quinta-feira, outubro 21, 2010

Grandes Mestres da Táctica (5)... Anselmo Fernandez

Nunca uma passagem tão fugaz pelo comando técnico de uma equipa gerou tanto sucesso como aquele angariado pelo nosso “mestre da táctica” de hoje. Pelo seu punho ajudou o Sporting Clube de Portugal – o seu clube do coração – a escrever uma das páginas mais reluzentes da sua gloriosa história. O seu amor ao futebol era puro e desinteressado, tão desinteressado que nunca quis viver às custas desta nobre modalidade. Assim não o tivesse feito - por outras palavras, se tivesse abraçado a bola como profissão a tempo inteiro - e hoje estariamos aqui a recordar os feitos de uma lenda mundial das tácticas como foram Herbert Chapman, Hugo Meisl, Vittorio Pozzo, Sepp Herberger, Bobby Robson, Alf Ramsey, Rinus Michels, entre outros, muitos outros homens que mais do que terem conquistado títulos de grande prestígio internacional ao longo das suas carreiras ajudaram o desporto rei a evoluir. Foram os cientistas da bola, imaginando e aplicando novos conceitos tácticos que revolucionaram o jogo ao longo de décadas. A ilustre personalidade de hoje andou muito perto do caminho da imortalidade no que concerne aos “mestres da táctica” já que também ele era um visionista, um homem que vivia adiantado no tempo.
Sem mais demoras apresentamos Anselmo Fernandez, o arquitecto, o homem que conduziu o Sporting à conquista da Taça dos Vencedores das Taças em 1964. Mas já lá vamos.
Anselmo Fernandez nasceu em Lisboa a 21 de Agosto de 1918 e desde cedo – como tantos outros – se deixou enfeitiçar pelo bichinho da bola. Aos 16 anos iniciou a sua curta carreira de futebolista no emblema da sua paixão, o Sporting. E curta porque uma apendicite o afastaria de uma possível carreira promissora. Desistiu do futebol mas não do desporto, enquanto praticante, sendo que tempos mais tarde iniciaria uma aventura no râguebi. Numa altura em que o profissionalismo no desporto estava ainda a léguas de ver a luz do dia Anselmo Fernandez nunca perdeu os estudos de vista, pelo que na hora de eleger uma profissão optou pela arquitectura.
Uma área onde foi mestre, não só nos edifícios que criou – entre outros foi responsável pela construção do Hotel Tivoli, e da Reitoria da Universidade, ambos em Lisboa, e com Sá da Costa foi também um dos mentores do projecto do antigo Estádio José de Alvalade – mas também nos projectos tácticos que haveria de desenhar de leão ao peito na década de 60.
Possuidor de um estilo de treino muito particular – entre outros aspectos foi o primeiro treinador português a recorrer ao vídeo para analisar os adversários – Anselmo Fernandez é chamado em 1962 a substituir o mítico treinador húngaro Joseph Szabo no comando do seu Sporting. Faria cinco jogos, e nos cinco obteve outras tantas vitórias. Desta primeira passagem pelo banco leonino encontrei recentemete um relato que o próprio Anselmo Fernandez fez ao jornal “A Bola”, o qual passo a reproduzir na integra:

Em 1962, dirigentes do Sporting pediram-lhe que se tornasse supervisor técnico do futebol do clube, para apoiar Szabo, que era já treinador com a estrela empalidecida. «As coisas
estavam a correr mal, chamaram-me a dar um jeito, em cinco jogos cinco vitórias, uma delas, sensacional, sobre o F. C. Porto, no Porto. Os portistas, depois de terem empatado na Luz, ficaram com o título quase garantido, mas nós acabámos por tramá-los...»
Foi nesse jogo do Porto que Anselmo Fernandez trouxe à colação os primeiros indícios da sua argúcia. E da sua personalidade. «Para esse jogo, não viajara com a equipa. Quando chegaram ao Porto, já eu estava no Hotel Batalha. Disseram-me que o Carvalho se portara
mal e que o Lúcio decidira, por si, comer três pregos e beber três cervejas em Aveiro, onde parámos para comer uma sande de fiambre e beber um sumo. Disse logo ao Juca, que era o treinador de campo, que não jogariam. Ficou em pânico! Quem poderia substituí-los? Disse-lhe que o Libânio e o Morato. Houve logo quem pensasse que eu
endoidecera. Mais convencidos disso ficaram quando me recusei a ir para o banco e quando vibrei com o golo do empate do... F. C. Porto! Manuel Nazaré, que me acompanhara para um recanto do relvado, perguntou-me, então, o que se passara. Disselhe
que aquele golo do F. C. Porto, pouco antes do intervalo era uma... leitaria, que, assim, ganharíamos pela certa. Assim foi, vencemos por 3-1. O Campeonato acabou, ofereceram-me uma fortuna, não quis, não era parvo e como era arquitecto...»


Posto isto um interregno de dois anos surgiu no caminho do arquitecto no que concerne ao trabalho directo com o futebol. Regressaria na temporada de 1963/64 e de novo ao comando do clube que tanto amava, o Sporting. Desta feita para substituir o brasileiro Gentil Cardoso, uma troca que não poderia ter um final mais feliz. Gentil Cardoso saira do clube pela porta pequena após ter sido goleado em Manchester por 4-1 pelo United local num encontro a contar para a 1ª mão dos quartos-de-final da Taça dos Vencedores da Taças (TVT), na altura já a segunda prova europeia mais importante ao nível de clubes da UEFA. Recorrendo uma vez mais aos arquivos históricos do jornal “A Bola” recordemos então o que se passou a seguir à terrível noite de Old Trafford.

Ao jantar, depois do jogo maldito, os directores estavam desolados. Aparentemente resignados. «Manuel Nazaré afirmou-me que nada haveria a fazer, que estávamos lixados. Gracejando, disse-lhe que comigo como treinador talvez não... O desabafo passou como ironia. Nem eu queria que fosse outra coisa. No domingo seguinte, contra o Olhanense, estava o Sporting empatado,
1-1, deixei o camarote, 15 minutos antes de o jogo terminar, cheguei a casa, disse à minha mulher que não tardaria a tocar o telefone. Assim foi. Era o Nazaré a convidar-me para treinador. Aceitei e chamei o Francisco Reboredo, que estava nos juniores do F. C. Porto, para treinador de campo. Na estreia, contra o Benfica, na Luz, empate a 2-2. E quarta-feira, aquele jogo mágico dos 5-0 ao Manchetser, a caminhada fulgurante para a conquista da Taça das Taças...»


Pois é, a epopeia começa aqui a escrever-se no célebre jogo da 2ª mão em Alvalade ante o Manchester United treinado por outra lenda da táctica, Matt Busby. Missão impossível para muitos, incluindo grande parte da família sportinguitsa, o que é certo é que naquela noite o futebol português viveu um dos momentos mais felizes e épicos da sua longa e gloriosa história, muito à custa do Sporting e em particular do homem que comandava os seus destinos desde então: o “arquitecto”. 5-0 e a eliminatória estava virada e o Sporting alcançado as meias-finais da prova europeia. O poderoso Manchester tinha sido vergado face a uma exibição do... outro mundo de 11 leões indomáveis. Mas a viagem de sonho não iria ficar-se por ali, muito longe disso. Antuérpia, bela cidade belga, seria o porto de destino – final – da nau leonina. Localidade onde foi realizada a finalissíma da TVT dessa temporada na sequência de um empate a três golos na final de Bruxelas. Em Antuérpia Morais deu aso ao sonho de trazer para Portugal a primeira e única TVT. E tudo aconteceu graças a um golo de canto directo... o cantinho do Morais como ficou eternizado. O Sporting vencia assim o seu único – até à data – troféu internacional. Um vitória arquitectada por Anselmo Fernandez, um homem que durante essa gloriosa campanha europeia não quis receber um único tostão que fosse do clube. Fez tudo por amor... amor ao futebol e ao Sporting.
“A Bola” recordou então que...

No entanto, quando Brás Medeiros tomou a presidência do Sporting, Jaime Duarte decidiu propor-lhe um verdadeiro contrato de treinador, oficializando uma situação que não era
justo continuar assim. «Ofereceram-me 15 contos por mês, valor que, naquela altura, era baixo para um treinador, sobretudo depois da vitória na Taça das Taças. Aceitei. Só recebi um mês, porque, já na época seguinte, depois de ganharmos 4-0 ao Bordéus, demiti-me simplesmente porque, antes do jogo, o vice-presidente Pereira da Silva decidiu enviar aos emigrantes em França uma carta de captação de simpatias, com as assinaturas de 11
jogadores. Leu a carta, ao almoço, embevecido, perguntou-me a opinião, disse-lhe que a ideia era gira, mas que achava que, por enquanto, ainda era eu o treinador, não percebendo, por isso, porque estavam lá aqueles 11 nomes e não outros. Ganhámos e...
em Lisboa, demiti-me. Nunca mais voltei ao Sporting...»


Anos mais tarde quando treinava a CUF – conjunto que levou à Taça UEFA – um terrível acidente de viação na ponte sobre o Tejo (Lisboa) colocou-o às portas da morte. Foi submetido a uma delicada operação ao cérebro, passando vários meses em coma. Driblou a morte e remeteu desde então o futebol para o baú das recordações. À “A Bola” recordaria anos mais tarde que «as luzes e a glória pertubaram-me. Por isso não me magoa que 99% dos sportinguistas possam não saber que o treinador do Sporting que ganhou a TVT foi um arquitecto de profissão, filho de espanhóis de Zamora, mas que nasceu em Lisboa e fez do Sporting a sua mais apaixonante ligação a Portugal».
Morreria a 19 de Janeiro de 2000, em Madrid.

Legenda das fotografias:
1- Anselmo Fernandez
2- A célebre equipa do Sporting que conquistou a TVT

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