quarta-feira, outubro 16, 2013

Estrelas cintilantes (35)... Ben David

Não fosse o seu excesso de humildade e o facto de a estrela da sorte ter deixado de iluminar cedo de mais o seu caminho, quiçá hoje não estaríamos aqui a recordar uma das lendas dos futebol internacional da década de 50! Diz quem o viu jogar que talento para subir ao Olimpo dos Deuses do Futebol era coisa que não lhe faltava, e a provar isso - uma de muitas provas, aliás - o facto de os mestres ingleses o terem rotulado como o melhor avançado centro que até então tinham visto jogar!!!
Henrique Ben David, assim se chama a nossa estrela cintilante de hoje, considerado o primeiro grande diamante futebolístico extraído de Cabo Verde, onde nasceu a 5 de dezembro de 1926, mais concretamente na cidade do Mindelo, na ilha de São Vicente. Como tantos outros filhos de famílias pobres foi de pé descalço que nas artérias de terra batida conduzia com arte as bolas de trapos que com ele se cruzavam. Figura alta, esguia, com uma impulsão invulgar, detentor de um remate poderoso, e um cavalheiro a tratar o esférico, Ben David despertou de imediato a cobiça dos clubes locais, iniciando aquela que se adivinhava como uma promissora carreira no Clube Sportivo Mindelense, onde ingressou no escalão de infantis, ali permancendo até aos 18 anos de idade, altura em que o seu talento era já gigante demais para continuar a figurar entre as idílicas paisagens do arquipélago de Cabo Verde.

Estávamos em 1946, e o seu destino seria a metrópole, o mesmo é dizer Portugal, e a sua capital, Lisboa. E desde logo vincou a sua faceta modesta, de moço adverso a ser o centro das atenções em grandes palcos - ou clubes neste caso - pelo que na hora de traçar o seu caminho na sede do Império Colonial escolheu o Unidos de Lisboa, ao invés dos gigantes Sporting, Benfica, e Belenenses, afamados emblemas da capital que tendo travado conhecimento com as qualidades do moço cabo-verdiano logo trataram de o agarrar para as suas fileiras. A razão pela escolha do modesto Unidos era simples, Ben David queria um emprego que lhe garantisse um futuro desafogado, porque o futebol, e parece que já pressentia a sua sina, era sol de pouca dura.
Porém, a empresa que suportava o Unidos de Lisboa deixou de o fazer, e o humilde cabo-verdiano teve de procurar outras paragens, outros portos de abrigo, longe das por vezes sinuosas estradas do estrelato futebolístico. A CUF acenou-lhe com um lugar cativo na sua equipa de futebol, e mais do que isso, muito mais importante para Ben David, um emprego como mecânico de automóveis na sua fábrica.
Mecânico de automóveis, este sim, o grande sonho daquele diamante cabo-verdiano.

No emblema do Barreiro andou pelos frios pelados dos escalões secundários durante duas épocas (45/46, e 46/47), tendo na primeira delas partilhado o ataque dos operários com dois homens que anos mais tarde - não muitos mais - haveriam de ascender ao tal Olimpo dos Deuses do Futebol. Eram eles Manuel Vasques, e José Travassos, que no Sporting se juntaram a Jesus Correia, Albano, e Fernando Peyroteo, edificando aquela que seria a orquestra mais virtuosa da história do futebol luso, os Cinco Violinos. Mas poderiam muito bem ter sido seis os violinos do clube lisboeta, caso Ben David não tivesse resistido a uma nova investida sportinguista ja em 1951, quando representou os leões - a convite destes - numa digressão que estes fizeram pelo Brasil. Em Terras de Vera Cruz David encantou, e pasmou os ocupantes do colossal Maracanã, o maior templo de futebol do Mundo daquela época, com os seus dotes de temível goleador.

Amor eterno ao Atlético

Na altura em que Ben David brilhou com a camisola leonina no Maracanã o seu coração era já do Atlético Clube de Portugal, popular emblema lisboeta que em 1947 apereceu na vida do talentoso cabo-verdiano. As enormes exibições ao serviço da CUF mais uma vez aguçaram o apetite dos grandes da capital, mas de novo Ben David fugiu dos holofotes mediáticos do futebol nacional, preferindo atravessar o (rio) Tejo em direção ao bairro de Alcântara, berço do pequeno Atlético. Ben David continuava assim fiel à humildade que caracterizava a sua personalidade.
Atlético que lhe ofereceu 500 escudos por mês, não se sabendo no entanto se o diamante africano terá continuado a exercer a sua amada profissão de mecânico na fábrica da CUF. Certo e sabido é que Ben David fez do emblema de Alcântara uma sombra dos grandes do desporto rei lusitano no que toca a lutar por galardões coletivos, isto é, títulos. Por outras palavras, Henrique Ben David colocou o Atlético Clube de Portugal no mapa do futebol português.
Demorou no entanto a afirmar-se na modesta coletividade, que por aqueles dias ocupava um lugar quase despercebido no primeiro plano nacional, isto é, a 1ª Divisão. Fez a estreia com a camisola do Atlético a 5 de outubro de 1947, num encontro ante o Belenenses.
Apesar de marcar muitos golos e de traçar nos retângulos nacionais ótimas exibições, Ben David só explodiu verdadeiramente na época de 1949/50, altura em que guiou o Atlético até um impensável 3º lugar na classificação final - ficando à frente dos grandes FC Porto, e Belenenses - de um campeonato ganho pelo Benfica, dos génios Julinho, Espírito Santo, Arsénio, ou Rogério Pipi.
Porém, uma temporada antes, os seus golos ajudaram o pequeno emblema a pisar pela segunda vez na história a relva sagrada do Estádio nacional, para discutir a final da Taça de Portugal. No duelo com o Benfica os rapazes de Alcântara venderam muito cara a derrota por 1-2.
Nesta célebre temporada de 49/50 os guarda-redes contrários foram vítimas do reconhecido poder de fogo do cabo-verdiano em 21 ocsiões, número apenas superado pelo benfiquista Julinho, o melhor marcador da prova, com 28 tentos.

Ingleses rendidos ao talento do diamante de Alcântara

As boas exibições do diamante daquela que era já a estrela cintilante dos rapazes de Alcântara fizeram com que em 1950 fosse chamado a representar a seleção nacional para o jogo com a poderosa Inglaterra, seleção esta então de má memória para o futebol luso, já que três anos antes havia vergado Portugal por uns humilhantes 10-0! O palco deste novo amigável era o mesmo da concludente derrota de 1947, o Estádio Nacional, cujas bancadas se apresentavam repletas de uma massa adepta que encarava este novo duelo com alguma expetativa e... receio. Estariam Sir Stanley Matthews - a estrela da seleção da rosa - e companhia a preparar outro massacre ao combinado luso? Era a questão que circulava nas graníticas bancadas do Jamor. A resposta chegou pelos pés do génio Ben David, que com uma exibição soberba fez passar quase por despercebidas as diferenças abismais que naquele tempo separavam o modesto futebol lusitano do evoluído football britânico. Apesar da derrota por 3-5 a seleção portuguesa mereceu rasgados elogios, que no plano individual se estenderam a Ben David, autor de dois golos. Reza a lenda que no final do jogo os mestres ingleses teceram rasgados elogios ao jogador do Atlético, classificando-o de tecnicamente muito evoluído, acrescentando que aquele rapaz era tão só o melhor avançado centro que até então tinham visto jogar! Ele que com aquela primeira internacionalização se havia tornado no primeiro nativo de Cabo Verde a vestir a camisola das quinas.

No plano interno, isto é, o campeonato nacional, a chama de Ben David continuava bem acesa, e nas temporadas de 50/51 e 51/52 ele continuou a liderar o seu Atlético no assalto aos lugares cimeiros da 1ª Divisão. Em 50/51 o clube de Alcântara foi 4º colocado, sendo apenas superado pelo campeão Sporting, Benfica, e FC Porto, sendo que plano individual a estrela do Atlético fez o gosto ao pé em 26 ocasiões, o seu melhor registo no escalão principal, ficando somente a três golos do seu ex-companheiro da CUF, o violino Vasques. 

Por aqueles dias o seu natural talento era já sobejamente conhecido no plano nacional e... internacional. De França chegou a Alcântara uma proposta de um afamado clube daquele país mostrando interesse em adquirir o diamante de Cabo Verde. Era o Stade Français, clube milionário parisiense que propôs a Ben David um luxuoso ordenado de seis mil escudos por mês, acrescido de mil e oitocentos escudos por vitórias obtidas fora de casa, mil por cada triunfo caseiro, e oitocentos escudos por empate. Para além desta tentação financeira, e sabendo da paixão de Ben David pela mecânica, o clube da capital gaulesa oferecia-lhe ainda uma espécie de estágio de especialização em mecânica numa fábrica à sua escolha entre as famosas marcas Citroen, Renault, e Peugeot. Perante estas ímpares condições Ben David não podia recusar a mudança para a majestosa capital francesa. Não recusou Ben David mas fê-lo o Atlético, que para libertar a sua jóia pedia 300 contos ao Stade Français, verba essa desde logo recusada por estes, que assim desistiam do sucessor de... Peyroteo!

Sucessor de Peyroteo depara-se com o azar

Para muitos dos especialistas do fenómeno futebolístico daquele tempo Ben David reunia todas as condições para ser o maior avançado centro do país. Muitos diziam mesmo que o sucessor do lendário e feroz - na hora de rematar à baliza - leão Fernando Peyroteo - o maior avançado centro do futebol luso da primeira metade do século XX - estava encontrado. Faltava-lhe quiçá apenas dar o salto definitivo para um grande de Portugal, para poder traduzir em títulos a arte do seu jogo.
Mas Ben David era leal à sua humildade e modéstia, e sobretudo ao seu Atlético, e por Alcântara continuou, tendo em 51/52 realizado mais uma soberba temporada no plano individual ao apontar 24 golos, ficando a apenas quatro do então emergente homem golo do Benfica, José Águas, o melhor marcador do campeonato. Em termos coletivos 1951/52 não correu tão bem a Ben David, que viu o Atlético quedar-se por um modesto 12º lugar!
Em 1952/53 chegou à Tapadinha - o nome do estádio do Atlético - o lendário treinador Joseph Szabo, que tantos títulos havia somado ao serviço do FC Porto e do Sporting. E o que até aqui tinham sido rosas para o talentoso Ben David transformou-se num penoso calvário durante as três épocas que se seguiram. Uma grave lesão no menisco fez com que a sua carreira entrasse prematuramente na reta final. A magia que Ben David touxera de África eclipsou-se, e até 1954/55, a sua derradeira época como futebolista, ele foi uma sombra de si mesmo! Não tinha sequer 30 anos quando pendurou as chuteiras! Em oito temporadas ao serviço do Atlético o rapaz do Mindelo apontou quase uma centena de golos (98 para sermos mais precisos) em 119 jogos oficiais, e mais do que isso perpétuou-se como o jogador mais lendário da história do popular clube de Alcântara.

Pela seleção nacional atuou em seis ocasiões, sendo que para além do histórico embate com a Inglaterra em 1950, defrontou ainda o País de Gales - a quem marcou um golo, em Cardiff, a 12 de maio de 1951 -, a Bélgica - que a 17 de junho de 1951 também conheceu a veia goleadora de David -, novamente a Inglaterra, e por fim a França, em Paris, a 20 de abril de 1952.
Aquele que outrora fora respeitado, admirado, e sobretudo temido, por adversários de vários quadrantes futebolísticos deixou cedo demais os campos de batalha, mas não o futebol.
Em 55 viaja para os Açores onde inicia uma carreira de treinador ao serviço do Santa Clara. Naquele arquipélago orienta ainda os conjuntos do União Sportiva, do Marítimo (da ilha Graciosa), e do União Micaelense. Posteriormente, e depois de deixar de vez o belo jogo, trabalhou na RTP Açores, sendo o responsável pelo programa Teledesporto.
Curioso, é que nasceu e morreu num arquipélago. Foi pois nos Açores - em Ponta Delgada - que no dia 5 de dezembro de 1978 - precisamente o dia em que completava 52 anos de vida - que o primeiro grande artista nascido em Cabo Verde deixou o mundo terrestre.

Legenda das fotografias:
1-Henrique Ben David com a camisola do seu Atlético
2-Um aspeto aéreo da fábrica da CUF nos anos 40
3-A entrada em campo de uma equipa do Atlético (Ben David surge em terceiro lugar a contar da eesquerda para a direita)
4-Com a camisola da seleção nacional
5-Novamente envergando o manto sagrado do clube de Alcântara
6-A equipa do Atlético treinada por Joseph Szabo em 52/53
7-Uma das últimas imagens do homem nascido em Cabo Verde

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