domingo, fevereiro 12, 2017

Arquivos do Futebol Português (8)...

Um quadro de Lisboa no início do Século XX
O início do século XX trouxe consigo a alavanca que iria catapultar em definitivo o futebol português para o caminho da popularidade. Não deixa de ser curioso que esta ascensão acontece em anos conturbados da vida do país, o qual estava mergulhado numa profunda crise sócio-económica. O regime monárquico era pontapeado sistematicamente pelo movimento republicano que ganhava cada vez mais adeptos e força para vencer uma batalha que teria o seu epílogo a 5 de Outubro de 1910 - precisamente com a implementação da República. Mas isso são outras histórias... Era, no entanto, num cenário negro que o país vivia no início do novo século, sob o signo da tristeza, do sofrimento e da miséria. Motivos para sorrir eram quase uma miragem. Quase, e este quase deve-se ao futebol, ou jogo do coice, como então ainda era denominado por alguns que resistiam em ridicularizar aquele que começava aqui a tornar-se como o ópio do povo, como muitos anos mais tarde "alguém" viria a denominar esta modalidade. Na verdade, o football começava a vislumbrar-se por estes dias conturbados como uma distração de um povo que diariamente sofria as consequências da agitação - a diversos níveis - que se vivia em Portugal. E a quem muito se deve este súbito despertar do interesse em torno do belo jogo foi à imprensa. Após os últimos anos do século anterior terem sido pautados por algum desprezo face ao jogo, os jornais (nota: o Tiro Civil é um dos mais ativos na publicação de notícias futebolísticas por estes dias) voltam a centrar atenções nos matches - e nas figuras que lhes davam vida - que iam sendo desenrolados. Nos primeiros anos do novo século surgem mesmo inúmeras publicações vocacionadas apenas para o sport, não só no futebol como noutras modalidades, facto que contribuiu imenso para a popularização do fenómeno. E quando falamos em popularização aludimos ao facto de o football começar neste início de século a sair do berço aristocrático em que nasceu para se juntar ao povo, às classes mais baixas da sociedade. Apesar deste início de união (eterna) entre futebol e povo começar a ganhar vida nos primeiros lampejos do século XX, seriam, de certa forma, os aristocratas a voltar a segurar na alavanca que iria impulsionar de vez o futebol em Portugal. E neste capítulo há que destacar uma vez mais a nobre família Pinto Basto, os introdutores do jogo no nosso país, nunca é demais recordar, cabendo a eles uma grande parte da responsabilidade pelo facto de a bola recomeçar a saltar com vigor nos grounds nacionais.

Eduardo Luís Pinto Basto
A chama do futebol em Portugal reacende-se no seu berço, isto é, em Lisboa. É lá que alguns grupos se voltam a reunir. Em Belém surgem alguns grupos provenientes da Casa Pia, e que acabariam por estar na génese do futuro Sport Lisboa que mais tarde viria a tornar-se no atual Sport Lisboa e Benfica. De forma um pouco mais organizada o futebol ressurge então pela mão dos aristocratas, com os Pinto Basto a comandar esse intento juntamente com a colónia inglesa radicada na capital - ou zona envolvente - que sempre continuou a praticar o jogo mesmo no período em que ele esteve digamos que moribundo. Claro que noutras zonas da capital, em Belém como já vimos, o futebol ganhou vida pela mão de populares, sobretudo estudantes, muitos deles vindos da também já referida Casa Pia, mas no que concerne a matches rodeados de interesse, esses ainda eram disputados por aristocratas e ingleses, sendo aqui de destacar três clubes em particular, o Carcavellos Club, o Lisbon Cricket Club - dois temidos emblemas fundados e compostos por ingleses - e o Real Ginásio Clube, agremiação de índole nacional reanimada pela mão da família Pinto Basto, sobretudo por intermédio de Eduardo Luís Pinto Basto, cuja ação foi preponderante para a reorganização da secção de futebol do Ginásio Clube. Por esta altura, e facto que também terá contribuído para o definitivo enraizamento do futebol em Portugal, terá sido o fim do ódio português a tudo o que era inglês, e como o football era uma criação britânica abriram-se os braços ao beautiful game.

No concerne a matches, ou notícias relevantes de jogos, que surgiram na imprensa durante esta época de 1900/01, destacamos por exemplo a goleada do Carcavellos Club - continuava indiscutivelmente a dominar o futebol lisboeta - aos conterrâneos do Lisbon Cricket Club por 5-0, num duelo disputado na Quinta Nova, em Carcavelos, em março, sendo que no plano individual um tal de Withers destacou-se ao apontar três golos. No início de 1901 o Real Ginásio Club havia também medido forças com o Carcavellos Club, tendo conseguido o enorme feito de travar a armada britânica com um... empate a zero bolas na Cruz Quebrada.
Em 16 de março de 1901 acontece algo de certa forma histórico, que veio quebrar pela primeira vez em Portugal uma tradição inglesa, a de não se jogar football ao domingo por motivos religiosos. Neste dia o Carcavellos Club aceita um desafio diante do Real Ginásio Clube, ocorrido em Carcavelos. A notícia deste match é dada com relevância no Diário Ilustrado de 18 de março desse ano de 1901, da qual recordamos na integra alguns trechos que mostram a mestria e a admiração (que crescia entre os portugueses) pelos ingleses e a bravura dos lusos:
«(...) Os jogadores de Lisboa partiram acompanhados de grande número de sportsmen e senhores convidados no comboio da 1.45 do Cais do Sodré. Chegados a Carcavellos às 2 e meia, eram cercadas 3 quando o referee, Sr. Blythman, deu o sinal de começo, estando frente a frente os dois teams seguintes: Por Carcavellos Club: Durrant (goalkeeper), E.A. Wilmott (back), Hall (back), Normandy (half back), E.P. Wilmott (half back), Manes (half back), Coombs (forward), MacKay (forward), Clark (forward), Gibbons (forward) e Colider (forward). 
Pelo Real Gymnasio Club: Figueiredo (goalkeeper), Aimé da Costa Feio (back) e Siddle (back), C. Gonçalves (half back), F. Boavida (half back) e Motta Veiga (half back), Lacerda (forward), L. Araujo (forward), Mortimer (forward), (nota: desconhecendo-se os dois outros jogadores).
De ambos os lados, desde o principio, jogou-se com valentia. Por parte do team inglês notou-se o que sempre se nota por parte de teams ingleses, e em especial de Carcavellos: muito treino. O seu segredo não é outro.É esse: muito treino. O muito treino dá-lhes unidade no ataque, resistencia na defesa, certesa nos pontapés e folego para nunca abandonarem a bola. (...) São em football o que são em polities, em família, em comércio, em tudo: valentes dentro de sangue frio, enthusiastas dentro da logica, atrevidos dentro da lei. Modelos em tudo. (...) Na 1ª parte marcaram 2 goals contra nenhum; na 2ª marcaram outros dois contra nenhum. Não se pense, porém, que venceram com facilidade. Custou-lhes a vencer, e o perder os portugueses não podia ser mais honroso do para estes do que foi. Efectivamente sem treinos, com jogadores - como o goalkeeper - que há seis anos não jogava e outros que não conheciam o jogo dos seus parceiros, é precisa muita alma, alma de portugueses para aguentar o embate das hostes inimigas com valentia com que o R.G.C. aguantou (...)». 

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