terça-feira, abril 02, 2013

Histórias do Futebol em Portugal (12)... Nascimento da A.F. Lisboa coincide com o único título conquistado pelo primeiro grande clube português

Trazido pela mão dos irmãos Pinto Basto em finais do século XIX o futebol em Portugal iniciou a sua curva ascendente no que a popularidade diz respeito nos inícios dos 100 anos que se seguiram, altura em que surgiram os primeiros duelos acesos entre os clubes que iam florescendo a uma velocidade estonteante, duelos que começavam a despoletar nos corações do povo lusitano a paixão por aquele belo jogo nascido em Inglaterra. O primeiro grande centro futebolístico português foi Lisboa, cidade que em finais do século XIX e princípios do século XX viu nascer uma série de clubes que ajudaram a enraizar o jogo na cultura lusitana. Nasceram as primeiras rivalidades clubísticas, os primeiros disputadíssimos torneios, e naturalmente as primeiras lendas dos retângulos de jogo. Contudo, e talvez porque fosse algo novo, a organização foi digamos que o calcanhar de aquiles do jovem futebol português. Nos anos iniciais as regras muitas vezes não eram respeitadas, causando o caos entre clubes, jogadores, e adeptos. Foi preciso esperar até 1910 para que finalmente o futebol fosse estruturado dos pés à cabeça, tendo para isso muito contribuido o nascimento da Associação de Futebol de Lisboa (AFL), a primeira associação do país, e para muitos a primeira entidade reguladora a sério do fenómeno futebolístico luso.
Na viagem de hoje ao passado vamos então recordar as incidências do primeiro Campeonato (regional) de Lisboa organizado pela AFL, e recordar o seu primeiro campeão oficial, aquele que na época era o clube mais bem estruturado do ainda criança futebol nacional.

Como já vimos as competições inter-clubes começaram a surgir um pouco por todos os quatro cantos da capital portuguesa nos inícios do século passado. Esta atividade não era mais do que o resultado dos elevados índices de popularidade que o futebol grangeava na urbe lisboeta. A imprensa começava a dar destaque aos jogos que se desenrolavam aqui e acolá, e com naturalidade surgiram pois os primeiros campeonatos regionais. Em meados de 1906 os principais emblemas lisboetas da época reúnem-se com a intenção de criar um organismo que orientasse e coordenasse uma grande competição. Dessa reunião nasce a Liga Football Association (LFA), o organismo (presidido por Joaquim Costa e secretariado por um tal de José de Alvalade, esse mesmo, o mentor do Sporting Clube de Portugal) que tutela o primeiro campeonato de Lisboa, cujo pontapé de saída foi dado na temporada de 1906/07. Grande dominador do futebol daqueles dias o Carcavelos Club - composto exclusivamente por jogadores ingleses a laborar no Cabo Submarino - conquistou o título, levando a melhor sobre o Benfica, o Lisbon Cricket, e o Clube Internacional de Futebol, popularmente conhecido como CIF.
A arte futebolística dos ingleses do Carcavelos seria vincada nas duas edições seguintes, com a obtenção de mais dois ceptros regionais, sendo que na temporada de 1907/08 o Campeonato de Lisboa passa a ser organizado por uma nova entidade, a Liga Portuguesa de Futebol (LPF), a sucessora da LFA. Januário Barreto, médico de profissão, árbitro, jogador, e ilustre dirigente desportivo - exerceu entre outros cargos o de presidente do Sport Lisboa - foi o primeiro presidente do recém-nascido organismo. Mas a vida da LPF seria curta.

Ainda antes do Benfica colocar em 1909/10 um ponto final no reinado de três anos consecutivos dos ingleses do Carcavelos Club na competição, mosquistos por cordas começaram a surgir em catadupa no seio do futebol lisboeta. Com as rivalidades entre clubes ao rubro, as águas agitavam-se entre adeptos, jogadores e dirigentes. A indisciplina reinava nas relações entre clubes, causadas por queixas contra árbitros, ou decisões da LPF. Os regulamentos raramente eram cumpridos. Os jogadores mudavam de camisola quando bem lhes apetecesse, os clubes desistiam a meio das provas, além de que a segurança não existia numa época em que as rivalidades levavam os adeptos a ultrapassar a fronteira que separa os bons costumes da selvajaria. Tudo isto, ao que se juntou a morte de Januário Barreto, levou a que em 1910 a LPF fechasse portas. O futebol vivia em tumulto, tal como aliás o próprio país, que se encontrava em transição do regimo monárquico para o da república. Tumulto cujo ponto final foi colocado a 23 de setembro desse longínquio 1910, dia em que nasce a Associação de Futebol de Lisboa, a entidade que haveria de dinamizar o futebol associativo em Portugal dali em diante.
AFL que tomou de imediato conta do Campeonato de Lisboa, tendo logo em 1910/11 chamado a si a organização do certame, que iria contar com a participação de sete clubes, nomedamente o CIF, o Benfica, o Sporting, o Campo de Ourique, o Império, o Lisboa Football Club, e o União Belenense. Notava-se a ausência de alguns clubes históricos dos primeiros anos de futebol em Portugal, desde logo os ingleses do Carcavelos Club, que preferiam agora competir apenas em jogos particulares (!), enquanto que emblemas como o Lisbon Cricket e o Gilman desapareciam, tendo os seus valorosos atletas rumado para outras paragens. O CIF, por exemplo, reforçou-se com alguns atletas do Lisbon Cricket, ao passo que o Império recebeu quase toda a equipa (!) do Gilman. A AFL organizou o primeiro Campeonato (oficial) de Lisboa em três categorias: primeiras, segundas, e terceiras, sendo que as duas últimas se equiparavam a uma espécie de campeonatos de reservas.

O primeiro "regional" lisboeta teve início a 13 de novembro de 1910, tendo logo na ronda inaugural surgido uma enorme supresa. O campeão da época anterior, o Benfica, foi derrotado em casa pelo União Belenense, por 2-3 (!), o único desaire dos encarnados liderados pelo seu dirigente/treinador/jogador (!!!) Cosme Damião, mas que haveria de ser decisivo nas contas finais. Outro grande candidato ao título que iria tropeçar lá mais para a frente do campeonato era o Sporting, o clube aristocrata da sociedade lisboeta, o clube abastado financeiramente, que tinha nas suas fileiras alguns dos melhores jogadores lusos de então.
Os irmãos Stromp (Francisco e António) eram duas das principais estrelas leoninas, aos quais se juntavam os irmãos Catatau (António Rosa Rodrigues, e Cândido Rosa Rodrigues), responsáveis pela primeira grande traição do futebol lusitano no início do século passado.

Figuras de destaque dos primórdios do Benfica, António Rosa Rodrigues e Cândido Rosa Rodrigues desertaram do clube no final da temporada de 1906/07, rumo ao grande rival Sporting, que os aliciou com... banhos quentes e toalhas lavadas no final de cada jogo/treino (!), mordomias que o então pobre Benfica não possuia. Grande figura daquele Sporting era também Francisco dos Santos, o primeiro emigrante de sucesso do futebol português, a quem o Museu Virtual do Futebol já dedicou longas linhas numa outra visita ao passado. Só para relembrar os mais esquecidos Francisco dos Santos revelou-se como um cerebral médio-ofensivo no Casa Pia, em finais do século XIX, tendo posteriormente respresentado o Sport Lisboa - antecessor do Sport Lisboa e Benfica - antes de rumar ao estrangeiro para estudar... Belas Artes. Primeiro em Paris e depois em Roma, sendo que na Cidade Eterna para fazer face às enormes dificuldades financeiras vivenciadas arranjou emprego como... jogador de futebol. E em boa hora o fez, pois tornou-se de imediato numa referência do jovem calcio transalpino ao serviço da Lázio. No emblema da capital italiana destacou-se então, não sendo de admirar que a braçadeira de capitão lhe fosse entregue logo na primeira época! Foi um dos artistas do primeiro dérbi romano, entre Lázio e Roma, tendo o ilustre (jornal) Gazzetta dello Sport sublinhado que nesse jogo histórico estiveram em evidência dois jogadores... «o jovem Saraceni e o veterano Dos Santos, que com os seus 55 quilos foi, impressionante, dos melhores em campo...». De regresso a Portugal (em 1908) assinou pelo Sporting, ali terminando a sua brilhante carreira de futebolista, antes de se dedicar em exclusivo à atividade de escultor que o haveria de eternizar na História de Portugal.

Mas as estrelas só por si não ganham jogos, e o Sporting encontrou muitas dificuldades ao longo da sua caminhada no primeiro "regional" oficial de Lisboa. Dificuldades criadas sobretudo pelos seus dois maiores rivais, o Benfica, com quem perdeu na 6ª jornada por 5-1, e o CIF, que derrotaria os leões nos dois confrontos realizados, o primeiro (na 5ª jornada) por 1-0, e o segundo na 11ª ronda, por 2-0. Os desaires averbados nas 5ª e 6ª jornadas - diante dos seus principais rivais - ditaram praticamente o afastamento dos sportinguistas da luta pelo título, a qual foi quase de forma exclusiva protagonizada pelo CIF e pelo Benfica. Os duelos entre CIF e Benfica - cuja maior estrela era Cosme Damião - neste campeonato terminaram empatados, um a zero golos (na 2ª jornada), e outro a uma bola (na ronda número oito), pese embora a meta tenha sido cortada em primeiro lugar pelos primeiros, com um total de 22 pontos, contra os 20 dos encarnados.

Desta forma o CIF era assim coroado como o primeiro campeão oficial da AFL. Na última jornada do campeonato um facto caricato ocorreu no embate entre Benfica e Sporting, ocorrido no recinto do Lisboa Football Club, o Campo dos Castelos. A tarde futebolística teve início com uma partida das segundas categorias, cujo vencedor foi o Benfica, por 1-0. O público afeto ao Sporting não terá gostado da exibição do árbitro do encontro, queixando-se sobretudo do golo benfiquista, que segundo os leões teria sido apontado em fora de jogo. O ambiente estava incendiado, e mais ficou quando as primeiras categorias subiram ao retângulo de jogo. O Sporting abriu o marcador, mas logo depois o Benfica restabelece a igualdade em mais um lance... irregular, nas vozes leoninas. Estas sublinham uma carga evidente do marcador do golo benfiquista sobre o guarda-redes da casa, Gastão Pinto Basto. O árbitro do encontro, que por sinal era primo do guardião leonino, e que dava pelo nome de Eduardo Luís Pinto Basto, validou o tento, e a multidão em fúria invadiu o terreno de jogo. As cenas que se seguiram foram o que se pode chamar de um intenso combate de boxe (!) entre benfiquistas e sportinguistas. A AFL homologou a igualdade a uma bola, mas a Comissão de Árbitros não concordou, tendo então sido marcado um novo jogo entre ambas as equipas para 18 de julho de 1911, partida essa à qual o Sporting não compareceu, alegando num comunicado que «os benfiquistas não eram dignos de pisar as suas instalações»!

Bom, mas voltando ao campeão, ao CIF, o clube terminou a temporada de 1910/11 com um total de 10 vitórias alcançadas e apenas dois empates consentidos (ante o Benfica, como já vimos), tendo entre o seu grupo de notáveis jogadores destacado-se nomes como Eduardo Luis Pinto Basto, Merik Barley, W. Sissener, Augusto Sabbo, ou Luis Kruss Gomes. CIF que foi digamos que o primeiro grande clube de futebol em Portugal, sobretudo sob o ponto de vista estrutural, servindo de exemplo para muitos outros clubes que iriam nascer nos anos seguintes. Ligado diretamente aos introdutores do futebol em Portugal, os Pinto Basto, o CIF alcançou assim o único título oficial da sua hoje centenária vida, coincidindo com o nascimento de uma AFL que seria a semente para o crescimento do futebol português no plano organizativo. O exemplo organizativo da AFL deu origem a que mais tarde outras associações de futebol nascessem noutras regiões de Portugal que começavam também elas a ver os seus grupos futebolísticos darem os primeiros pontapés na bola de forma mais séria.

A figura: Eduardo Luís Pinto Basto

Oriundo da família responsável pela introdução do futebol em Portugal Eduardo Luís Pinto Basto foi para muitos a grande figura do primeiro campeonato oficial da AFL. Filho do pai do futebol português, Guilherme Pinto Basto, o homem que em 1884 trouxe de Inglaterra a primeira bola, e que em 1888 organizou o primeiro jogo - facto já mencionado pelo Museu Virtual do Futebol - Eduardo Luís Pinto Basto herdou do seu progenitor a paixão pelo desporto, e pelo futebol muito em particular. Além de jogador, foi árbitro, e dirigente, tendo sido um dos rostos da fundação do CIF. À semelhança do seu pai estudou em Inglaterra, onde teve contato com o belo jogo, e chegado a Portugal colocaria em prática esses conhecimentos, contribuindo e muito para o crescimento do futebol luso. O seu pai, Guilherme Pinto Basto, deu-nos a conhecer o jogo em finais do século XIX, ao passo que Eduardo ajudou a cimentá-lo nos inícios do século XX não só com a organização de jogos e torneios, mas também ao nível da própria estruturação deste fenómeno. Como jogador destingiu-se sobretudo na baliza, tal como o seu pai - mais um ponto em comum entre ambos -, tendo sido um dos primeiros grandes keepers lusos, brilhando com as cores do seu CIF, clube que ajudou a fundar juntamente com nomes sonantes da época como Carlos Villar, ou Joaquim Costa. CIF que foi o primeiro clube português a jogar além-fronteiras, facto ocorrido em 1907, quando os lisboetas foram à capital espanhola bater o Madrid FC - antecessor do Real Madrid - por 2-0. Eduardo Luís Pinto Basto estava na baliza. E na baliza estaria também em 1911 aquando da primeira visita de um clube estrangeiro a Portugal, no caso os franceses do Stade Bordelais, que enfrentaram em Lisboa além do CIF de Pinto Basto, o Benfica e uma seleção da AFL, que na baliza tinha... Eduardo Luíz Pinto Basto. AFL onde esta figura se distinguiu, quer como dirigente, quer como árbitro, tendo sido um dos juízes mais conceituados da época.
Nasceu a 6 de junho de 1886, precisamente dois anos antes do seu pai ter organizado o tal primeiro jogo de futebol em Portugal, nos terrenos da Parada, em Cascais. Faleceu em 1955.  

Números finais do primeiro Campeonato (oficial) de Lisboa 

1-CIF: 22 pontos
2-Benfica: 20 pontos
3-Sporting: 14 pontos
4-Campo de Ourique: 10 pontos
5-Império: 8 pontos
6-União Belenense: 6 pontos
7-Lisboa FC: 4 pontos

Resultados mais dilatados

Benfica - Lisboa FC: 15-0
Sporting - Lisboa FC: 14-0
CIF - Lisboa FC: 12-3
Campo de Ourique - CIF: 0-11

Legenda das fotografias:
1-Clube Internacional de Futebol, o popular CIF, o primeiro campeão da Associação de Futebol de Lisboa (AFL)
2-O notável dirigente desportivo Januário Barreto
3-Um dos primeiros escudos da AFL
4-Cosme Damião, a estrela do Benfica
5-Os irmãos Catatau
6-Jogo entre CIF e Sporting
7-Cosme Damião em ação contra o Império
8-Equipa do Benfica, vice campeã regional de 1911
9-Eduardo Luís Pinto Basto
10-Francisco dos Santos, uma das estrelas do primeiro campeonato da AFL

Nenhum comentário:

Postar um comentário