quinta-feira, janeiro 08, 2015

Copa América (4)... Chile 1920

Uma multidão aguarda no Porto de Valparaíso a chegada
do navio que transportou as delegações do Brasil,
Uruguai, e Argentina, para a 4ª edição
Campeonato Sul-Americano
Setembro acabara de se iniciar naquele longínquo ano de 1920, para gáudio da população de Valparaíso, pitoresca cidade costeira situada no Chile, e que acolheu a quarta edição do então denominado Campeonato Sul-Americano de Futebol. Atraído por aquela jovem e encantadora modalidade que pouco mais do que um par de décadas antes havia desembarcado naquela região do continente americano, o povo de Valparaíso mostrou todo o seu entusiasmo ainda antes de ter sido dado o pontapé de saída do torneio, quando em massa se deslocou ao porto da cidade para receber em euforia as três seleções que juntamente com o Chile iriam dar vida ao certame. Argentina, Uruguai, e Brasil, eis os ilustres convidados recebidos no porto de Valparaíso como verdadeiros reis do futebol continental. Reis, ou astros da bola, neste caso, que na verdade foram muito poucos no Campeonato Sul-Americano de 1920, uns porque, entretanto, haviam feito a sua retirada da alta competição, caso do mago uruguaio Isabelino Gradín, outros por desavenças entre organismos internos, casos dos brasileiros Arthur Friedenreich, Neco, Marcos de Mendonça, Haroldo, ou Píndaro de Carvalho - cinco pedras basilares na conquista do título por parte do escrete (que ainda não era canarinho) um ano antes. E foi precisamente um Brasil composto por jogadores reservistas que juntamente com a seleção da casa deu a 11 de setembro o pontapé de saída de um torneio que à semelhança dos três anteriores iria ser desenrolado em sistema de poule, onde todos jogariam contra todos a uma só volta, sendo o campeão o país que somasse o maior número de pontos.

Alvariza, autor do único
golo brasileiro em Valparaíso
As guerrilhas internas entre as federações paulista e carioca privou então a seleção brasileira de defender o título com os seus melhores intérpretes, tendo o selecionador Oswaldo Gomes não tido outro remédio senão levar alguns jogadores de segundo plano internacional, casos do defesa Telefone - alcunha curiosa do cidadão José Almeida Netto - João de Maria, Sisson, Fortes, Zézé, Junqueira, ou Ismael Alvariza. Seria este último jogador que no relvado do Valparaíso Sporting Club - o recinto que serviu de palco aos seis encontros deste campeonato - apontou o único golo da vitória sobre um Chile em reconstrução, uma seleção moldada pelo conceituado treinador uruguaio Juan Carlos Bertone com uma mescla de experiência - com futebolistas como Manuel Guerrero, Alfredo France, ou Horacio Muñoz - e juventude - casos de Pedro Vergara, Víctor Toro, Victor Varas, ou Humberto Elgueta - e que sobretudo deixou uma imagem bem mais positiva em relação aos três torneios anteriores. Um dia mais tarde entraram em campo os velhos inimigos do rio da Prata, Argentina e Uruguai, seleções que disputaram uma partida intensa e em certos períodos desenrolada nos limites da agressividade. 1-1 foi o resultado final deste clássico das américas onde sobressaiu o génio de uma das maiores estrelas do selecionado uruguaio orientado por Ernesto Figoli, José Piendibene de seu nome. El Maestro, como era conhecido, realizou uma soberba exibição, a qual seria coroada com um golo, o primeiro desse encontro, apontado aos 10 minutos. Porém, Raul Echevarría igualou a contenda no segundo tempo quando o relógio marcava 75 minutos. Com este resultado o Brasil era líder isolado ao final da 1ª jornada, dependendo apenas de si para revalidar o título conquistado um ano antes no Rio de Janeiro, mas... do céu ao inferno o trajeto foi curto para os brasileiros nesta Copa de 1920.

Brasil sofre humilhação histórica

El Loco Romano
Após cinco dias de descanso a competição voltou a entrar em ação no dia 18 de setembro. Frente a frente as duas seleções que haviam disputado o jogo final da edição anterior, o Brasil e Uruguai. O duelo disputado no Valparaíso Sporting Club teve um desfecho trágico para os campeões em título, já que um autêntico vendaval celeste varreu com os brasileiros do mapa do campeonato. 6-0, uma goleada que até há bem pouco tempo era a maior derrota averbada pela seleção do Brasil ao longo da sua centenária história, um recorde - negativo - que seria batido em 2014, altura em que a canarinha foi humilhada (7-1) em casa pela Alemanha, nas meias-finais do Campeonato do Mundo. Mas voltando a 1920, e a Valparaíso, para recordar que a avalanche ofensiva dos uruguaios teve início aos 23 minutos, quando Ángel Romano, mais conhecido como El Loco Romano, bateu pela primeira vez o infeliz Júlio Kuntz, goleiro que na época atuava no Flamengo. Três minutos volvidos Urdinarán, na conversão de uma grande penalidade, aumentou a vantagem, sendo que ainda antes da saída para o intervalo o centro-campista José Pérez fez o terceiro. Nada corria bem a um Brasil muito desfalcado das suas grandes estrelas da altura, e logo no reatamento da partida Antonio Campolo faria o quarto da tarde. O pesadelo ganhou contornos mais vincados quando à passagem do minuto 60 El Loco Romano voltou a bater Kuntz, que não iria para o duche sem antes ir buscar por uma última vez a bola ao fundo da sua baliza, desta feita enviada, de novo, por José Pérez. Exibição de gala do Uruguai, que provou no Chile que a derrota no Campeonato Sul-Americano de 1919 não havia sido senão um mero acidente de percurso, já que era evidente que continuava a ser a mais virtuosa e letal seleção da América do Sul.
No dia 20 de setembro o Valparaíso Sporting Club encheu para ver a seleção da casa defrontar a Argentina. Contando com o apoio maciço dos seus hinchas, a seleção chilena fez - segundo rezam as poucas crónicas de então - o seu melhor jogo do torneio, culminado com um impensável empate a um golo que deixava a Argentina em maus lençóis quanto à questão do título. Ainda em relação ao Chile, uma particularidade saltou à vista neste torneio, a qual prendeu-se com a cor da camisola usada pela seleción. Pela primeira vez a seleção chilena vestiu a camisola vermelha - nos primeiros anos de vida aquele combinado nacional vestiu-se de branco -, indumentária que persiste até aos dias de hoje, como se sabe.

O nascimento da relação amor/ódio entre argentinos e brasileiros

A principal bancada do Valparaíso Sporting Club,
estádio onde decorreram os seis jogos
da Copa de 1920
A 25 de setembro Argentina e Brasil disputaram o jogo do tudo ou nada. Ambas as seleções precisavam de uma dupla vitória para garantir o título, ou seja, precisavam não só de vencer este jogo como esperar que o anfitrião Chile derrotasse uma semana mais tarde o Uruguai. Os brasileiros, mais uma vez, voltaram a demonstrar que não estavam à altura da seleção que em 1919 havia guiado o país à sua primeira grande conquista internacional, como comprovou o resultado de 2-0 favorável aos argentinos. O Brasil saia sem honra nem glória da Copa do Chile. Quanto aos argentinos, um milagre era aquilo por que suspiravam para o último jogo da competição, que iria decorrer no dia 3 de outubro, e no qual estariam frente a frente chilenos e uruguaios. Antes de passarmos aos factos deste encontro decisivo para as contas finais do torneio importa sublinhar que foi no seguimento do Brasil-Argentina do Campeonato Sul-Americano de 1920 que nasceu a acérrima rivalidade entre os dois países, no que a futebol diz respeito. Até então as duas nações viviam uma relação cordial, a qual mudou como da água para o vinho precisamente depois de um artigo escrito pelo jornalista uruguaio Antonio Palacio Zino ser publicado no jornal argentino "Crítica", onde além de tecer severas... críticas aos jogadores brasileiros ainda os apelidou de macacos. O texto foi o embrião para o nascimento da relação de amor e ódio entre os dois povos, sendo que o aspeto mais curioso nesta bipolaridade sentimental é o facto dela ter sido criada por um uruguaio!

O árbitro do jogo decisivo,
o chileno Carlos Fanta
Voltemos à ação, ao campo de batalha, ao derradeiro dia da prova para nos centramos no confronto entre Chile e Uruguai. Apesar de técnica e taticamente superiores, os uruguaios não tiveram tarefa fácil diante de uma aguerrida seleção do Chile que contou com o apoio frenético de 16 000 espetadores ao longo dos 90 minutos. Uruguai que antes da partida torceu o nariz à nomeação do árbitro do jogo, Carlos Fanta, do... Chile! Contudo, a atuação do juiz chileno, considerado um dos melhores daqueles anos, foi impecável, facto que fez esquecer a todos os presentes que o seu coração batia pela sua pátria. A muralha chilena apenas seria derrubada já muito próximo do intervalo, altura em que El Loco Romano inaugurou o marcador para a celeste. No segundo tempo a multidão presente num estádio que nos dias hoje acolhe corridas de cavalo (!) entrou em delírio, por culpa de Aurelio Dominguez, que aos 60 minutos igualou a contenda. Sol de pouca dura, já que cinco minutos volvidos José Pérez voltou a colocar o Uruguai em vantagem, a qual não mais seria perdida até final, e que mais do que garantir a segunda vitória dos charrúas no torneio assegurou a conquista do terceiro Campeonato Sul-Americano em quatro edições realizadas! A melhor equipa da América do Sul era de novo a rainha do continente.

A figura: José Piendibene

El maestro Piendibene, com
as cores do seu Peñarol
Ángel El Loco Romano e José Pérez sagraram-se os melhores marcadores deste 4º Campeonato Sul-Americano, mas a estrela que mais brilhou ao longo do torneio foi a de José Piendibene. El maestro, como era conhecido, pela forma como pautava o jogo da sua equipa, era um avançado alto, portador de uma qualidade técnica apurada, a qual encantou os adeptos sul-americanos ao longo das décadas em que defendeu com brio as camisolas do Uruguai e do seu amado Peñarol de Montevidéu. José Antonio Piendibene nasceu na capital uruguaia, a 10 de junho de 1890, sendo que com apenas 17 anos vestiu pela primeira vez o manto sagrado da primeira equipa do Peñarol num jogo ante o French, em 1908, e onde no qual o jovem oriundo do bairro de Pocitos maravilhou o público com a marcação de dois golos e uma exibição deslumbrante. A partir dai não mais largou a titularidade no emblema de Montevidéu, tendo chegado à seleção em 1911. A estreia pela celeste deu-se diante do inimigo do outro lado do rio da Prata, a Argentina, tendo a alcunha de maestro nascido precisamente no rescaldo desse encontro, já que de acordo com a história, no final do duelo, o defesa argentino Alumni terá proferido o seguinte elogio ao jovem José Piendibene: «Usted es un maestro, muchacho...». E a alcunha ficou para o resto da sua vida. Ao serviço do Peñarol atuou em mais de meia centena de ocasiões - 506, para sermos mais precisos - tendo apontado 253 golos, registo que faz dele uma lenda eterna do clube aurinegro. Venceu seis campeonatos uruguaios (1911, 1918, 1921, 1924, 1926, e 1928), e em 1916 entrou para a história do Campeonato Sul-Americano de Futebol após ter marcado o primeiro golo da história daquela que hoje em dia é conhecida como Copa América. Fê-lo diante do Chile, a 2 de julho desse longínquo ano de 1916.

Este primeiro Campeonato Sul-Americano seria conquistado, como nunca é demais recordar, pelo Uruguai, tendo este sido o primeiro dos dois títulos continentais - esteve ausente na caminhada triunfal do Uruguai na segunda edição do certame - que Piendibene conquistou ao serviço da seleção celeste, a qual defendeu por 56 ocasiões, tendo apontado 26 golos. Outro recorde que ainda hoje predura prende-se com o facto de Piendibene ser o jogador que mais golos marcou no clássico do rio da Prata, o qual opõe a Argentina ao Uruguai, tendo o jogador do bairro de Pocitos apontado 17 tentos. O reinado do poderoso avançado no seio da seleção terminou nas vésperas de o Uruguai conquistar o Mundo, o mesmo é dizer, os Jogos Olímpicos de 1924. Piendibene só não fez parte dessa célebre equipa onde pontificavam nomes como José Nasazzi, Pedro Cea, Ángel Romano, Pedro Petrone, Héctor Scarone, ou a maravilha negra José Leandro Andrade porque o seu clube estava de candeias às avessas com a Associação Uruguaia de Futebol, e como tal proibiu os seus futebolistas de envergarem o manto celeste nas Olimpíadas de Paris. Nesse mesmo ano de 1924 foi atribuído a José Piendibene o título de sócio honorário do Peñarol. Antes de ser um exímio futebolista ele era um perfeito cavalheiro nas canchas em que passeou a sua classe, já que reza a lenda que sempre que marcava um golo nunca o festejava, em sinal de respeito para com o seu adversário. Faleceu em 1969, na sua cidade natal, Montevidéu.

Nomes e números:

11 de setembro de 1920

A desoladora seleção do Brasil que marcou presença no Chile, em 1920
Brasil - Chile: 1-0
(Alvariza, aos 53m)

12 de setembro de 1920

Uruguai - Argentina: 1-1
(Piendibene, aos 10m)
(Echeverría, aos 75m)

18 de setembro de 1920

Uruguai - Brasil: 6-0
(Ángel Romano, aos 23m, aos 60m, José Pérez, aos 29m, aos 65m, Antonio Urdinarán, aos 26m, Antonio Campolo, aos 48m)

20 de setembro de 1920
A equipa da casa, que pela primeira vez vestiu de vermelho
Argentina - Chile: 1-1
(Dellavale, aos 13m)
(Bolados, aos 30m)

25 de setembro de 1920

Argentina - Brasil: 2-0
(Echeverría, aos 40m, Libonatti, aos 73m)

3 de outubro

Chile - Uruguai: 1-2
(Aurelio Dominguez, aos 60m)
(Ángel Romano, aos 37m, José Pérez, aos 65m)

Classificação

1- Uruguai: 5 pontos
2- Argentina: 4 pontos
3- Brasil: 2 pontos
4- Chile: 1 ponto
A celeste uruguaia, que em terras chilenas alcançou o seu terceiro título de campeão das américas

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