quarta-feira, janeiro 23, 2013

Histórias do Futebol em Portugal (11)... Bailinho da Madeira

Surpresa foi - indiscutivelmente - a palavra de ordem da 5ª edição do Campeonato de Portugal, ocorrida em 1926, na sequência do glorioso trajeto percorrido pelo Marítimo, o crónico campeão da Associação de Futebol da Madeira que mais do que vencer o título foi o responsável por uma das maiores humilhações da história do gigante FC Porto! Mas já lá iremos.
Esta edição fica ainda vincada pela acesa - e crescente - rivalidade entre as cidades do Porto e de Lisboa, rivalidade essa nem sempre bonita de se ver em espetáculos desportivos...
Campeonato de Portugal de 1926 que teve mais uma estreia em termos de aderentes, digamos assim, mais concretamente a Associação de Futebol de Vila Real, que se fez representar pelo seu campeão, o Sport Clube Vila Real. Equipa esta cuja sorte nada quis consigo, já que na 1ª eliminatória o azar bateu à porta dos vilarealenses ao colocar-lhes no caminho nada mais nada menos do que o campeão de Portugal em título, o poderoso FC Porto. No Campo do Covelo, a 5 de maio desse ano, os portistas esmagaram os transmontanos por 10-0 (!), sendo de destacar a veia goleadora do capitão de equipa Norman Hall, autor de oito tentos! Balbino da Silva encarregou-se de apontar os outros dois.
Nesse mesmo dia, mas em Lisboa, mediram forças no Campo Grande (recinto do Sporting) os campeões das associações de futebol de Aveiro e de Coimbra, respetivamente o Sporting de Espinho e o União de Coimbra, o vencedor surpresa do regional da cidade dos estudantes. Foi um duelo intenso e de vencedor incerto até bem perto do fim, onde os espinhenses estiveram grande parte do tempo em desvantagem no marcador, acabando, no entanto, já perto do fim, por dar a volta e vencer por 4-3.
Quanto ao Sporting de Braga o destino voltou a colocar-lhe no caminho o seu carrasco das duas edições anteriores, ou seja, o Vianense. Campeões de Viana do Castelo que em 1924 e 1925 haviam - curiosamente - então afastado os bracarenses na 1ª ronda da prova, só que há terceira veio a vingança dos homens da Cidade dos Arcebispos.Um golo solitário de Chelas selou a tal vingança bracarense sobre os vizinhos da Princesa do Lima, que desta forma superavam pela primeira vez a barreira da ronda inaugural.

Em Lisboa, e novamente no Campo Grande, assistiu-se a um dérbi alentejano, entre os campeões das associações de Portalegre e de Beja, respetivamente o Estrela e o Luso. Com arbitragem do lisboeta Ilídio Nogueira foi mais forte o conjunto do Baixo Alentejo, que graças a dois golos de Fausto e Martins avançava para os quartos-de-final.
Por último, entrou em campo o Belenenses, que poucas semanas havia angariado o direito de participar no Campeonato de Portugal em virtude da conquista do seu primeiro título de campeão da Associação de Futebol de Lisboa. Orientados tecnicamente pelo fundador do clube da Cruz de Cristo, Artur José Pereira, os jogadores belenenses não sentiram grandes dificuldades para afastar os Leões de Santarém, conforme traduz a expressiva vitória por 7-2, com destaque para os bis (dois golos) das grandes estrelas dos lisboetas daquela altura, Pepe e Rodolfo Faroleiro.

Belenenses que nos quartos-de-final, disputados no dia 16 de maio, voltou a mostrar o porquê de ter vencido com mérito o dificil Campeonato de Lisboa, onde superrou duros obstáculos, como por exemplo Sporting e Benfica! Não é para todos. Mas voltando ao Campeonato de Portugal, os azuis de Belém aplicaram uma nova goleada, desta feita ao Sporting de Espinho, que saiu do Campo Grande vergado a uma derrota de 1-4.
Mais a norte, no Porto, o crónico campeão local despachava o Sporting de Braga por 3-0, com golos de Balbino da Silva (dois) e Hall, o inglês que haveria de se sagrar o melhor marcador desta edição da prova. E por falar em campeões crónicos, em Setúbal (no Campo dos Arcos) entrou em campo o campeão do Algarve, o Olhanense - isento da 1ª eliminatória -, que iria golear por 5-0 o Luso Beja.

Marítimo humilha o FC Porto!

E chegavámos assim às meias-finais. Eliminatória esta onde de acordo com os regulamentos da União Portuguesa de Futebol (UPF) estava já o campeão da Madeira, o Marítimo, que tal como nas edições anteriores havia escapado às primeiras eliminatórias. Estranha foi a decisão do organismo que tutelava o futebol português em fazer com que o campeão da Associação de Futebol do Porto disputasse a sua meia final em Lisboa, e o campeão da associação da capital lutasse pelo acesso à final em terrenos portuenses! Sem se compreender esta caricata decisão da UPF o FC Porto lá teve de viajar para Lisboa para enfrentar o Marítimo... num ambiente para lá de hostil. No Campo Grande os portistas lutaram contra dois adversários, o conjunto oriundo da Madeira, e o público, afeto aos clubes da capital, que não se cansou de apupar e insultar os jogadores azuis-e-brancos ao longo da partida. Era visível o ódio de estimação que começava a crescer entre os adeptos dos clubes das duas maiores cidades do país, sendo que na memória dos lisboetas estava ainda bem fresca a final do Campeonato de Portugal de 1925, entre o FC Porto e o Sporting, último clube este que segundo a imprensa lisboeta - claro está - saíra prejudicado pela atuação do árbitro galego Rafael Nuñez.
Mas voltando ao duelo do Campo Grande - que estava cheio como um ovo - o que se assistiu ao longo de 90 minutos foi um autêntico vendaval madeirense! Quiçá afetados pela hostilidade do público local os portistas viveram uma tarde de pesadelo, um dos piores momentos da sua história, há que dizê-lo. Foram esmagados - a palavra mais simpática que encontramos para descrever os acontecimentos vividos naquela tarde - pelos madeirenses por 7-1! Sim, sete, e mais poderiam ter sido caso o melhor elementos dos desnorteados portistas não tivesse sido o seu lendário guarda-redes Mihaly Siska. Este resultado impensável causou delírio entre o público da capital, que festejou a vitória do Marítimo como se esta tivesse sido alcançada por um dos seus clubes de eleição.

A imprensa lisboeta também não perdeu - mais uma vez - a oportunidade de empolar este histórico acontecimento desportivo, ou melhor, a celébre tragédia portista. O Ecos do Sport - que deu grande destaque à partida - escrevia: «Esta é a verdade: Siska não foi batido só pelo ataque do Marítimo, mas, sobretudo, pela sua própria defesa. Siska foi o único no grupo do Porto que jogou. Ele teve, na realidade, um trabalho extenuante, porque os avançados da Madeira atiraram ao goal (baliza) quase quando e como quiseram. Assim desajudado qualquer guarda-redes sucumbia. A arbitragem de Ilídio Nogueira (de Lisboa) foi, quanto a nós, muito acertada, não se perturbando ante as ruidosas manifestações do público que, a todo o transe, queria fouls (faltas) contra o Porto».
Na cidade do Porto o resultado foi recebido com choque entre os adeptos do emblema azul-e-branco. Com a vergonha - diante de tamanha derrota - dezenas de sócios portistas rasgaram os seus cartões de associados, calcaram emblemas, queimaram bandeiras, e não pouparam críticas aos seus jogadores, dirigentes, e claro, ao treinador. O elo mais fraco acabou mesmo por ser o húngaro Akos Tezler, que um ano antes havia conduzido os portistas ao título de campeão de Portugal, acabando por ser despedido pouco depois desta trágica eliminatória, ao que parece por ter pedido um... aumento de ordenado após ter sido humilhado pelos rapazes da Madeira!
O rescaldo do jogo ante o Marítimo prolongou-se por mais alguns dias mais, tendo o presidente da Direção do clube da Invicta, Domingos Almeida Soares, saido a terreiro para não só lamentar tamanha derrota mas sobretudo para criticar a hostilidade com que o seu clube foi recebido em Lisboa, lamentando profundamente «a antipatia formidável que o sul mantém pelo norte».

Fundado no ano (1910) da implantação da República o Marítimo construía assim o momento mais sublime da sua ainda curta história de vida. Um momento presenciado por um jovem rapaz de 14 anos, que à socapa havia viajado incógnito no paquete Lima, o barco que transportou os madeirenses até ao continente. Vasco Nunes, o nome deste aventureiro de palmo e meio, que posteriormente contou à imprensa a sua recambulesca história. «Comprei um quilo de bolachas e uma garrafa de groga numa venda onde a minha mãe tem confiança, agarrei nos embrulhos e na trouxa, deitei a correr para o cais, meti-me numa lancha e fui para bordo, onde me escondi debaixo de um beliche. Já o barco tinha levantado ferro, senti-me agarrado pela grenha e pus-me a chorar. Era um criado, um malandro, que me bateu e levou ao comandante. Já o barco ia nas laturas de Porto Santo. Depois levaram-me para 3ª classe, onde os rapazes do Marítimo, sabendo do meu caso, me iam levar de comer. Quando chguei a Lisboa é que foi o diabo. Queríam entregar-me à polícia marítima e chegaram a meter-me no porão, onde tive medo de umas vacas muito grandes que lá estavam. Quem me salvou foi o José Ramos e o Domingos, o capitão do Marítimo. Foram ao comandante e pediram a minha liberdade, dizendo que se responsabilizavam por mim...». De pronto Vasco tornou-se na mascote da equipa, acompanhado de perto a caminhada gloriosa dos verde-rubros no campeonato, em cuja final encontraram os rapazes de Belém, que na meia-final haviam derrotado o Olhanense por uns curtos 2-1.

Final só durou 60 minutos!

A comitiva madeirense teve de fazer um esforço financeiro para permanecer no continente por mais duas semanas (!) até ao jogo da final. Jogo decisivo que a UPF agendou para o Porto, mais precisamente para o Campo do Ameal, propriedade do Progresso. Decisão que fez estalar o verniz entre jogadores e dirigentes belenenses. Cientes da intensa rivalidade entre Lisboa e Porto os homens da Cruz de Cristo receavam ser... mal recebidos na Invicta, e como tal protestaram o palco da final. A UPF fez ouvidos moucos e os belenenses lá foram contrariados para o Porto onde - tal como haviam previsto - foram recebidos com uma cruel hostilidade pelo público portuense. Adeptos estes que, esquecendo a humilhação que o Marítimo havia aplicado ao FC Porto semanas antes, tomaram partido do conjunto da Madeira do príncipio ao fim do jogo ocorrido a 6 de junho.
Os jogadores de Belém entraram no Ameal debaixo de um coro ruidoso de assobios e apupos, ambiente que desde logo os enervou, e condicionaria em grande parte do encontro. O portuense José Guimarães foi o árbitro de um jogo que até começou equilibrado, com luta intensa a meio campo. Com o avançar do relógio, e com os gritos de incentivo ao Marítimo como som de fundo, a partida foi endurecendo, o que favorecia os rapazes da ilha da Madeira, mais resistentes do ponto de vista físico. Madeirenses que aos 35 minutos dispuseram de uma oportunidade sublime para chegar à vantagem, na sequência de uma grande penalidade assinalada a castigar uma falta belenense. Oportunidade que seria desperdiçada, e o encontro lá continuou com o nulo no marcador até ao intervalo. Na etapa complementar o Belenenses entrou melhor, mas seria o Marítimo a chegar ao golo à passagem do minuto 55 por intermédio de José Fernandes, na cobrança de um livre direto.

Cinco minutos volvidos Ramos faria o 2-0, e o Campo do Ameal explodiu de alegria, ao mesmo tempo em que os jogadores lisboetas eram provocados e ridicularizados pelo público ali presente. Belenenses que protestaram vincadamente o segundo golo insular, alegando irregularidades. Augusto Silva, um dos melhores jogadores dos azuis, terá mesmo puxado o braço do árbitro, pedindo-lhe satisfações, ao que este sem mais demora deu ordem de expulsão ao belenense. Augusto Silva recusou-se a sair do campo, e a desordem instalou-se no Ameal. O público continuava a insultar os lisboetas, agora mais do que nunca, e só a intervenção pronta da polícia a cavalo terá evitado males maiores. Augusto Silva continuava a recusar sair do campo, e assim sendo, o árbitro, após consultar os dirigentes da UPF ali presentes, decidiu por encerrar o jogo, e consequentemente atribuir o título de campeão ao Marítimo.
A festa estalou de pronto. Era como se os madeirenses estivessem a jogar em casa! Os lisboetas não calaram a sua revolta, e no dia seguinte a imprensa da capital saia mais uma vez em defesa dos seus: «Caído o verniz da compustura, os facciosos portuenses deram largas ao seu despeito e ao seu rancor a Lisboa, os jogadores do Belenenses tiveram de passar por entre alas de público que os cobriu de vaias, dirigindo-lhes  os insultos mais soazes. Estiveram iminentes vários conflitos...», assim escrevia Ribeiro dos Reis no Sport de Lisboa.
No dia 10 de junho, a comitiva do Marítimo chega finalmente a casa. A ilha da Madeira parou por completo nesse dia para receber de forma apoteótica os seus heróis.

A figura: Norman Hall

O FC Porto pode até ter saído humilhado deste Campeonato de Portugal, mas o seu lendário capitão de equipa da época, Normal Hall, foi a figura da competição. Nasceu em Inglaterra, em finais do século XIX (12 de outubro de 1897), tendo aos oito anos de idade vindo com os seus pais para Portugal, onde iniciaria, tempos mais tarde, a sua brilhante carreira de futebolista no clube do seu coração, o FC Porto. Avançado habilidoso e eficaz Hall cedo se tornou num ídolo da fervorosa massa adepta do clube nortenho.
Em finais de 1919 passou a integrar a equipa principal do clube, sendo que para além de um notável jogador era um verdadeiro cavalheiro. Um gentleman, um exemplo de fair-play, sempre amável com os seus companheiros e cordeal com os adversários. Esta tornar-se-ia na sua imagem de marca. A sua estreia com a camisola do Porto foi histórica. Aconteceu a 4 de abril de 1920, em Lisboa, diante do Benfica, um jogo que os portistas venceram por 3-2, sendo esta a primeira vitória azul-e-branca alcançada no reduto do inimigo do sul.
Era um goleador nato, e a prova disso foram os seus 10 golos apontados neste Campeonato de Portugal de 1926, sendo oito deles no jogo diante do Vila Real. Foi capitão do FC Porto durante várias épocas, e no seu palmarés constam 12 títulos de campeão regional e um de campeão de Portugal (24/25). Despediu-se dos campos de futebol no início da década de 30, e dele ficou a memória de um grande desportista, de um homem honesto, um cavalheiro, portador de uma paixão desmedida pelo seu FC Porto.

Nomes e números do Campeonato de Portugal de 1925/26

1ª eliminatória

Sporting de Espinho - União de Coimbra: 4-3

FC Porto - Vila Real: 10-0

Braga - Vianense: 1-0

Luso Beja - Estrela de Portalegre: 2-0

Belenenses - Leões de Santarém: 7-2

Quartos-de-final

Belenenses - Sporting de Espinho: 4-1

FC Porto - Braga: 3-0

Olhanense - Luso Beja: 5-0

Meias-finais

Marítimo - FC Porto: 7-1

Belenenses - Olhanense: 2-1

Final

Marítimo - Belenenses: 2-0 (final dada por terminada aos 60 minutos)

Data: 6 de junho de 1926

Estádio: Campo do Ameal, no Porto

Árbitro: José Guimarães (do Porto)

Marítimo: Ângelo Ortega Fernandes; António Sousa e José Correia; Domingos Vasconcelos cap, Francisco Lopes e José de Sousa; José Ramos, António Alves, António Teixeira “Camarão”, Manuel Ramos e José Fernandes.Treinador: Ekker

Belenenses: Francisco Assis; Eduardo Azevedo e Júlio Marques; José Almeida, Augusto Silva cap e César Matos; Fernando António, Rodolfo Faroleiro, Silva Marques, José Manuel Soares “Pepe” e Alfredo Ramos. Treinador: Artur José Pereira

 Golos: 1-0 (Fernandes, aos 55m), 2-0 (Ramos, aos 60m)


Legenda das fotografias:
1-Equipa do Marítimo campeã de Portugal
2-Belenenses
3-Lance do jogo entre Marítimo e FC Porto
4-Página do jornal Ecos dos Sports, noticiando a tarde negra dos portistas
5-A capa do citado jornal, ilustrando o quinto golo madeirense
6-Lance do primeiro golo madeirense
7-Lance do segundo tento dos campeões de Portugal de 1926
8-Norman Hall
9-A festa madeirense aquando da chegada do Marítimo à ilha

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