilatodromio, hoje denominado de Estádio Karaiskaki, acolheu todas as partidas, tendo a primeira acontecido no dia 23 de abril, colocando lado a lado dinamarqueses e o Smyrna. Sob arbitragem do sueco Goster Drake e perante 3000 pessoas, o encontro chegou ao intervalo empatado a um golo. Porém, na segunda parte - e a julgar pelo volume do resultado - os vikings arrasaram com as famílias Whittall e Giraud, vencendo por 5-1 e garantindo assim a presença na final.
Na verdade, quer deste, quer dos restantes jogos poucos ou nenhuns registos existem, desconhecendo-se, entre outros factos, quais os autores dos golos ou como jogaram as equipas, sabendo-se apenas que todas elas se apresentaram num rudimentar esquema tático de 2-3-5! Tão usual naquela época.

A "família" do Smyrna
Na outra meia final, também ocorrida nesse mesmo dia, a rivalidade entre gregos e otomanos não se deve ter feito sentir por aí além... atendendo ao volumoso triunfo da equipa de Atenas sobre a de Salónica por 5-0. Este duelo teve a particularidade de ser arbitrado pelo treinador e responsável pelo grupo dinamarquês, o professor Carl Andersen.
Estavam assim encontrados os finalistas do torneio, os quais iriam medir forças num jogo que haveria de ficar para a História não pelos melhores motivos!
Sob arbitragem do sueco Goster Drake, o jogo do título foi disputado um dia após as semi-finais! Na verdade não foi um jogo, foi só meio jogo! Isto é, durou somente 45 minutos, porque ao intervalo o conjunto do professor Carl Andersen vencia por 9-0 a equipa da capital helénica.
Quiçá temendo uma dose igual no segundo tempo, os gregos não compareceram no segundo tempo, numa atitude que ia contra as regras do desportivismo ou do espírito olímpico, se preferirem. Esta postura causou indignação na organização, que de pronto desclassificaria os atenienses e agendaria para o dia seguinte um jogo entre os dois derrotados nas meias-finais no sentido de apurar os 2.º e 3.º classificados, isto é, para atribuir a prata e o bronze, já que o ouro havia sido arrebatado com estrondo pelos vikings.
A união familiar acabou por fazer toda a diferença nesse jogo de luta pela prata, já que Smyrna esmagou por 12-0 os artistas de Salónica, que mesmo sem terem marcado qualquer golo e sofrido 17 (!) em dois jogos ainda levaram para casa o bronze.

Mesmo não sendo uma vitória oficial, esta não deixou de ser o início de uma caminhada que haveria de confirmar a Dinamarca como uma das nações mais potentes do futebol continental dos anos seguintes. Isto, a julgar pelo facto de nos dois torneios olímpicos posteriores, em 1908 (Londres) e 1912 (Estocolmo), ter arrecadado em ambos a medalha de prata, sendo apenas superada pelos inventores do football: os ingleses. Ou, por outras palavras, a seleção da Grã-Bretanha, que venceu os dois primeiros torneios olímpicos oficiais (considerados quer pela FIFA, quer pelo COI).
Alguns dos campeões dos JO Intercalados de 1906 fariam parte das seleções dinamarquesas dos torneios de 1908 e 1912, casos de Oskar Norland, Charles Buchwald (ambos competiram quer em Londres, quer em Estocolmo) e August Lindgren.
A valer ou não, o que é certo é que estes três homens juntamente com Viggo Andersen, Peter Petersen, Parmo Ferslev, Stefan Rasmussen, Aage Andersen, Holger Frederiksen, Henry Rambusch e Hjalmar Heerup deram a primeira grande vitória internacional do futebol dinamarquês, muito antes de Brian Laudrup, Schmeichel, Larsen, Olsen, ou Vilfort terem conquistado a Europa após uma épica vitória sobre a Alemanha no relvado do Ullevi Stadium, naquela inesquecível tarde de verão de 1992.


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